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4.2 INTERESSE DAS ONGs PELA POBREZA

4.2.2 A ajuda aos pobres

A efervescência de organizações não-governamentais, para toda e qualquer necessidade ou problema inerente à pobreza ou às mazelas provocadas pelo capitalismo, na atual conjuntura, evidencia que a diminuição da atuação do Estado em relação às questões sociais ocorreu. Nota-se ainda que a terceirização via o terceiro setor transformou-se numa política de parcerias entre Estado e sociedade, sem que o Estado tenha o controle sobre a qualidade dos serviços prestados por esse setor.

Não se vê essa transferência de responsabilidades e de recursos públicos para o setor privado como característica de um Estado democrático, até porque o Estado, por si só, não o será. Além do mais esse espaço dado pelo Estado ao setor privado não se constitui uma possibilidade de ajuda que contribua para resolver os problemas decorrentes da pobreza. Pode-se inferir que, nesse processo, o Estado se limita a ser coadjuvante quando devia ser o protagonista das políticas de combate à pobreza.

Tal postura assumida pelo Estado leva a crer que existe uma manifestação da burocracia estatal cuja intenção é humanizar o capital para humanizar o Estado. Porém, não se mudará o modo de produção das relações sociais, em todas as suas dimensões e instâncias, e nem se distribuirá a riqueza produzida apenas com inferências locais e temporárias da máquina estatal e de seus parceiros do setor privado.

No entanto, quando se discute a questão da promoção de políticas sociais aos pobres é esse fato que está em jogo: a produção e a apropriação da riqueza sob suas diversas modalidades. Isso leva a inferir, pela conjuntura de pobreza nesse país, que não há como alterar a estrutura social com voluntarismo e imediatismo do trabalho das ONGs.

Ressalte-se que esse tipo de mudança não ocorre mecanicamente ou de forma simplista; é necessário construir um projeto com compromisso político e comprometido com a autodeterminação dos sujeitos, porque não se trata de algo centrado no individualismo reinante, no localismo ou no associativismo de sujeitos e organizações com interesses homogêneos, como fazem parecer os atuais protagonistas das ONGs, mas algo que extrapola os limites geopolíticos.

Não compreender o fetiche da ajuda aos pobres ou os fundamentos das políticas sociais implementadas pelo Estado neoliberal para eles favorece a crença de que não há interesses implícitos em cada ajuda, por exemplo, do FMI ao terceiro e ao quarto mundo32, ou que o Banco Mundial promove a educação em parceria com os Estados empobrecidos e ONGs, ou ainda que empresários promovam ou apóiem, desinteressadamente, os fóruns sociais de todos os matizes, que têm se realizado mundialmente, evocando cidadania e participação organizada da sociedade civil e superação da pobreza.

Para que se consolide a ajuda aos pobres as políticas sociais devem deixar de ser tratadas sob o princípio da universalidade e devem passar a ser focalizadas conforme os setores demandantes, eleitos em consonância com as orientações da política atual. No campo da educação, por exemplo, o FUNDEF priorizou apenas o ensino fundamental (este obrigatório); os demais níveis e modalidades de educação não são importantes para os pobres, que devem conformar-se com os oito anos de escolarização, predominantemente precarizada, ou disputar, após esse período, as reduzidas vagas no ensino médio, que, mesmo em

expansão, está longe de atingir a demanda, ainda mais pelos mínimos recursos ou então pelos acordos entre o MEC e o Banco mundial, ou educação profissional, cada vez mais privatizada – separada do Ensino Médio – e dependente da sobra de recursos públicos ou ações da beneficência empresarial e de organizações não-governamentais.

Essas formas precarizadas de promoção da educação básica induzem à concordância com o pensamento de Montaño (2002, p.74), para quem o terceiro-setor contribui para a consolidação de duas condições distintas de cidadania, reforçando duas esferas de serviços com qualidades diferentes – “o privado/mercantil, de boa qualidade (para poucos) e o público/gratuito, precário (para a maioria), estes últimos fadados ao fracasso frente a alta competitividade e seletividade do mercado de trabalho". Para os pobres, são destinados os programas de educação informal ou os precarizados (modulares, a distância, em finais de semana). Essas modalidades de educação contribuem para reforçar o processo devastador de ocupações temporárias, terceirizadas, sem regulação de benefícios sociais, flexibilizadas a que se subjugam os pobres. Nesse contexto eles são o alvo preferencial desse trabalho controlador das parcerias integradas pelas OSCIP.

A redemocratização em curso no País cedeu em direção aos preceitos neoliberais das políticas econômicas e da gestão do Estado e deterioração das políticas públicas em combinação com o aumento da miséria, da violência e do desemprego.

Uma sociedade com tais características tende a alimentar-se da miséria e dos mecanismos de desmonte do Estado, ao mesmo tempo em que se associa a este para realizar seus interesses solidários, localizados ou ainda privatistas.

Para Fernandes (1994), sem um firme Estado democrático, é impossível acreditar que a sociedade civil se sustente. Nesse aspecto, concorda-se com seu pronunciamento:

Não há autonomia cidadã que se mantenha sem o bom funcionamento dos sistemas de seguridade e justiça; não há como manter aceso o desejo de participação sem a crença nas instituições das quais se é convidado a participar; o respeito ao pluralismo não tem relevância enquanto não encontrar mecanismos eficazes de expressão da multiplicidade dos interesses e das intenções. Da mesma forma, a noção de um “terceiro setor” só faz sentido na pressuposição de que existam um “primeiro” e um “segundo”. Os serviços públicos dispersos pelas microiniciativas cidadãs não têm como prosperar se não interagirem positivamente com as macrointervenções públicas agenciadas pelo Estado (FERNANDES, 1994, p. 95, grifos do autor).

Sob esse ponto de vista, há uma relação de identidade entre Estado e ONGs pela modalidade de oferta dos serviços prestados aos pobres, pois ambos optaram por microiniciativas.

Um outro discurso de ajuda aos pobres é traduzido pelas campanhas de solidariedade, de acordo com cada interesse em jogo, isoladamente do contexto que deu conformação ao problema ou à necessidade imediatamente posta. Realizando uma análise crítica, Montaño (2002) questiona se o terceiro setor e suas ONGs estimulariam os laços de solidariedade local, pois, no seu entender, ao tempo em que se fortalecem setorizadamente esses laços de solidariedade, perde-se de vista o princípio de solidariedade universal. Rompe-se, nessa relação, com o antigo princípio universalista das políticas sociais do Estado de Bem-Estar porque na lógica atual o princípio é setorizado, direcionado. Os sem-escola, por exemplo, devem ser solidários com os sem-escola e reivindicarem o atendimento de suas necessidades particularmente.

Nesse contexto, as ONGs contribuem sobremaneira para reforçar essa situação, ao subdividirem, por exemplo, as diversas modalidades de educação oferecida aos pobres, perdendo de vista o princípio do direito à educação em todos os níveis e modalidades. Assim, uma ONG trata da educação na creche da periferia, outra da alfabetização de crianças em situação de risco, outra da profissionalização de jovens e adultos de bairros pobres. Também, há ONGs especialistas na formação de educadores, na elaboração de propostas curriculares, na confecção e produção de materiais e recursos didáticos, em ensino fundamental e classes

multisseriadas, serviços que são complementados com atividades de arte e de esportes, todos voltados a esse universo a ser atendido.

O que parece ter apenas a preocupação social, solidária e para além do viés supostamente classista, classifica esses sujeitos e define o seu lugar no campo dos direitos sociais. O que é direito vira concessão, caridade, filantropia, ajuda humanitária e não conquista, direito inalienável ou ainda direitos que foram conquistados na luta dos trabalhadores e que, em países como o Brasil, estão se perdendo mesmo antes de terem se consolidado efetivamente como direito.

Ocorre, desse modo, uma miniaturização do social como sinônimo de políticas partilhadas, porém decididas pelo Estado reformado e de mistificação da construção e ampliação da cidadania e da democracia.

Não se nega a importância da participação da sociedade civil, por meio das ONGs, só não se aceita que ela seja posta como uma sociedade amorfa, vazia de contradições e interesses, supostamente homogênea e supraclassista, ou ainda que signifique a destituição do Estado diante das responsabilidades que deve assumir, uma vez que se diz gestor da res- públic, ou seja, da coisa pública, portanto, para todos, apesar do seu comportamento e origem burguesa.