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O infinito: o outro, a regra e o Outro

No documento BADIOU_Alain. O Ser e o Evento (páginas 119-125)

MEDITAÇÃO TREZE

A compatibilidade da infinidade divina com a ontologia essencialmente finita dos gregos, de Aristóteles em particular, é o ponto a partir do qual podemos verificar se há sentido, e qual, em dizer que o ser, enquanto ser, é infinito. Que os grandes filósofos medievais tenham podido enxertar sem maiores danos numa doutrina substancialista, em que o ser se dispõe na posição de seu limite próprio, a Idéia de um Ente supremo infinito, indica suficientemente que é ao menos possível pensar o ser como eclosão finita de uma diferença singular, dando, ao mesmo tempo, lugar, no ápice de uma hierarquia representável, a um excesso de diferença tal que, sob o nome de Deus, supomos um ser para o qual não é pertinente nenhuma das distinções limitantes finitas que a Natureza criada nos propõe.

E preciso admitir que, num certo sentido, o monoteísmo cristão não introduz, ainda que Deus seja nele designado como infinito, uma ruptura imediata e radical com o finitismo grego. O pensamento do ser como tal não é fundamentalmente afetado por uma transcendência hierarquicamente representável além (mas também dedutível) do mundo natural. A possibilidade dessa disposição contínua do discurso ontológico se funda, evidentemente, no fato de que, como a idade metafísica do pensamento solda a questão do ser com a do ente supremo, a infinidade do ente-Deus pode permanecer sub-tendida por um pensamento em que o ser, enquanto ser, permanece essencialmente finito. A infinidade divina designa somente essa “região” transcendente do ente-em-to- talidade em que não sabemos mais em que sentido se exerce a essencial finitude do ser. O in-finito é o limite pontual do exercício de nosso pensamento do ser-finito. No quadro do que Heidegger chama a onto-teologia, ou seja, a dependência metafísica do pensa­ mento do ser para com o supremamente ente, a diferença entre o infinito e o finito, diferença no ente ou diferença ôntica, não pronuncia propriamente nada sobre o ser enquanto tal, e pode perfeitamente conservar o dispositivo da finitude grega. Que o par infinito/finito não seja pertinente no espaço da diferença ontológica propriamente dita é, em última análise, a chave da compatibilidade entre uma teologia do infinito e uma ontologia do finito. O par infinito/finito distribui o ente em totalidade, no quadro

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inabalável do substancialismo, o qual figura o ser, seja ele divino ou natural, como xóõe t i , essência singular, somente pensável na disposição afirmativa de seu limite.

O Deus infinito do cristianismo medieval é, enquanto ser, essencialmente finito. É esta evidentemente a razão por que não há nenhum abismo intransponível entre Ele e a natureza criada, pois a observação racional da segunda nos fornece a prova de Sua existência. O verdadeiro operador dessa prova é, aliás, a distinção, especificamente ligada à existência natural, entre o reino do movimento — próprio das substâncias naturais ditas finitas — e o da imobilidade — Deus sendo o supremo motor imóvel , que caracteriza a substancia dita infinita. Sublinhemos neste ponto que, à beira de reconhecer, sob o efeito eventural galileano, a infinidade da própria natureza criada, Descartes deverá também mudar de prova quanto à existência de Deus.

O reconhecimento da efetiva infinidade do ser não pode se operar apenas segundo a pontualidade metafísica da infinidade substancial de um ente supremo. A tese da infinidade do ser é necessariamente pós-cristã, ou, se preferirmos, pós-galileana. Ela está historicamente ligada ao advento ontológico de uma matemática do infinito, cuja conexão íntima com o Sujeito da ciência— o vazio do Cogito — destrói o limite grego, e in-dispõe a supremacia do ente em que se nomeava como Deus a essência ontológica finita da própria infinidade.

A conseqüência disso é que, paradoxalmente, o radicalismo de toda tese sobre o infinito não concerne a Deus, mas à Natureza. A audácia moderna certamente não foi introduzir o conceito de infinito, pois este estava de longa data ajustado ao pensamento grego pela fundação judaico-cristã. Foi excentrar o uso desse conceito, deportá-lo de sua função de distribuição das regiões do ente-em-totalidade para uma caracterização de ente-enquanto-ente: a natureza, disseram os modernos, é infinita.

Essa tese da infinidade da natureza, aliás, só superficialmente é uma tese sobre o mundo — ou sobre o Universo. Pois “o mundo” pode ainda ser concebido como um ser-do-um, e, a esse título, como Kant o mostrou na antinomia cosmológica, não constituir mais que um impasse ilusório. O recurso especulativo cristão foi um esforço para, conservando universalmente a finitude ontológica, pensar o infinito como um atributo do Um-ente, e reservar ao múltiplo o sentido ôntico da finitude. Foi pela mediação de uma suposição quanto ao ser do um que esses grandes pensadores puderam simultaneamente entificar o infinito (Deus), entificar o finito (a Natureza), e manter, nos dois casos, uma subestrutura ontológica finita. Essa anfibología do finito, que designa onticamente as criaturas e ontologicamente o ser, inclusive Deus, tem sua fonte num gesto de Presença pelo qual é garantido que o Um é. Se a infinidade da natureza designa tão-somente a infinidade do mundo, o “universo infinito” em que Koyré vê a ruptura moderna, continua sendo concebível que esse universo, efetuando o ser-ente- do-um, não passe de um deus despontualizado, e que a subestrutura finitista da ontologia persista até nesse avatar, em que a infinidade ôntica cai de seu estatuto transcendente e pessoal em proveito de um espaçamento cosmológico, sem por isso abrir para um enunciado radical sobre a infinidade essencial do ser.

É preciso, portanto, compreender que a infinidade da natureza designa apenas imaginariamente a infinidade do Um-mundo. Seu verdadeiro sentido concerne, visto que o um não é, ao múltiplo puro, isto é, a apresentação. Se historicamente, ainda que de maneira originalmente não reconhecida, o conceito de infinito só foi revolucionário

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no pensamento a partir do momento em que se declarou que convinha à natureza, foi porque todos sentiam que se tocava aí o próprio dispositivo onto-teológico, em seu cruzamento particular com o par infinito/finito, e que se destruía o critério simples de distinção regional, no ente-em-totalidade, entre Deus e a Natureza criada. O sentido desse abalo era reabrir a própria questão ontológica, como o vemos em filosofia de Descartes a Kant, porque uma inquietude absolutamente nova atingia a convicção finitista. De fato, se o infinito é natural, se não é o nome negativo do ente-supremo, o índice de exceção em que se distingue uma pontualidade hierárquica pensável como ser-do-um, não poderíamos supor que esse predicado convém ao ser enquanto ele é apresentado, portanto ao múltiplo em si? Foi da óptica da hipótese, não de um ser infinito, mas de múltiplos números infinitos, que a revolução intelectual do séculos XVI e XVII provocou no pensamento a ruptura arriscada da interrogação sobre o ser, e o abandono irreversível da montagem grega.

Em sua forma mais abstrata, o reconhecimento da infinidade do ser é, em primeiro lugar, aquele da infinidade das situações, a suposição de que a conta-por-um diz respeito a multiplicidades infinitas. O que é, no entanto, uma multiplicidade infinita? Em certo sentido — e direi o porquê — , até hoje a questão não está totalmente decidida. Além disso, esse é o próprio exemplo da questão intrínsecamente ontológica, isto é, matemá­ tica. Não há nenhum conceito inframatemático do infinito, somente vagas imagens do “muito grande”. De modo que não só é preciso afirmar que o ser é infinito, mas que somente ele o é. Ou antes: que o infinito é um predicado que só convém ao ser enquanto ser. De fato, se é apenas nas matemáticas que encontramos conceituações unívocas do infinito, é que esse conceito só é adequável a isso de que tratam as matemáticas, e que é o ser enquanto ser. Vemos a que ponto a obra de Cantor arremata o gesto histórico galileano: ali mesmo onde, no pensamento grego, depois greco-cristão, vigorava uma adequação essencial do ser ao finito — o infinito sendo o atributo ôntico da diferença divina —, é ao contrário, ao ser enquanto tal, e apenas a ele, que se atribui doravante a infinidade, sob a forma da noção de “conjunto infinito”, e é o finito que é útil para se pensar as diferenças empíricas, ou entes, intra-situacionais.

Acrescentemos que, necessariamente, a ontologização matemática do infinito o separa absolutamente do um, que não é. Se são os múltiplos puros que devem ser reconhecidos como infinitos, é impossível que haja um-infinito. Haverá necessa­ riamente múltiplos infinitos. Ainda mais profundamente, porém, nada mais permite prever que se possa reconhecer um conceito simples do múltiplo-infinito. Pois, se tal conceito fosse legítimo, os múltiplos que lhe conviriam seriam, de algum modo, supremos, não sendo “menos múltiplos” que outros. O infinito nos reconduziria ao supremamente-ente, no modo de um ponto de parada que afetaria o pensamento do puro múltiplo, uma vez que, além dos múltiplos infinitos, não haveria nada. O que deve ser previsto, portanto, é antes a idéia de que há múltiplos infinitos diferenciáveis entre si, e isto ao infinito. A ontologização do infinito, além de abolir o um-infinito, abole também a unicidade do infinito, e propõe a vertigem de uma infinidade de infinitos, distinguíveis no interior de sua comum oposição ao finito.

Quais são os meios de pensamento disponíveis para tomar efetiva a tese: “Existe uma infinidade da apresentação”? Compreendamos os métodos pelos quais o infinito advém ao pensável sem a mediação do um. Aristóteles já havia percebido que a idéia

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do infinito (para ele, o ajieipov, o não-limitado) exigia um operador intelectual de percurso. “Infinito” era para ele o ser tal que o pensamento não podia proceder à sua exaustão, dado um método de exaustão possível. Isso significa necessariamente que, entre uma etapa do procedimento, seja ela qual for, e o alvo — isto é, o limite suposto do ente tomado em consideração —, existe sempre um “ainda” [encore]. O em-corpo [en-corps] físico do ente é aqui o ainda [Vencore] do procedimento, seja em que ponto ele esteja da tentativa de exaustão. Aristóteles negava que tal situação fosse realizável, pela razão evidente de que o já-aí do ente considerado incluía a disposição do seu limite. Para Aristóteles, o “já” singular de um ser qualquer exclui toda invariância, toda eterna reduplicação do ainda.

Essa dialética do “já” e do “ainda” é central. Ela equivale à necessidade da presença de múltiplo para que um procedimento de exaustão concernente a ele tenha sentido. Mas se ele está efetivamente já apresentado, como o percurso de sua apresen­ tação poderia exigir que esteja sempre ainda por vir?

A ontologia do infinito — isto é, do múltiplo infinito, e não do Um transcendente — exige finalmente três coisas:

a. um “já”, um ponto-de-ser, portanto um múltiplo apresentado, ou existente; b. um procedimento — uma regra — tal que indique como “passo” de um termo apresentado a outro, regra que é exigida para que seu malogro em percorrer a integra- lidade de um múltiplo revele sua infinidade;

c. a constatação da invariância, a partir do já, e segundo a regra, de um “ainda” da regra, de um termo não-ainda percorrido.

Mas isso não é suficiente. Pois tal situação diz apenas a impotência da regra, não diz a existência de uma causa dessa impotência. É preciso mais, portanto:

d. um segundo existente (além do “já”), que equivalha à causa do procedimento de exaustão, isto é, um múltiplo supostamente tal que é nele que se reitera o “ainda”.

Sem essa suposição de existência, seria possível somente que a regra — cujas etapas processuais produzem todas o finito, por mais numerosas que sejam — seja ela mesma empiricamente incapaz de chegar ao limite. Se a exaustão é de princípio, e não empírica, é preciso que a reduplicação do “ainda” seja atestável no lugar de um existente, isto é, de um múltiplo apresentado.

A regra não apresentará esse múltiplo, pois é por fracassar em percorrê-lo integralmente que ela o qualifica como infinito. E preciso, portanto, que ele seja apresentado “por outro lado”, como o lugar da impotência da regra.

Digamos isto de outra maneira. A regra me diz como passo de um termo a outro. Esse outro é igualmente o mesmo, porque depois dele se reitera os “ainda-um” pelos quais ele não terá sido senão a mediação entre seu outro (o primeiro termo) e o outro por vir. Só o já absolutamente inicial estava, segundo a regra, em in-diferença do que o precede. Ele está, contudo, retroativamente alinhado ao que o segue, pois a regra já encontrava, a partir dele, seu ainda-um. Que eles estejam todos na borda do ainda-um- outro faz de cada um dos outros o mesmo que seu outro. A regra sujeita o outro à sua identidade de impotência. Quando afirmo que existe esse múltiplo tal que é nele que procede esse tornar-se-mesmo dos outros segundo o ainda-um-outro, e tal que todos eles figurem aí, faço advir, não ainda-um-outro, mas esse Outro tal que é dele que procede que haja outro, isto é, o mesmo.

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O Outro está, por um lado, em posição de lugar para os outros-mesmos, ele é o espaço de exercício, e de impotência, da regra. Por outro lado, ele é o que nenhum dos outros é, o que a regra não permite percorrer; portanto, esse múltiplo subtraído à regra, e que é igualmente aquilo que, se ela o atingisse, interromperia seu exercício. Ele está claramente em posição de limite para a regra.

Um múltiplo infinito é, portanto, um múltiplo apresentado tal que se lhe pode correlacionar uma regra de percurso da qual ele é simultaneamente o lugar de exercício e o limite. O infinito é o Outro a cujo respeito afirmamos que há, entre a fixidez do já e a repetição do ainda, a regra segundo a qual outros são mesmos.

O estatuto existencial do infinito é duplo. E preciso ao mesmo tempo o ser-já-aí de um múltiplo inicial, e o ser do Outro, que não é jamais inferível da regra. Esse duplo selo existencial é aquilo pelo que o infinito real se distingue do imaginário de um infinito-um, o qual era estabelecido de uma só vez.

Finalmente, o infinito realiza a conexão de um ponto de ser, de um automatismo de repetição, e de um segundo selo existencial. Nele se enlaçam a origem, o outro e o Outro. O duplo modo do remetimento do outro ao Outro é o lugar (todo outro é apresentado pelo Outro, como o mesmo que lhe pertence) e o limite (o Outro não é nenhum dos outros cujo percurso a regra autoriza).

O segundo selo existencial proíbe imaginar que se possa deduzir o infinito do finito. Se chamamos “finito” o que é tal que uma regra o percorre integralmente — e, portanto, aquilo que, num ponto, subsume seu Outro como outro —, fica claro que o infinito não pode ser inferido dele, pois ele exige que o Outro venha de fora de toda regra concernente aos outros.

Daí este enunciado radical: a tese da infinidade é necessariamente uma decisão ontológica, isto é, um axioma. Sem essa decisão, permanecerá sempre possível que o ser seja essencialmente finito.

E foi isso mesmo que, efetivamente, os homens do século XVI e XVII decidiram, estabelecendo que a natureza era infinita. Não era de modo algum possível deduzir esse ponto a partir das observações, das novas lunetas astronômicas, etc. Fazia-se necessária uma pura coragem do pensamento, um inciso voluntário no dispositivo, eternamente defensável, do finitismo ontológico.

Da mesma maneira, a ontologia, historialmente limitada, deve conservar a marca do fato de que a única forma efetivamente ateológica do enunciado concernente à infinidade do ser ter sido referente à natureza.

Enunciei (meditação 11) que as multiplicidades naturais (ou ordinais) eram as que realizavam o equilíbrio máximo entre a pertença (regime da conta-por-um) e a inclusão (regime do estado). A decisão ontológica concernente ao infinito se dirá então simplesmente: existe uma multiplicidade natural infinita.

Este enunciado evita cuidadosamente referir-se à natureza, em que ainda se lê excessivamente o reinado substitutivo do um cosmológico, após séculos de reinado do um-infinito divino. Ele postula somente que ao menos um múltiplo natural, isto é, um múltiplo transitivo de múltiplos transitivos, é infinito.

Este enunciado pode decepcionar, já que o adjetivo “infinito” é mencionado aí sem definição. Podemos então dizer: existe um múltiplo natural tal que lhe está associada uma regra da qual procede que haja, em todo instante de seu exercício,

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ainda-um-outro, e tal que ele não seja nenhum desses outros, embora todos estes lhe pertençam.

Este enunciado pode parecer cauteloso, por não prever a existência, em alguma situação atestável, senão de um múltiplo infinito. Caberá à ontologia estabelecer que, se há um, há outros, e o Outro desses outros, e assim por diante.

Este enunciado pode parecer restritivo e perigoso, por fornecer apenas um conceito do infinito. Caberá à ontologia provar que, se existe um múltiplo infinito, existem outros, que lhe são, segundo uma norma precisa, incomensuráveis.

Assim se verá arquitetada a decisão histórica de sustentar a infinidade possível do ser, infinidade que, uma vez subtraída ao domínio do um, e portanto à falta de toda ontologia da Presença, prolifera além de tudo que a representação tolera, e designa, por uma inversão memorável da era anterior do pensamento, o finito como sendo a exceção, cuja precariedade fraterna somente um empobrecimento — sem dúvida vital — da contemplação conserva junto a nós.

O homem é esse ser que prefere se representar na finitude, cujo signo é a morte, a se saber inteiramente atravessado, e cercado, pela onipresença do infinito.

Pelo menos, resta-lhe o consolo de descobrir que nada o obriga de fato a esse saber, pois nesse ponto o pensamento só pode estar na escola da decisão.

MEDITAÇÃO CATORZE

No documento BADIOU_Alain. O Ser e o Evento (páginas 119-125)