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CAPÍTULO 1 O USO DA FORÇA E SUA REGULAMENTAÇÃO

1.2. O CONCEITO DE GUERRA JUSTA E DO USO LEGÍTIMO DA FORÇA SEGUNDO

1.2.2. Alberico Gentili

Paralelamente aos pensadores ligados à igreja, Alberico Gentili desenvolveu um pensamento laico, com destaque para a sua obra, “De jure belli”, afastando o tema da guerra da concepção religiosa, conduzindo-a em definitivo para o âmbito jurídico. Nascido na Itália, em 1552, filho de família protestante, mudou-se para a Inglaterra em 1591, para não ser perseguido pela Inquisição. Graduou-se em Direito Civil, mas também escreveu sobre uma ampla gama de temas como literatura, história, política e teologia. Porém, sobressaiu-se mais por suas obras jurídicas no campo específico do direito das gentes.

A obra “De jure belli” está dividida em três livros: o primeiro trata da guerra em geral,

os que podem exercê-la e as causas que podem motivá-la; o segundo trata da declaração de guerra, os meios lícitos e ilícitos no curso das hostilidades, as convenções militares, a situação dos prisioneiros, a sorte das cidades e dos combatentes e não-combatentes; e no terceiro demonstra o fim da guerra, os direitos do vencedor sobre os bens e as pessoas da nação vencida e os tratados de paz. Por fim, finaliza com uma invocação a Deus sobre a paz, citando

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MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.169.

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ESPIELL, Hector Gros. En el IV centenario de Hugo Grotius. El nacimiento del derecho de gentes e la idea de comunidad internacional. Apud. PEREIRA, op. cit., p. 127.

o poeta Prudêncio: "A paz é obra da virtude, fim das fadigas e prêmio do perigo afrontado. A paz concentra entre si o céu e a terra, e nada sem paz pode ser grato a Deus"86.

Na referida obra, Gentili demonstra a existência de uma esfera jurídica interna e outra superior que estaria acima da primeira e seria regulada por princípios supremos, em virtude de uma questão de ordem natural, entendido como “direito das gentes”: “A melhor definição do direito das gentes é aquela que ocorre em Xenofonte. Diz que são leis universais não escritas nem dispostas pelos homens porque nem todos puderam se reunir nem falar a mesma língua, mas sim por Deus”.87

Nesse contexto, Gentili traz importantes ponderações sobre o direito de guerra. Segundo a definição clássica de Alberico Gentili, guerra significa "publicorum armorum

contentio", um conflito entre povos armados, entre Estados. Segundo ele, a guerra é feita

pelos soberanos sendo inclusive admitida como justa para ambos os lados. Gentili dizia em sua obra: “Na guerra não se faz outra coisa senão lutar, e é luta feita com as armas...88

É contrario à guerra por motivos religiosos, uma vez que a religião é algo voluntário, de total liberdade, tornando o uso da força para esses fins algo despropositado. De acordo com seu pensamento:

(...) se a religião é de tal natureza a não tolerar que ninguém lhe seja agregado por meios violentos e de novo gênero e que não cabe mais aquele tipo de pregação que pretende inculcar a fé por meio de castigos, segue-se que a violência bélica no fato da religião está mesmo fora de lugar. (...) Aquilo que é impossível obter com a força, querer obter com a força é coisa de louco. Aquilo é estabelecido como faculdade não pode ser convertido em necessidade.89

Gentili sustentou que "o espírito leigo é uma fábula" produzida por um democratismo agnóstico, e que o Estado, enquanto é "humanidade do homem", deve conter em si a religião, preocupar-se com a fé do povo e favorecer o culto religioso nacional.90

No tocante ao tema da guerra justa, Gentili considera apenas possível quando ela apresentar-se necessária (quando não há outro recurso para manter a vida senão pela guerra), útil (direito de revidar agressões sofridas) ou honesta (aquela realizada por direito comum em favor dos outros). Ainda admite a guerra por causas naturais quando o que é dado pela

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ROBLEDO, Antonio Gomes. Fundadores del Derecho Internacional. México: Universidad Nacional Autônoma de México, 1989, p. 53.

87

GENTILI, Alberico. O Direito de Guerra. Coleção Clássicos do Direito Internacional. Ijuí:Unijuí, 2005, p. 58. 88

Ibid., p. 61.

89

Ibid., p. 95-7.

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natureza é impedido pela vontade dos homens; e por causas humanas quando há violações aos direitos humanos. E nesse sentido, Gentili expunha os perigos de violação dos “direitos da humanidade” como o direito das vítimas (prisioneiros de guerra, reféns, suplicantes):

Cumpre analisar agora o direito que o vencedor tem para com as pessoas dos inimigos presos e sobretudo para com os comandantes dos inimigos. Regra de direito comum é esta: a severidade deve despir-se de seu rigor para que não se perpetre chacina de muitos. Preceito humano, santo, cristão.91

Para Alberico Gentili, todos os Estados têm o dever de assistir seus aliados quando estejam sob injusto ataque inimigo, bem como em uma concepção humanitária, preocupou-se com as vítimas das guerras, notadamente as crianças, mulheres e religiosos. Todavia, embora tenha contribuído para dar a devida atenção ao tema, Gentili admite a escravidão como aceito pelo direito das gentes:

Não hesito em afirmar que é justo o direito à escravidão. Na verdade, sua instituição é do direito das gentes. (...) O direito da natureza não estabeleceu que os homens não pudessem tornar-se escravos, embora tenha feito os homens livres, e assim entre as leis dos povos pôde existir essa da escravidão. 92

Alberico Gentili considera a sociedade internacional "orgânica e solidária", o que conduz à concepção de que os Estados possuem uma soberania limitada: “os príncipes não são homens de natureza diversa dos outros, não se deve conceder a eles de fazer em tudo, tudo quanto lhes aprouver”.93

Mas sua maior contribuição foi afastar o tema da guerra do aspecto religioso, introduzindo-o no campo jurídico e separando o conceito de guerra santa do de guerra justa. Transpôs para o direito natural as idéias sobre a guerra, próprias da tradição humanista, inserindo assuntos e princípios teórico-políticos em um discurso sobre o direito-justiça internacional.94

O Direito Internacional passaria a regular as condutas das partes em conflito, visando impedir a proliferação desmedida da violência. A comunidade internacional deveria ser regulamentada por normas de direito que visasse preservar os direitos humanos e a paz. A guerra deveria ter limites, não podendo o homem recorrer sempre ao uso da força em

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GENTILI, op. cit., p. 476. 92 Ibid., p. 488-9. 93 Ibid., p. 143. 94 Ibid., p. 39.

detrimento da justiça internacional. O termo Direito Internacional, todavia, ainda não era conhecido nessa época, sendo utilizadas para tanto expressões como “lei da natureza”, “direito das gentes” e “direito de guerra”.95