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O RACIOCÍNIO HIPOTÉTICO

No documento BADIOU_Alain. O Ser e o Evento (páginas 197-199)

A dedução como operador da fidelidade ontológica

2. O RACIOCÍNIO HIPOTÉTICO

Qualquer aluno de matemática sabe que, para demonstrar uma proposição do tipo “A implica B ”, podemos proceder assim: supomos que A é verdadeiro e deduzimos B. Observemos, de passagem, que um enunciado “A —» B” não toma posição nem sobre a verdade de A nem sobre a de B. Simplesmente ordena essa conexão entre A e B, que um implica o outro. Assim, podemos demonstrar, em teoria dos conjuntos, o enunciado: “Se existe um cardinal de Ramsey (que é uma espécie de múltiplo “muito grande”), então o conjunto dos números reais construtíveis (sobre “construtível”, ver a meditação 29) é enumeráveí (isto é, do menor tipo de infinidade, o de coo, ver meditação 14). No entanto, o enunciado “existe um cardinal de Ramsey” não é, ele próprio, demonstrável, ou pelo menos não pode ser inferido das Idéias do múltiplo tais como as apresentei. Este teorema, demonstrado por Rowbottom em 1970— forneço os indícios eventurais... — , inscreve, portanto, uma implicação, e deixa simultaneamente em suspenso as duas questões ontológicas cuja conexão ele assegura: “Existe um cardinal de Ramsey?” e “O conjunto dos números reais construtíveis é enumeráveí?”

Em que medida os operadores de fidelidade iniciais — o modus ponens e a generalização — autorizam que “façamos a hipótese” de um enunciado A, para dele

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extrair a conseqüência B, e concluir pela verdade da implicação A -* B, a qual não confirma, em absoluto, como acabo de dizer, a hipótese da verdade de A? Não teremos assim, indevidamente, passado pelo não-ser, sob a form a de um a asserção, A, que poderia m uito bem ser inteiramente falsa, e cuja verdade sustentamos? -Reencontrare-' m os esse problem a da mediação do falso no estabelecimento fiel de um a conexão verdadeira, mais agudo ainda, no exame do raciocínio pelo absurdo. Ele sublinha, a m eu ver, o descom passo entre a estrita lei da apresentação dos enunciados ontológicos, que é a equivalência m onótona dos enunciados verdadeiros, e as estratégias de fidelidade que constroem as conexões efetivas, temporalmente determináveis, entre esses enun­ ciados, a partir do evento e da intervenção, isto é, do que os grandes matemáticos põem em circulação nos pontos fracos do dispositivo anterior.

M as é evidente que, por mais visível e estrategicamente distintas que as conexões

de longo alcance sejam da m onotonia tática dos átomos de inferência (o modusponens

e a generalização), elas devem, em certo sentido, se reduzir a eles, pois a lei é a lei. Vemos claramente, aqui, como a fidelidade ontológica, por mais inventiva que seja, não pode, avaliando conexões, romper com a conta-por-um, eximir-se da estrutura. E la é, antes, sem pre uma diagonal da estrutura, um a flexibilização extrema, um a abreviação irreconhecível.

Por exemplo, o que significa que possamos “fazer a hipótese” de que um enunciado A é verdadeiro? Isso equivale a dizer que, dada a situação (os axiomas da teoria) — cham em os T esse dispositivo — e suas regras de dedução, colocamo-nos provisoriam ente na situação fictícia cujos axiomas são os de T, mais o enunciado A. Cham em os T+A essa situação fictícia. As regras de dedução perm anecendo inalteradas, deduzimos, na situação T+A, o enunciado B. Tudo aí é m ecânico, usual, pois as regras são fixas. A utorizam o-nos apenas esse suplemento que é o uso, na seqüência dem ons­ trativa, do “axiom a” A.

E aqui que intervém um teorema da lógica, dito “teorema da dedução”, cujo valor estratégico ressaltei há dezoito anos, em O conceito de modelo. Esse teorema diz em essência que, admitidos os axiomas puram ente lógicos usuais e as regras de dedução que evoquei, temos a seguinte situação: se um enunciado B é dedutível na teoria T +A , então o enunciado ( A - > B ) ê dedutível na teoria T. E isso sem se considerar o que vale

a teoria fictícia T+A, que pode perfeitamente ser incoerente. E por isto que posso “fazer a hipótese” da verdade de A, isto é, suplementar a situação pela ficção de um a teoria em que A é um axioma: posso ter certeza, em contrapartida, de que, na “verdadeira” situação, a que é com andada pelos axiomas de T — as Idéias do múltiplo — , o enunciado A im plica todo enunciado B dedutível na situação fictícia.

Verificam os assim que um dos m ais poderosos expedientes da fidelidade ontológica é a capacidade de se m over em situações adjacentes fictícias, obtidas por suplem entação axiom ática. No entanto, é evidente que, um a vez inscrito o enunciado (A —» B) com o conseqüência fiel dos axiomas da situação, nada mais subsiste da ficção m ediadora. O matem ático não cessa, assim, de visitar — para avaliar as conexões — universos falaciosos ou incoerentes. Certamente reside neles, com m ais freqüência do que na planície igual dos enunciados, que sua verdade quanto ao ser-enquanto-ser torna equivalentes, em bora não tenha outro objetivo senão ampliar ainda mais a superfície desta.

A DEDUÇÃO COMO OPERADOR DA FIDELIDADE ONTOLÓGICA 199

O teorema da dedução permite, além disso, uma das definições possíveis do que é um sítio eventural das matemáticas. Admitamos que um enunciado é singular, na borda do vazio, se, numa situação matemática historicamente estruturada, ele implicar muitos outros enunciados significativos, sem que ele próprio possa ser deduzido dos axiomas que organizam a situação. Esse enunciado é, em suma, apresentado em suas conseqüên­ cias, mas nenhum discernimento fiel chega a conectá-lo. Digamos que, se A é esse enunciado, podemos deduzir toda sorte de enunciados do tipo A -» B, mas não o próprio A. Observemos que, na situação fictícia T + A, todos esses enunciados B seriam deduzidos. De fato, uma vez que A é um axioma em T +A, e que temosA -* B , o modus ponens autoriza em T + A a dedução de B. Da mesma maneira, tudo que, em T + A, é implicado por .8, seria também deduzido aí. Pois, se temos B —*C, como B é deduzido, temos também C, sempre por modus ponens. Mas o teorema da dedução nos garante que se tal C é deduzido em T + A, o enunciado A -> C é dedutível em T. De tal modo que a teoria fictícia T+ A comanda um considerável potencial suplementar de enuncia­ dos do tipo A -» C, em que C é uma conseqüência, em T + A, de um enunciado B tal que A -* B foi, ele próprio, demonstrado em T. Vemos como o enunciado A aparece como uma espécie de fonte, saturada de conseqüências possíveis, sob a forma de enunciados do tipo A -> x dedutíveis em T.

Um evento, nomeado por uma intervenção, é, portanto, no sítio teórico que indexa o enunciado A, um novo dispositivo, demonstrativo ou axiomático, tal que A se torna claramente admissível como enunciado da situação; logo, de fato, um protocolo em que é decidido que o enunciado A, até aqui suspenso entre sua não-dedutibilidade e a amplitude de seus efeitos, pertence à situação ontológica. Disto resulta por modus ponens, e de uma só vez, que todos os B, todos os C, que esse enunciado A implicava, fazem, também eles, parte da situação. A intervenção se caracteriza, como o vemos em cada intervenção matemática real, por uma brutal descarga de resultados novos, que estavam todos suspensos, ou congelados, numa forma implicativa cujos componentes não podíamos separar. Esses momentos da fidelidade são paroxísticos: deduzimos sem trégua, separamos, encontramos conexões absolutamente incalculáveis no estado ante­ rior das coisas. E que a situação fictícia — e por vezes até totalmente despercebida — em que A não passava de uma hipótese foi substituída por um rearranjo eventural da situação efetiva, tal que A foi aí decidido.

No documento BADIOU_Alain. O Ser e o Evento (páginas 197-199)