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1.2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS

1.2.3 Políticas sociais e interesses em jogo

Ao analisar as relações e interesses entre as organizações não-governamentais e o Estado, concorda-se que haja um paradoxo porque essas entidades entendem a cidadania “mais como lugar de exercício de uma cidadania outorgada, de cima para baixo, que promove a inclusão de indivíduos a uma rede de serviços de forma assistencial, do que lugar de acesso aos direitos de uma cidadania emancipatória” (GOHN, 2000, p. 70).

Observa-se que os novos cidadãos reconhecidos pelas ONGs se transformam em clientes de políticas públicas administradas pelas entidades do terceiro setor e passam a reconhecê-las ora como substitutivas, ora como coadjuvantes do Estado em questões que

historicamente caberiam ao Estado assumir de forma universal, como, por exemplo, a educação.

Convém ressaltar que um dos argumentos preferenciais do sistema de promoção de políticas sociais, ao longo de décadas, no Brasil, independente das especificidades econômicas, sociais, e políticas de cada conjuntura, firma-se na crítica à centralização do poder na esfera federal. Também ocorre pela identificação da discriminação e injustiça social

quanto à distribuição dos serviços e prioridades por regiões, por serem distantes das realidades e necessidades da maioria da população, além das distorções no gasto público com o financiamento das políticas sociais e o pouco controle da sociedade sobre o poder público. Esse fato fortaleceu a ampliação no terceiro setor no espaço do Estado, o que não significa dizer que com a reforma esse caráter centralizador e autoritário tenha mudado.

O conflito entre a necessidade de promover políticas sociais e a necessidade de acumulação capitalista, que norteará as políticas econômicas e sociais a partir dos anos 70, é a expressão maior da conjuntura política a partir de então. Os interesses do mercado passam a constituir uma rede de ações e proposições no sentido de reduzir o alcance do Estado, que tenta responder as demandas em sua direção pelas políticas reformadas e com a parceria do terceiro setor.

A referência ideal de Estado passa a ser um estado-mínimo nas questões sociais e econômicas, como indutor-financiador, e forte na implementação de políticas voltadas a indivíduos ou setores, isoladamente, e ao mercado como espaço estimulador dessas necessidades. A provisão pública deve ser muito mais direcionada e limitada àqueles que, comprovadamente, estão de fora do mercado (os pobres).

Verifica-se que o destino desse Estado à condição de Estado “indutor-normativo- regulador-facilitador e desenvolvimentista”, nessa visão conturbada de desenvolvimento pós- reforma, só pode ser consolidado eficientemente pela capacidade de transferir para setores organizados da sociedade civil a tarefa de parceiros importantes numa possível promoção da capacidade empreendedora dos sujeitos atingidos pela pobreza.

Pode-se dizer que o Estado, porque não pode mais arcar sozinho com as demandas da sociedade, busca agentes não-governamentais que possam atuar em áreas estratégicas, que antes lhe eram exclusivas.

Ao discutir essa lógica a partir do processo de governabilidade, Offe (1984, p. 241) diz que houve uma “hipertrofia dos direitos sociais e democráticos assegurados pelo Estado Social”. As garantias de liberdade econômica e política e um volume de exigências maior que a capacidade do Estado em respondê-las tornam os sistemas ingovernáveis. Desse modo, a solução apresentada foi o desvio dessas exigências para o mercado por meio de privatizações, desestatização dos serviços públicos e sua transferência para instituições competitivas na área da economia privada, desmontando os mecanismos de segurança social do Estado.

Essa transferência de responsabilidades para o mercado não se deu radicalmente. Para tanto, filtraram-se as demandas para o Estado e aquelas exigências consideradas pertinentes e não abusivas foram canalizadas por meio de pactos entre o Estado e setores privados considerados não lucrativos.

Explicitando os conflitos dessa relação, Bóron (1995) chama a esse processo de “a morte pública do Estado”. Ele salienta que os governos latino-americanos cumprem ativamente com a “ortodoxia dominante que aconselha ‘diminuir’ o Estado, liquidar suas empresas, para fortalecer o setor privado da economia [...] com a fúria e o dogmatismo dos convertidos’’ (BÓRON, 1995, p. 80, grifo do autor).

Mesmo considerando que, tendencialmente, as políticas sociais servem muito mais para satisfazer os interesses da produção agregando direitos aos trabalhadores, essas medidas contribuíam, também, para a produção e reprodução da força de trabalho (saúde, educação, moradia, saneamento básico, transporte, previdência, legislação trabalhista), o que tem similar relação com o papel que as ONGs assumem hoje.

Não se pode abdicar da importância desse trabalho de implementação de políticas sociais promovidas pelo Estado e pelas ONGs, conjuntamente, as quais, sabe-se, sem a luta

dos trabalhadores, jamais seriam implementadas, porque são questões que envolvem a existência, a vida.

Ainda nesse cenário de conflitos e interesses, os organismos internacionais (FMI, BM, OMC) atuam financiando, formulando e reformulando, fiscalizando as concessões de políticas sociais dirigidas aos pobres e trabalhadores. Essa ação de ajustes estruturais das economias e políticas do Estado ao processo político vigente corresponde aos imperativos da mundialização do capital em suas diversas modalidades.

Pode-se dizer que esse é um dos absurdos dessa lógica. O quadro social grave que

aparece nas estatísticas brasileiras revela a pouca preocupação em elucidar as questões sociais.

No entanto, a crise desencadeada não pode significar que não existam mais perspectivas para a maioria da humanidade que compõe os quadros de pobreza. O desaparecimento, cada vez maior, de trabalho vivo, em função do avanço tecnológico e do mercado, deve provocar alguma reação rumo a outra lógica, que não seja economicista, mercadológica, também no Brasil.

Ao referir-se a esse quadro desalentador, Bóron (1995, p. 107) acrescenta:

Uma sociedade como a que se descreveu, onde se debilitou até limites extremos a integração social e se dissolveram os laços sociais e a trama da solidariedade preexistente, é também uma sociedade onde as tradicionais estruturas de representação coletiva dos interesses populares se acham em crise. Partidos e sindicatos percebem como sua eficácia reivindicativa e sua credibilidade social são erodidas pelas tendências irracionais do capitalismo neoliberal, que destrói precisamente as arenas nas quais tanto uns como outros devem desenvolver as suas iniciativas.

Decerto existe uma pertinência nessa afirmação, porque há um imenso esvaziamento da política que passa a ser convertida numa arena de comunicação, que convoca para

mobilização social parcerias e se converte em espaço de campanhas pelo bem-estar, em cuja trama confundem-se mercado, poder, política e propaganda.

Essa estrutura vem dar a substância necessária para a ampliação do terceiro setor, conduzido pelas circunstâncias a parceiro preferencial do Estado e do mercado, o que, por sua vez, favorecerá a proliferação de ONGs no Brasil, nos anos 90.

O terceiro setor (neste, as ONGs), passa a representar, segundo a visão positiva desse fenômeno, um novo de tipo de organização da sociedade para a garantia dos direitos sociais à maioria da população pobre, mesmo que seus críticos o considerem mais um mecanismo de controle social da pobreza.