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CAPÍTULO 1 O USO DA FORÇA E SUA REGULAMENTAÇÃO

1.2. O CONCEITO DE GUERRA JUSTA E DO USO LEGÍTIMO DA FORÇA SEGUNDO

1.2.1. Francisco de Vitória e Francisco Suarez

A expressão “guerra justa” traz em si uma reflexão sobre a legitimidade da guerra. A teorização dessa ideia, inicialmente de cunho religioso, remonta aos fetiales, que determinavam a existência ou não de causas justas para uma guerra (bellum justum). Se considerada justa, cabia ao Senado e ao povo romano a declaração da guerra justa. São Agostinho cristianizou a doutrina romana, admitindo a participação de cristãos nas guerras, desde que consideradas justas, notadamente, aquelas que serviam como meio para obtenção da paz, para punir ações más e para retrucar ofensas.

São Isidoro de Sevilha continuou a tradição romana que teve a sua grande formulação em São Tomás de Aquino. Este, especialmente, foi responsável por organizar a visão clássica sobre a guerra, contribuindo para os escritos de Francisco de Vitória e de Francisco Suarez,

este no final, e aquele no início do século XVI. Para São Tomás de Aquino, a guerra é considerada justa quando seu objetivo é promover o bem e evitar o mal, em uma concepção de moral teológica, na qual a noção de guerra justa passou a fazer parte da teoria católica sobre a guerra, e objeto de estudo de todos os importantes escolásticos.

Francisco de Vitória foi um teólogo espanhol neo-escolástico, com formação do pensamento tomista e um dos fundadores da tradição filosófica da "Escola de Salamanca”. A dignidade e os problemas morais da condição do homem estão no centro de toda sua obra filosófica. Tratou de temas jurídicos, de teologia e de aspectos morais da economia.

No tocante à guerra, os teologistas, de um modo geral, consideram que a sua legitimidade decorre da autoridade do príncipe, isto é, a justa causa, a intenção legítima e o modo de conduzi-la. A guerra deveria ser declarada, só em último caso, pelo soberano a quem deveria se recorrer para reparar alguma injustiça, uma vez que as guerras privadas passaram a ser condenadas, já que elas fogem a qualquer controle69.

As regras sobre a guerra continham mais ingrediente políticos do que jurídicos, todavia, o objetivo de restaurar a paz, bem a definição de comportamentos objetivamente tolerados durante a guerra, trazia pela doutrina da igreja alguns princípios de comportamento humanitário, que seria o embrião do jus in bello, no capítulo seguinte analisado. Nesse contexto, Francisco de Vitoria, lecionando Teologia em Salamanca definiu as bases de seu pensamento jurídico em duas aulas especiais com o tema dos “Índios recentemente

descobertos” e outro sobre “As leis da guerra dos espanhóis contra os bárbaros”,

consolidado na sua obra “Relectiones de Indis”70. Notadamente, falava-se sobre a guerra contra os índios americanos, visto que nessa época a Espanha, assim como Portugal, realizava suas expansões marítimas.

Francisco de Vitória imbuído de um espírito humanitário admitia como justa, a resistência indígena, contra os conquistadores. Isso porque, a América não era uma terra de ninguém, uma vez que lá habitavam povos de diferentes culturas, a partir de 20.000 a.C. quando começaram as migrações dos povos asiáticos às terras americanas. Portanto, ela não fora “descoberta” e sim invadida, com tamanha violência e injustiça.

Os europeus misturaram interesses econômicos com missão civilizatória e ainda se esconderam sob o manto da religião. Como representantes da providencia divina, impuseram sua fé cristã, por meio da catequese, aos nativos americanos que desconheciam por completo

69

HUCK, op. cit., p. 42.

70

A obra “Relectiones de Indis”, fruto das exposições que Francisco de Vitoria fazia à comunidade universitária, abrange as partes “De Indis Prior”e “De Indis Posterior, Sive De Jure Belli”.

essa crença. Mais tarde, os índios e depois os africanos seriam escravizados pelos colonizadores, segundo os quais eles nem sequer seriam considerados seres humanos dotados de alma.

Assim, a colonização pelos espanhóis e portugueses significaram a destruição física da maioria absoluta dos índios, por meio de epidemias repetidas, escravidão e trabalhos forçados, confisco de terras, ruptura violenta da organização social, familiar, religiosa e cultural, com a destruição de inúmeros centros urbanos e obras de arte71. A invasão das civilizações incas, maias e astecas constituiu um genocídio deliberado, em uma época que o Direito Internacional humanitário praticamente inexistia, bem como não se observava a defesa dos direitos humanos.

No Brasil, Dalmo de Abreu Dallari comenta que, no ano de 1500, historiadores calculam que existiam no Brasil entre quatro e cinco milhões de índios, que foram dizimados, ou pelas armas ou por falta do ambiente natural que garantia sua sobrevivência. Hoje restam menos de trezentos mil índios, muitos deles sendo vítimas da espoliação e das pressões da sociedade circundante72.

Mas, em contrapartida, admitia também a legalidade da invasão dos espanhóis, reconhecendo-se a guerra justa de ambos os lados. Para Francisco de Vitoria, os índios não podiam impedir os espanhóis de realizarem suas expedições e de exercerem o comércio na América, em virtude do dever de hospitalidade, caso isso não lhes causasse prejuízo, o que de fato não aconteceu. Mas, segundo o autor, os“ índios ou bárbaros recentemente descobertos" estão de posse legítima e pacífica de seus bens e de seus reinos73.

Em relação à catequese dos povos indígenas, Vitoria entendia ser obrigação dos espanhóis propagarem a fé cristã. Os índios, por sua vez, deviam receber a nova religião, mas a recusa da conversão não conferia justa causa para a guerra. Para ele, se é preciso ser tolerante com os pecadores cristãos e deseja-se a sua conversão e não a sua morte, ainda que sejam fornicadores, muito seria para admirar que precisamente "pela mesma causa da fornicação dos infiéis fosse permitido aos cristãos ocupar as suas terras. Não há nenhum fundamento sólido para esta doutrina.74"

71

CARDOSO, Ciro Flamarion. América pré-colombiana. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, p. 8.

72

DALLARI, Dalmo de Abreu. O Brasil rumo à sociedade justa. In: SILVEIRA, Rosa Maria Godoy, et al. Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2007, p. 30.

73

VITÓRIA, Francisco de. De Indis. §19. In: OSSORIO, Angel. El pensamiento vivo del P. Vitória. Buenos Aires: Losada, 1943.

74

Para Francisco de Vitória a sociedade é exigência da natureza humana criada por Deus: "uma vez que as repúblicas e sociedades estão constituídas por direito divino ou

natural, pelo mesmo direito o estão suas autoridades, sem as quais as repúblicas não podem manter-se". 75

O pensamento de Francisco de Vitoria no que tange à guerra esta desenvolvido notadamente na segunda de sua obra “Relactiones de Indis”, isto é, “De Indis Posterior, Sive

De Jure Belli”. Segundo Vitoria, a a guerra não é justa se dela advêm mais males do que utilidades para a república, e caso uma guerra seja útil a uma república, mas prejudicial a todo o orbe é, por esta razão, injusta. Para Vitoria a única das causas justas é “a violação de um direito”, mas não considera qualquer violação “porque a grandeza do delito deve ser a medida do castigo”. E aduz que “a diversidade de religião não é causa justa para uma guerra”.76

Ainda em relação à autoridade responsável pela declaração de uma guerra, Vitória, sustentou que nenhum direito assiste aos reis cristãos de mobilizar uma guerra contra os pagãos por motivo de estes serem ladrões, ou fornicadores, ou qualquer outro motivo; e se houvesse, a recíproca seria verdadeira e os reis pagãos teriam todo o direito a declarar guerra aos reis cristãos que fossem pecadores. Em matéria de pecado "os fiéis não têm sobre os infiéis maior poder do que estes sobre os cristãos".77

Assim, o princípio do poder e da autoridade é o mesmo para cristãos e pagãos e que em virtude dessa igualdade, o relacionamento entre os poderes exige reciprocidade de tratamento, independentemente da religião ou da moral. Nenhum governante tem direitos sobre outro em virtude da religião: "Não é lícito despojar de suas coisas aos sarracenos, judeus, nem a quaisquer outros infiéis apenas pelo fato de serem infiéis, e fazê-lo é furto ou rapina, da mesma forma que se fosse feito aos cristãos.” 78

Para Francisco de Vitoria, não só o governante, mas qualquer um tem autoridade para declarar uma guerra defensiva. Ressalta ainda que a guerra não é a única sanção justa possível, devendo ser sempre usada para restauração da paz e como ultima ratio. O príncipe,

nesse sentido deve-se esforçar ao máximo para evitar a guerra e procurar viver pacificamente com todos, uma vez que “é um sina de absoluta monstruosidade procurar e rejubilar com

75

VITÓRIA, Francisco de. De la potestad civil. In: FERNANDEZ, Clemente. Los filósofos escolásticos de los siglos XVI y XVII. Madrid: BAC, 1986, §6.

76

VITÓRIA, Francisco de. De jure belli (on the law of war). In: PAGDEN, Anthony; LAWRANCE, Jeremy. Political Writings. Cambrigde: Cambrigde University Press, 2005, p. 302. Apud PEREIRA, Maria da Assunção do Vale. A Intervenção humanitária no Direito Internacional Contemporâneo. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 119.

77 Ibid. 78

VITÓRIA, Francisco de. De indis prior (on the law of war). In: PAGDEN, Anthony; LAWRANCE, Jeremy. Political Writings. Cambrigde: Cambrigde University Press, 2005. Apud. PEREIRA, op. cit., p. 120.

causas que não conduzem a mais do que a morte destruição dos nossos cidadãos que Deus criou, e pelos quais, Cristo sofreu a morte” 79.

Francisco de Vitória demonstrando a primazia do direito natural, como o fundamento dos direitos humanos, conclui que os índios possuem por natureza o direito sobre seus territórios, impossíveis do direito positivo anular. Igualmente, a autoridade do papa sobre o universo é renegada:

O Papa não é senhor civil ou temporal de todo o orbe, falando de domínio e potestade civil em sentido próprio (...). E se prova suficientemente, do mesmo modo que temos feito antes para o imperador, porque não lhe pode corresponder domínio a não ser pelo direito natural, ou por direito divino, ou por direito humano. É certo que não pode ser por direito natural nem pelo direito humano, e não consta em nenhuma parte que seja pelo direito divino. Logo essa tese se sustenta de modo arbitrário e sem fundamento80.

Inegavelmente, Francisco Vitoria construiu um discurso filosófico humanista, atribuindo a cada pessoa uma essência humana universal com propriedades imutáveis e invioláveis, inerente à sua dignidade humana. Além disso, caso declarada a guerra por uma justa causa, sua condução não deve visar “a destruição dos oponentes, mas para a prossecução da justiça”81.

Com base no princípio do respeito à autonomia dos povos, negou o direito de conquista romano e o poder do papa e do imperador no medievo, contribuindo para a construção do chamado direito de gentes. Francisco de Vitoria foi por muitos autores considerado um teórico anticolonialista, bem como “o pai do Direito Internacional”, antecedendo Francisco Suarez e Grotius, já que defendeu a idéia de uma comunidade de Estados soberanos e iguais, regida por normas de Direito Internacional válidas em tempos de paz e de guerra. O fundamental nas ideias de Vitória é o relevo dado à igualdade dos povos, fundada na sociabilidade do gênero humano, à qual decorre de uma comunidade internacional sujeita a normas equânimes, substituindo a fórmula de Justiniano, jus inter omnes homines,

por jus inter omnes gentes, um direito entre todos os povos. Assim, Francisco de Vitoria acabou por criar um espirito novo de compreensão e tolerância.

Francisco Suárez foi um jesuíta, filósofo, professor, jurista e pensador espanhol dos séculos XVI e XVII. Estudou cânones em Salamanca e ensinou filosofia em Segóvia (1571- 1574), teologia em Valladolid (1574), Segóvia e Ávila (1575-1580). Lecionou no Colégio de

79

VITÓRIA, op.cit., p. 326, nota 75.

80 Ibid. 81

Romano e, posteriormente, lecionou em Alcalá (1585) e em Salamanca (1593). Das suas principais obras destaca-se a “De Legibus ac Deo Legislatore”, na qua se refere a problemas internacionais.

À epoca da unificação de Portugal e Espanha, foi nomeado pelo rei Felipe II da Espanha para reger a cadeira de teologia em Coimbra (1597). Baseando-se muitas das suas reflexões no pensamento tomista, discorre o tema da guerra em seu trabalho “De triplice virtude theologica”, analisando-a sob o prisma da caridade, bem como as alternativas cabíveis

para evitá-la.

Nesse viés, Suárez questiona se existem causas justas para a guerra sem que ocorra violação da caridade e se existe uma guerra justa de ambos os lados, chegando à conclusão, diferentemente de Franciso de Vitoria, que tal hipótese não seria possível, salvo se a guerra fosse injusta para ambos.

Mas, igualmente a Vitoria, Suárez entende que um dos requisitos para a guerra justa é a “grave violação do direito” quando não houver outro meio para se recorrer senão à guerra. Em sua obra “De Bello”, tratou da doutrina da Igreja sobre a guerra contra os inimigos da fé:

A guerra, em si, não é intrinsecamente má, nem está proibida aos cristãos. E uma verdade de Fé contida expressamente na Sagrada Escritura, pois no Antigo Testamento louvam-se as guerras empreendidas por varões muito santos: ‘Oh Abraão! Bendito és do Deus excelso que criou o Céu e a Terra; e bendito seja o excelso Deus por cuja proteção caíram em tuas mãos os inimigos’ (Gen. 14, 19-20). Passagens parecidas lêem-se sobre Moisés, Josué, Sansão, Gedeão, David, os Macabeus e outros, aos quais muitas vezes Deus mandava fazer a guerra contra os inimigos dos Hebreus; e S. Paulo diz que os santos conquistaram impérios pela Fé. Isto mesmo confirmam outros testemunhos dos Santos Padres citados por Graciano; e também Santo Ambrósio em vários capítulos do seu livro sobre os deveres.82

Francisco Suárez distingue também a guerra defensiva da agressiva, considerando que a primeira não é só permitida como, por vezes, obrigatória e a última, por sua vez, não é em si má, mas pode ser honesta e necessária, desde que haja um poder legítimo para declarar a guerra, uma causa justa ou um título jurídico e que se “observe um modo digno e a equidade no início da luta, durante as hostilidades e depois da vitória”.83

O autor, também é considerado um dos precursores da idéia do pacto social, posteriormente tratado por Thomas Hobbes, Jean Jacques Rousseau, John Locke, entre outros. Foi considerado “o primeiro democrata moderno”, porque defendeu a soberania dos povos. A

82

SUÁREZ, Francisco. De Bello, sectio prima, 2. Apud LUCIANO PERENA VICENTE, Teoria de la guerra en Francisco Suárez, de Bello,ud C.S.I.C., Madrid, 1954, vol. II, pp. 72 e 74.

83

concepção de Suárez, quanto à de Vitoria são semelhantes em relação à sociedade internacional, sendo que o Direito Internacional surge como uma necessidade dela, que necessita de normas para regulamentá-la84.

Francisco Suárez “concebe uma comunidade internacional universal, integrada pelo gênero humano, da qual fazem parte todas as comunidades políticas, que devem necessariamente operar em si, como consequência da sua interdependência”. Afirma que o direito das gentes ainda que coincida em muitos pontos com o direito natural, dele se distancia porque “não proíbe o mal por ser uma mal, mas ao proibi-lo faz com que seja mal”, o que é próprio da lei. Além disso, o direito das gentes não pode ser tão imutável e estático como o direito natural.85

Assim, apesar das ambiguidades entre os dois autores (Francisco Suárez e Francisco de Vitoria) há uma evolução da teoria da guerra justa, decorrente das circunstâncias históricas em que escreveram as relações com os povos descobertos, bem como uma contribuição para a evolução do direito das gentes.