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O estado da situação histórico-social

No documento BADIOU_Alain. O Ser e o Evento (páginas 90-96)

Disse na meditação 8 que toda apresentação estruturada admitia uma metaestrutura, denominada estado da situação. Invoquei, em apoio a esta tese, um argumento empírico: toda multiplicidade efetivamente apresentada se prova submetida a essa reduplicação da estrutura, ou da conta. Gostaria de dar aqui um exemplo disso, o das situações histórico-sociais (a questão da Natureza será tratada nas meditações 11 e 12). Além da verificação do conceito, esta meditação exemplificativa permitirá também exercer as categorias do ser-apresentado, que são a normalidade, a singularidade e a excrescência.

Foi sem dúvida uma grande aquisição do marxismo compreender que o Estado não tinha, em sua essência, relação com os indivíduos, que a dialética de sua existência não era a do um da autoridade com o múltiplo dos sujeitos.

Em si, a idéia não era nova. Aristóteles já assinala que o que impede de fato que as constituições pensáveis, conformes ao equilíbrio do conceito, se realizem, o que faz da política esse domínio estranho em que o patológico (tiranias, oligarquias e democra­ cias) prepondera regularmente sobre o normal (monarquias, aristocracias e repúblicas) é, em última análise, a existência dos ricos e dos pobres. De resto, Aristóteles, que não vê como suprimir essa existência, último impasse real do político como puro pensa­ mento, hesita em declará-la inteiramente “natural”, pois o que ele deseja é a extensão — e, racionalmente, a universalidade — da classe média. Aristóteles percebe clara­ mente, portanto, que os Estados reais têm menos relação com o vínculo social do que com sua des-vinculação, com suas oposições internas, e que, finalmente, a política desconvém à clareza filosófica do político, porque o Estado em seu destino concreto se define menos pelo lugar equilibrado dos cidadãos do que por essas grandes massas — essas partes, que freqüentemente são partidos —, ao mesmo tempo empíricas e móveis, que os ricos e os pobres constituem.

O dispositivo marxista relaciona diretamente o Estado com os submúltiplos, e não com os termos, da situação. Afirma que aquilo cuja conta-por-um o Estado assegura não é originariamente o múltiplo dos indivíduos, mas o múltiplo das classes de indivíduos. Mesmo que abandonemos o léxico particular das classes, a idéia formal de que o Estado, que é o estado da situação histórico-social, trata de subconjuntos coletivos,

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e não de indivíduos, é essencial. É preciso imbuir-se da idéia de que a essência do Estado é não ter de considerar individuos, e que, quando é obrigado a considerá-los, isto é, nos fatos, sempre, é segundo um princípio de conta que não lhes concerne como tais. Mesmo a coerção, aliás o mais das vezes anárquica, desregrada, estúpida, que o Estado exerce sobre tal ou qual indivíduo, não significa em absoluto que o Estado é definido pelo “interesse” coercitivo que dedica a tal indivíduo, ou aos indivíduos em geral. Este é o sentido profundo que é preciso conferir à idéia marxista vulgar segundo a qual “o Estado é o Estado da classe dominante”. A interpretação que dela proponho é que o Estado só exerce sua dominação segundo uma lei que chega a fazer-um das partes da situação, e que seu ofício é qualificar uma por uma todas as composições de composições de múltiplos cuja consistência geral a situação — isto é, uma apresentação histórica “já” estruturada — assegura, no tocante a seus termos.

O Estado é simplesmente a necessária metaestrutura de toda situação histórico- social, isto é, a lei que garante que haja um, não no imediato da sociedade — isto, uma estrutura não estatal já assegura sempre —, mas no conjunto de seus subconjuntos. E esse efeito-de-um que o marxismo designa quando diz que o Estado é “o Estado da classe dominante”. Se esta fórmula significasse que o Estado é um instrumento que a referida classe “possui”, esta fórmula não teria nenhum sentido. Se ela tem sentido é na medida em que o efeito do Estado, que é fazer resultar o um nas partes complexas da apresentação histórico-social, é sempre uma estrutura, e que é certamente necessário haver uma lei da conta, portanto uma uniformidade do efeito. Pelo menos é essa uniformidade que “classe dirigente” designa, seja qual for a pertinência semântica da expressão.

O enunciado marxista tem uma outra vantagem, se o apreendemos em sua pura forma: é que, ao afirmar que o Estado é aquele da classe dominante, ele indica que o Estado re-presenta sempre o que já foi apresentado. Tanto mais que a definição das classes dominantes não é estatal, pois é econômica e social. Na obra de Marx, a apresentação da burguesia não se faz por meio do Estado, seus critérios são a posse dos meios de produção, o regime de propriedade, a concentração do capital, etc. Dizer do Estado que ele é aquele da burguesia tem o mérito de sublinhar que o Estado re-presenta uma coisa já histórica e socialmente apresentada. Essa representação nada tem a ver, evidentemente, com o caráter constitucionalmente representativo do governo. Ela significa que imputando o um aos subconjuntos, ou partes, da representação histórico- social, qualificando-os segundo a lei que ele é, o Estado é sempre definido pela representação — segundo os múltiplos de múltiplos a que eles pertencem, portanto segundo sua pertença ao que está incluído na situação — dos termos que a situação apresenta. Bem entendido, a indicação marxista é excessivamente restritiva, ela não apreende inteiramente o Estado como estado (da situação). Mas é bem orientada, por ver que, seja qual for a forma particular de conta-por-um das partes de que o Estado é encarregado, é a representar a apresentação que ele se dedica, e que ele é, portanto, a estrutura da estrutura histórico-social, a garantia de que o um resulte em tudo.

Torna-se então muito claro por que o Estado está ao mesmo tempo absolutamente ligado à apresentação histórico-social e, não obstante, separado dela.

Está ligado a ela na medida em que as partes, das quais constrói o um, não passam de múltiplos de múltiplos já contados-por-um pelas estruturas da situação. Desse ponto

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de vista, o Estado está historicamente ligado à sociedade no próprio movimento da apresentação. Não podendo senão re-presentar, o Estado não faz advir como um nenhum múltiplo — nenhum termo — cujos componentes, os elementos, estivessem ausentes da situação. E isso que elucida a função gestora, ou administrativa, do Estado, a qual, em sua uniformidade diligente, e nas pressões específicas que sofre por ser o estado da situação, é muito mais estrutural e permanente do que a função coercitiva. Por outro lado, porém, uma vez que as partes da sociedade excedem seus termos por todos os lados, o que está incluído em uma situação histórica não pode se rebater sobre o que lhe pertence, o Estado — concebido como operador de conta e garantia de reafirmação universal do um — é necessariamente um dispositivo separado. Como todo estado de uma situação qualquer, o Estado de uma situação histórico-social está submetido ao teorema do ponto de excesso (meditação 7). O que ele maneja, a gigantesca, a infinita rede dos subconjuntos da situação, o obriga anão se identificar com a estrutura originária que dispõe a consistência da apresentação, isto é, o vínculo social imediato.

O Estado burguês, dirá o marxista, está separado do Capital e de seu efeito geral de estruturação. Sem dúvida, ele re-presenta, ao numerar, gerir e ordenar os subconjun­ tos, os termos já estruturados pela natureza “capitalista” da sociedade. Mas, enquanto operador, é distinto deles. Essa separação define a função coercitiva, visto que ela se refere à estruturação imediata dos termos segundo uma lei que “vem de fora”. Essa coerção é de princípio, ela é o modo segundo o qual o um pode ser reafirmado na conta das partes. Se, por exemplo, um indivíduo é “tratado” pelo Estado, seja qual for a ocorrência, ele não é contado por um enquanto “ele mesmo”, o que quereria dizer apenas: enquanto esse múltiplo que recebeu o um na imediateza estruturante da apresentação. Ele é considerado como um subconjunto, isto é — para importar aqui o conceito matemático (c f meditação 5), isto é, ontológico — , como o singleto de si mesmo. Não Antoine Dombasle, nome próprio de um múltiplo infinito, mas {Antoine Dombasle}, figura indiferente da unicidade, pelo arranjo-em-um do nome.

O “eleitor”, por exemplo, não é o fulano, é a parte que re-presenta, segundo seu um próprio, a estrutura separada do Estado, isto é, o conjunto de que fulano é o único elemento, e não o múltiplo de que “fulano” é o um-imediato. Assim, o indivíduo sofre sempre, paciente ou impacientemente, essa coerção elementar, esse átomo de pressão, que constitui a possibilidade de todas as outras pressões possíveis, inclusive morte infligida, de não ser considerado como aquele que pertence à sociedade, mas como aquele que está incluído nela. Há uma essencial indiferença do Estado pela pertença, e uma atenção constante dedicada à inclusão. Qualquer subconjunto consistente é de imediato contado e considerado pelo Estado, para o melhor ou para o pior, pois ele é matéria de representação. Em contrapartida, quaisquer que possam ser as aparências apregoadas, é sempre visível, no fim, que, com a vida das pessoas, isto é, com o múltiplo do qual elas receberam o um, o Estado não tem nenhuma preocupação. Tamanha é a profundeza última, e inelutável, de sua separação.

E neste ponto, contudo, que a linha analítica do marxismo se expõe progres­ sivamente a uma mortal ambigüidade. Engels e Lenin sublinharam enfaticamente, é certo, o caráter separado do Estado, e além disso mostraram — o que é verdade — que a coerção é reciprocável à separação. Daí que a essência do Estado é, em última análise, para eles, sua maquinaria burocrática e militar, ou seja, a visibilidade estrutural de seu

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excesso sobre a imediateza social, o caráter de monstruosa excrescência que é o seu, se o examinarmos unicamente sob o ângulo da situação imediata e de seus termos.

Giremos em tomo da palavra “excrescência”. Na meditação anterior, distingui em plena generalidade três tipos de relação com a completude situacional do efeito-de- um, pertença e inclusão acrescentados: a normalidade (ser apresentado e representado), a singularidade (ser apresentado mas não representado), a excrescência (ser repre­ sentado e não apresentado). Restaria evidentemente o vazio, que não é nem apresentado nem representado.

Na maquinaria burocrática e militar, Engels identifica muito claramente sinais de excrescência. Não há dúvida de que tais partes da situação são mais re-presentadas do que apresentadas. E que elas próprias têm a ver com o operador da representação. Mas justamente. A ambivalência da análise marxista clássica se resume num traço: pensar que, porque é apenas da parte do Estado que há excrescências, o Estado, ele próprio, é uma excrescência. E, em conseqüência, propor como programa político sua supressão revolucionária, portanto o fim da representação, a universalidade da apresentação simples.

De onde procede essa ambivalência? E preciso repetir aqui que a separação do Estado, para Engels, não resulta diretamente da simples existência das ciasses (das partes), mas do caráter antagônico de seus interesses. Há conflito irreconciliável entre as classes mais importantes — de fato, entre a duas classes que efetuam, para o marxismo clássico, a consistência da representação histórica, E, conseqüentemente, se o monopólio das armas e da violência estruturada não estivesse separado sob a forma de um aparelho de Estado, seria a guerra civil permanente.

Esses enunciados clássicos devem ser analisados muito finamente, pois contêm uma idéia profunda, a de que o Estado não se funda sobre o vínculo social, que ele exprimiria, mas sobre a des-vinculação, que ele interdita. Ou, mais precisamente ainda, que a separação do Estado resulta menos da consistência da apresentação do que do perigo da inconsistência. Esta idéia, como sabemos, remonta a Hobbes (a autoridade transcendente absoluta é exigida pela guerra de todos contra todos) e ela é profun­ damente exata sob a seguinte forma: se, numa situação qualquer (histórica ou não), é necessário que as partes sejam contadas por uma metaestrutura, é que seu excesso sobre os termos, escapando à primeira conta, designa um lugar potencial de fixação do vazio. É verdade, portanto, que a separação do Estado visa a alcançar, além dos termos que pertencem à situação, a completude do efeito-de-um, até o domínio, que ele se reserva, das multiplicidades incluídas, para que não advenha, o vazio sendo determinável —~ portanto, o descompasso entre a conta e o contado —, essa inconsistência, que a consistência é.

Não é à toa que os govemos — a partir do momento em que os ameaça aquilo que é um emblema de seu vazio, isto é, em geral, a multidão inconsistente ou arruaceira — proíbem “as reuniões de mais de três pessoas”, isto é, declaram expressamente nfto tolerar o um de tais “partes”, e proclamam assim que a função do Estado é numerar as inclusões para que sejam preservadas as pertenças consistentes,

Não é exatamente isto, contudo, o que diz Engels — grosso modo, para ele, se retomo a tipologia da meditação 8, a burguesia é um termo normal (é econômica e socialmente apresentada e representada pelo Estado); o proletariado é um termo singular

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(é apresentado, mas não representado); o aparelho de Estado é a excrescência. O fundamento último do Estado é que os termos singulares e os termos normais estão em des-vinculação antagônica. A excrescência estatal é, portanto, um resultado que não é referido ao inapresentável, mas às diferenças de apresentação. E por isso que, mo­ dificando essas diferenças, pode-se esperar que o Estado vá desaparecer. Bastará que a singularidade se tome universal, o que se chama também o fim das classes, isto é, o fim das partes, e portanto de toda necessidade de controlar seu excesso,

Desse ponto de vista, notemos, o comunismo seria na realidade o regime ilimitado do individuo.

No fundo, a descrição marxista clássica do Estado é formalmente correta, mas não sua dialética geral. Os dois grandes parâmetros do estado da situação, ou seja, a inapresentável errância do vazio e o excesso irremediável da inclusão sobre a pertença, de que resulta a necessidade de reassegurar o um e de estruturar a estrutura, são considerados por Engels como particularidades da apresentação, e do que nela se numera. O vazio é rebatido sobre a não-representação dos proletários — portanto, a inapresentação sobre uma modalidade da não-representação; a conta separada das partes é rebatida sobre o caráter não universal dos interesses burgueses, sobre o referente apresentativo entre normalidade e singularidade; finalmente, a maquinaria da conta- por-um é reduzida a uma excrescência, deixando-se de perceber até o fim que o excesso de que ela trata é inelutável, porque é um teorema do ser.

A conseqüência dessas teses é que a política pode ser definida aí como o ataque feito ao Estado, seja qual for o modo, pacífico ou violento, desse assalto, “Basta” para isso mobilizar os múltiplos singulares contra os normais, alegando que a excrescência é intolerável, Ora, se o governo, e até a substância material do aparelho de Estado, podem ser derrubados, ou destruídos, e se, em certas circunstâncias, é até politicamente útil fazê-lo, não se deve perder de vista que o Estado como tal, isto é, a reafirmação do um sobre o excesso das partes (ou dos partidos...), não se deixa destruir e nem mesmo atacar tão facilmente, Cinco anos apenas após a revolução de outubro, Lenin, prestes a morrer, se desesperava com 8 obscena permanência do Estado, Mao, mais aventureiro e mais flemnático ao mesmo tempo, constatava, após vinte e cinco anos de poder e dez anos de ferozes tumultos durante a Revolução Cultural, que, afinal de contas, não se havia mudado grande coisa.

É que o caminho da mudança política, quero dizer, o caminho da radical idade justiceira, se tem o Estado sempre nas cercanias de seu percurso, não pode de maneira alguma ser traçado a partir dele, pois o Estado justamente não é político, uma vez que não poderia mudar, senão de mãos, e sabemos a pouca significação estratégica que isso tem,

NIo é o antagonismo que está na origem do Estado, pois não podemos pensar oomo antagonismo a dialética do vazio e do excesso. A política deve, sem dúvida, originar-se ela própria ali onde O Estado se origina, portanto nessa dialética. No entanto, isso certamente não c apossar-se do Estado, ou duplicar seu efeito. A existência da política depende, ao contrário, da capacidade de ligar ao vazio e ao excesso uma relação essencialmente diferente da do Estado, porque somente essa alteridade pode subtraí-la ao um da reafirmação estatal.

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Mais que um guerreiro entre as muralhas do Estado, o político é esse paciente espreitador do vazio que instrui o evento, pois é apenas no embate com o evento (meditação 17) que o Estado se cega a seu próprio domínio. Ali, o político constrói uma maneira de sondar, ainda que pelo tempo de um relâmpago, o sítio do inapresentável, e uma maneira de ser fiel dali em diante ao nome próprio que, depois, ele terá sabido dar — ou ouvir, não é possível decidir — a esse não-lugar do lugar, que é o vazio.

MEDITAÇÃO DEZ

Espinosa

“Quicquid est in D eo est”

ou: Todas as situações têm

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