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CAPÍTULO 1 O USO DA FORÇA E SUA REGULAMENTAÇÃO

1.2. O CONCEITO DE GUERRA JUSTA E DO USO LEGÍTIMO DA FORÇA SEGUNDO

1.2.4. Immanuel Kant

Immanuel Kant nascido em 1724, em Königsberg (Kaliningrado), na Prússia oriental, filósofo da era moderna, é um dos seus pensadores mais influentes da sua época e seus pensamentos estão ainda presentes na atualidade. Em 1755 iniciou a carreira universitária ensinando Ciências Naturais. Em 1770 foi nomeado professor catedrático da Universidade de Königsberg, cidade na qual permaneceu, dedicando-se aos estudos filosóficos.

Na segunda metade do século XVIII, Kant publica sua obra “Projeto da Paz

Perpétua” (ou “À Paz Perpétua - um Projeto Filosófico”), onde expõe uma doutrina sobre a

guerra e a paz e sua relação com a comunidade internacional, que vive em constante

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beligerância. Seus artigos são divididos em preliminares e definitivos. Dentre os preliminares para a paz perpétua, Kant critica a distinção existente no âmbito da guerra, entre a guerra justa e injusta por acabar servindo de justificativa ao recorrente uso da força. Embora seus estudos não estejam voltados para caracterizar a guerra como lícita, ela sempre será permitida, como represália, quando um Estado sofrer uma violação efetiva para defender seu território e reparar a agressão sofrida, em vez de se buscar uma restituição por meios pacíficos.

Nos artigos preliminares Kant estipula seis condições para a preservação da paz perpétua, quais sejam109:

(i) devem ser eliminadas as reservas secretas em tratados de paz, uma vez que elas instabilizavam a paz firmada;

(ii) o estabelecimento da autodeterminação dos povos;

(iii) supressão dos aparelhos militares de natureza permanente, uma vez que, em tempos de paz, sua presença torna-se opressiva para os povos e traz uma idéia constante e fomentadora de guerra;

(iv) o uso da dívida pública não deve ser um instrumento de pressão internacional, uma vez que não é desejado que o Estado utilize seu poderio militar para cobrar seus devedores;

(v) proibição da ingerência de um Estado, por meio do uso da força, no governo ou na organização de outro Estado. Nem mesmo em uma guerra civil seria permitida referida intervenção;

(vi) proibição durante a guerra de meios incompatíveis com a paz futura, como uso de venenos, celerados usados pelos soldados, meios indignos de combate, violação de pactos de armistício, entre outros, visto que tais instrumentos quebram a confiança entre os Estados, agridem a consciência dos homens, impedindo a paz futura. Essas regras de conduta apontadas por Kant podem ser consideradas atualmente como pertencentes ao jus in bello.

Entre os artigos definitivos foca-se na necessidade dos Estados se organizarem de forma republicana, visto que a paz deve estar vinculada ao direito do cidadão de participar das decisões sobre a guerra, já que é ele quem combate e quem mais sofre com as conseqüências beligerantes. Deixar a decisão da guerra a cabo de um déspota correr-se-ia o risco de que a questão ficasse ao alvitre de um jogo para o detentor exclusivo do poder. Assim, Kant propõe a união dos Estados em uma federação, com a união de esforços comuns, uma vez que os

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tratados de paz possuem uma natureza imediatista visando um caso concreto, sem se preocupar com a posterior manutenção da paz permanente.110

Para Kant, o direito à guerra somente servia para justificá-la e não para impedi-la, pois esse direito significa justo que os seres humanos “se aniquilem mutuamente e assim encontrem a paz perpétua no vasto túmulo que recobre todos os horrores da violência bem como seus autores”.111 Isso o diferencia significativamente de autores, como Grotius, que acreditava na legitimação da guerra pelo direito, que deveria regulamentá-la.

O pensamento de Kant contribuiu para o desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário, uma vez que o respeito à dignidade humana deve estar voltado para todo ser humano, independentemente dele ser cidadão de determinado Estado, e sem entrar no mérito da legalidade e da justiça da guerra. É exatamente isso que diferencia o direito de guerra, voltado para a discussão sobre as causas e motivos ocasionadores do conflito armado e o Direito Internacional Humanitário, voltado para amenizar as conseqüências da guerra, centrando-se na pessoa da vítima.

Kant tratou a questão da paz, em termos filosóficos apresentando um projeto para uma paz mundial, e não apenas européia. Para Kant, um tratado de paz não tem o condão de assegurar a paz, sendo necessária a criação de uma liga de nações com a idéia de um contrato social original entre os Estados, negando, todavia, a criação de um ordenamento jurídico entre eles.

Segundo Rousseau não se pode esperar uma política de paz de governos despóticos, porquanto "é sabido que, de um povo de escravos, se tomam dinheiro e homens à vontade para subjugar outros" (Juízo sobre o plano de paz perpétua). Assim, quando Kant pensa que a primeira condição de um tratado entre Estados para o estabelecimento da paz perpétua é que eles tenham uma forma de governo republicana, entende por governo republicano um governo não despótico.112

Com a expressão “constituição republicana”, Kant pretende significar aquela que se funda na liberdade dos membros de uma sociedade (enquanto homens); que é estabelecida segundo princípios de dependência de todos em relação a uma legislação comum (enquanto súditos); e de acordo com a lei da igualdade dos mesmos (enquanto cidadãos). Essa “constituição republicana” é a única que deriva da ideia de contrato originário, em que se deve fundar toda a legislação judicial de um povo.113

110

HUCK, op. cit., p.62. 111

KANT, Immanuel. A Paz Perpétua. Porto Alegre: L&PM, 1989, p. 35-6.

112

BOBBIO, op. cit., p. 345.

113

Segundo Kant, para a Europa evitar a guerra e suas consequências danosas que lhe são inerentes seria necessário uma redução na competitividade no equilíbrio do poder. Sua proposta para a paz perpétua, veiculada como uma minuta de um tratado, não era abolir as soberanias, que são necessárias para a manutenção do equilíbrio do poder, mas que os Estados, principalmente, os mais fortes com a autoridade soberana limitada, se unissem em uma liga e em um acordo perpétuo.114

A liga deveria manter o equilíbrio entre os Estados, por meio de negociações, e se preciso, redistribuindo territórios. A paz perpétua pode ser considerada como um dos primeiros exemplos na sociedade internacional europeia de uma proposta apresentada não por um estadista, mas por um pensador que, não obstante de base teórica racional, veio a ser adotada após as guerras napoleônicas, consubstanciada no Conserto Europeu do século XIX.115

O pensamento de Kant não era caracterizado pela negação do Estado nacional, mas a negação da guerra e da anarquia internacional, denunciadas como os fatores fundamentais que mutilam o homem e impedem seu livre desenvolvimento. O projeto kantiano de paz perpétua era inovador, visto que, contesta que o Direito Internacional e o equilíbrio entre as potências sejam instrumentos eficazes para garantir a paz, o que é confirmado pela história, a exemplo das diversas guerras ocorridas na Europa. Assim, entende que somente o Federalismo permite estabelecer a paz, definindo este valor em termos radicalmente novos, como expressão da exigência de unificar os povos, que entraram na cena da história com a Revolução Francesa, criando um governo supranacional.116

Tal federação “não se propõe obter o poder do Estado” – antes, cada um deles mantém sua soberania – “mas simplesmente manter e garantir a paz de um Estado pra si mesmo e, ao mesmo tempo, a dos outros Estados federados, sem que estes devam por isso (...) submeter-se a leis públicas e à sua coação. É possível representar-se exequibilidade (realidade objetiva) da federação, que deve estender-se paulatinamente a todos os Estados e assim conduzir à paz perpétua.117

Em sua obra “À Paz Perpétua” a paz não fica caracterizada como uma utopia, mas apresenta-se como o único meio a ser percorrido para a manutenção de uma sociedade mundial pacífica. Propõe o desenvolvimento de uma nova ordem jurídica internacional, a

114

WATSON, op. cit., 297-8. 115

Ibid. 116

BOBBIO, op. cit., p. 478.

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partir de normas de eficácia supranacional, decorrente de um Direito Internacional legítimo, visando o estabelecimento da paz por meio da razão.

Kant, no primeiro artigo de sua obra diz: “Não se deve considerar como válido nenhum tratado de paz que se tenha feito com reserva secreta de elementos para uma futura guerra”. Na quarta proposição (“Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita”), escreve que a natureza serve-se do antagonismo entre os homens e da sua

“sociabilidade insociável” para levar a cabo o progresso da humanidade e assim realizar o seu fim. A história é entendida como progresso ou finalidade moral e não natural, havendo uma evidente “causa teleológica, que se refere à previsão de uma sabedoria que preside à natureza”, que conduz a sociedade a tornar-se em um todo moral e à “consecução de uma sociedade civil que administre o direito em geral”.118

Assim, de acordo com o pensamento de Kant, a paz é definida paz como "o fim de toda hostilidade" e não simplesmente como a supressão das hostilidades, que se estabelece no intervalo entre duas guerras. A paz não é uma situação que existe no Estado de natureza, mas deve ser construída, instituída e garantida por um ordenamento jurídico.119

A ideia de um direto cosmopolita não é nenhuma representação fantástica ou extravagante do direito, mas um complemento necessário de código não escrito, tanto de direito político como do direto das gentes, num direito político da humanidade em geral e, assim, um complemento da paz perpétua (...)120

Em síntese, apesar da variação entre os autores, a teoria da guerra justa prescreve em relação ao jus ad bellum, que a guerra deve ser o último recurso a ser usado, proporcional ao dano injustamente causado. Muitas guerras, ainda que possam ser consideradas justas, não tiveram motivação humanitária. O comportamento humano possui diversas determinações causais, muitas das quais não se revelam nada nobres. Porém, existe, ao lado de reações necessárias, uma margem de indeterminação que abre espaço para a liberdade, o que permite uma apreciação moral.121

À luz do pensamento de Kant, deve se considerar injusta toda a guerra feita em nome de um princípio que se erigido em regra geral, alargaria o recurso à

118

KANT, op. cit., p. 104. 119

BOBBIO, op. cit., p 478. 120

KANT, op. cit., p. 140.

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MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Ingerência humanitária e a guerra justa. In: Revista de Direito da Unigranrio, v. 1, n 1, 2008, p. 9.

força, em lugar de o reduzir, afastando assim as relações entre os Estados do estado da paz que deve, entre eles, vingar.122

Todos esses pensadores procuraram refletir sobre questões fundamentais para a justificação do uso da força, procurando identificar, incialmente a justa causa da guerra, e, posteriormente, a licitude da mesma, capaz de torná-la permissível. Assim, contribuiu-se para uma discussão de base teórica, principalmente no campo inerente ao jus ad bellum,

verificando as causas e as limitações da guerra, mas também no campo embrionário do jus in bello, analisando a conduta dos participantes durante a condução da guerra, com vistas a

resguardar notadamente os direitos humanos das vítimas.

Contrariamente à maioria dos seus pensadores, Kant pretende estabelecer não as modalidades técnica-empíricas da paz perpétua, mas as condições filosóficas do seu advento. Essas condições não dizem respeito somente aos Estados, mas a paz geral entre os homens, quer enquanto indivíduos, quer enquanto membros de suas respectivas nações. Por fim, seu programa consiste na possibilidade para todos os seres humanos de um estado de coexistência pacífica que seja compatível com o gozo universal da liberdade.123 “A ideia de direito é uma força moral profundamente ancorada na alma humana.”124

Muitos dos pensamentos kantianos estão presentes na atualidade, notadamente no que diz respeito ao Direito Internacional dos Direito Humanos, surgido após a Segunda Guerra Mundial, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Todavia, mesmo levando-se em conta a importância da criação da ONU para a questão dos direitos humanos, como será analisado posteriormente, pode-se dizer que o processo normativo iniciado com a referida Declaração necessita contar com outros mecanismos que o complemente, além dos já existentes, para efetivamente prevenir e combater possíveis violações cometidas pelos próprios Estados membros da ONU. Acerca dessas considerações, afirma Habermas125:

Todavia, graças à mudança de mentalidade, os parâmetros político-culturais das relações entre os Estados modificaram-se de tal modo que a Declaração dos Direitos do Homem da ONU, com a proscrição de guerras ofensivas e a incriminação de crimes contra a humanidade, pôde conquistar o (fraco) efeito de compromisso normativo característico de convenções publicamente reconhecidas. Isso não é o suficiente para a institucionalização de procedimentos, práticas e regulamentações relevantes em termos da economia mundial que iriam permitir a solução dos problemas globais.

122

PEREIRA, op. cit., p. 155. 123

Ibid., p. 163. 124

REDSLOB, Robert. La doutrine idéaliste du droit des gens proclamée par la Révolution Française et par le philosophe Emmanuel Kant. RGDIP, v. 28, 1921, p. 454. Apud. PEREIRA, op. cit., p. 163-4.

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