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2.3 CONCEITUAR O FENÔMENO TERCEIRO SETOR?

2.3.2 Análises que fundamentam o fenômeno

Verifica-se que existem dificuldades em se atribuir um significado mais adequado ao terceiro setor porque os estudiosos, de acordo com seus referenciais de análise, tendem a estudar o conceito sem se ater à totalidade do fenômeno. Não partem da totalidade social

desse fenômeno e, às vezes, quando tentam ver o fenômeno isoladamente, concentram-se em estudar a crise de identidade que o envolve.

Predominantemente, negam ou suprimem, também, que o Estado de classe cria para si um corpo técnico-burocrático encarregado de garantir o controle da sociedade pelas classes dominantes, ou seja, uma espécie de pacto social que tende a gerar conformismo e dependência. Isso ocorre de modo mais explícito no âmbito das políticas sociais (saúde, educação, previdência, cultura) e dos direitos, trazendo para a cena política a necessidade de equalização jurídica da ordem social, como se fosse possível fazê-lo por meio da lei.

Esse posicionamento aceito pelo terceiro setor, ao fazer parceria com o Estado e sua organicidade (multinacionais, especuladores, BM, FMI, ONU, OMC, partidos de apoio a esses governos), faz com que se perca o horizonte da crítica a essas relações. Por essa ótica enxerga-se a sociedade civil e a cidadania abstratamente, quando na visão liberal isso tem um sentido bem definido.

No pensamento liberal, a sociedade civil é expressão dos interesses particulares, da ‘iniciativa’ privada. Conceito originalmente elaborado a partir da prática econômica como portadora em si mesmo de uma racionalidade e de uma subjetividade criada e marcada por um ente meta-histórico: o mercado. Essa racionalidade do mercado clarifica também o campo de toda racionalidade política possível. O conceito de sociedade civil refere-se, nessa perspectiva, às instituições privadas e expressa as ‘regras do jogo’ (DIAS, 1996, p.112, grifos do autor).

Logo, ao mesmo tempo em que essa concepção se consolida ela também passa a negar as classes e, além do mais, assume a tarefa de controlar e regular o Estado. Como reafirma Dias (1996), esse conceito de sociedade civil aparece caracterizado por uma ‘neutralidade’ classista. No nível de sua aparência e de sua autojustificativa, a sociedade capitalista é o terreno das individualidades, da negação das classes.

O fenômeno é estudado, diz Montaño (2002), fazendo-se um recorte da totalidade social em espaços distintos de ação social, política e econômica, respectivamente centradas nas áreas do terceiro setor, do Estado e do mercado. Essa visão reduz cada setor a um sistema e/ou estruturas isoladas.

Uma das debilidades que dificultam o entendimento do que seja o terceiro setor está condicionada ao fato de se afirmar que esse setor resolveria a dicotomia entre o público e privado ao tornar-se a materialização do público não-estatal. Isso significa o reconhecimento de uma terceira esfera de propriedade que se coloca entre o Estado (espaço do público) e o mercado (espaço do privado) – o terceiro setor público e não-estatal. Mas se o terceiro setor é considerado a sociedade civil, então ele seria o primeiro setor, porque esta é anterior ao Estado e ao mercado (MONTAÑO, 2002).

Por sua vez, Fernandes (1994) esclarece que esse conjunto de organizações e iniciativas privadas que compõem o terceiro setor visam à produção de bens e serviços públicos, não geram lucros e respondem a necessidades coletivas. Por isso, não podem gerar um patrimônio particular.

O terceiro setor engloba todo um conjunto de organizações da sociedade civil, sem fins lucrativos, criadas e mantidas com base, também, na participação voluntária, atuando particularmente no campo social, pautando suas ações nos problemas enfrentados nas diversas regiões do mundo. Para o autor supramencionado, é correto (sensato) distinguir esse terceiro setor tão dinâmico entre as formas legais e informais de solidariedade social e se pode esperar uma expansão desse setor para além das linhas atuais de exclusão. Segundo essa lógica, o terceiro setor distingue-se na afirmação de valores, no questionamento ao Estado e ao

mercado, fonte e fim das ações voluntárias que o levam a dizer que ambos, mercados e Estados, não são esferas independentes e intocáveis.

Pelo que se pode observar, para Fernandes (1994), os pressupostos dessas relações constitutivas do terceiro setor têm por base a democracia, não estão limitadas ao âmbito do Estado e incluem a cidadania. Não pensam em exercer uma ação substitutiva em relação ao Estado, mas dar expressão ao sentido que esse novo associativismo assume diante este.

Percebe-se que Fernandes (1994), ao destacar a dupla negação, não-governamental e não-lucrativa, faz crer que antecipa algo que se deu em 1995 com a reforma do Estado brasileiro, ou seja, que há um terceiro tipo de propriedade – o público não-estatal. Podem-se destacar trechos do seu discurso que justificam esta visão:

Não apenas o governo, mas nós também, organizações e iniciativas privadas, temos uma função pública [...] Não geram lucros, mas, são autogeridas assim como empresas no mercado. É esse caráter que faz o terceiro setor – não ser condicionado pelo lucro e pelo poder [...] Não fazem parte do governo, não se confundem com o poder do Estado [...] Não estão no governo e não serão governo [...] Enquanto os serviços oferecidos pelo Estado são financiados por impostos compulsórios, os serviços oferecidos pelo terceiro setor dependem, em grande medida, de doações voluntárias [...] Incluir despesas alheias na minha contabilidade é a expressão econômica da tese moral que alimenta a dinâmica do terceiro setor: importar-se com o outro (vizinhos, marginalizados, estrangeiros distantes, gerações futuras, etc.) é parte constitutiva da consciência individual [...] Palavras como gratidão, lealdade, caridade, amor, compaixão, responsabilidade, solidariedade, verdade, beleza, etc., são moedas correntes que alimentam o patrimônio do setor (FERNANDES, 1994, p. 24).

Mas o terceiro setor não se limita somente às ações relativas às políticas sociais, hoje ele incorpora, também, a necessidade de auto-reproduzir-se e suas formas organizativas são atingidas pela lógica das corporações. O terceiro setor passou a formar um mercado de trabalho específico e abrangente, tanto da formalidade quanto da informalidade, influencia a

legislação nos diversos domínios e condiciona orçamentos de governos, de empresas e dos indivíduos.

O fenômeno terceiro setor é distinguido por Thompson (apud FERNANDES, 1994) como um conjunto mais amplo e heterogêneo de organizações sem fins lucrativos, que possuem diversos interesses e agendas. É um grupo dialético e contraditório que começa a explorar novos diálogos e uma nova cultura cidadã. Não há como dizer que o papel do terceiro setor seja este ou aquele.

Esse setor fortalece-se no mesmo momento em que a história mostra um capitalismo liderado pela aliança euro-americana, que tem conseguido se impor, diante dos países do terceiro mundo, pelo poderio de suas empresas transnacionais, pela força dos aparelhos repressivo-militares, pelos meios de comunicação de massa e, de certa forma, com a ajuda dos intelectuais que abandonaram os paradigmas do conflito para difundirem uma lógica excessivamente individualista, a-histórica, no sentido de história constituída por uma multiplicidade de forças e elementos constitutivos das relações sociais.

De acordo com Bava (apud ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ONGs, 2000, p. 29), a teoria do terceiro setor foi produzida, inicialmente, por economistas dos Estados Unidos

Assume como axiomas a hegemonia das leis de mercado, a incapacidade do Estado em atuar como regulador do pacto social e a necessidade de uma ação social eficaz, capaz de enfrentar os crescentes problemas sociais nos setores da sociedade mais penalizados por este novo modelo de concentração acelerada do capital e da renda. Essa teoria transfere a responsabilidade pela garantia da coesão social para as empresas e as entidades sem fins lucrativos, que, em aliança, teriam o papel de amenizar os efeitos socialmente perversos da lógica do mercado.

Assim, na tentativa de explicitar o que é o terceiro setor e a realidade em seu entorno, vão surgindo as micro-explicações que servem para dar conta de microproblemas e não da totalidade desse fenômeno.

Pode-se dizer que as diversas faces do terceiro setor correspondem às diversas mutações sofridas pelo trato da questão social no mundo.