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CAPÍTULO 1 O USO DA FORÇA E SUA REGULAMENTAÇÃO

1.2. O CONCEITO DE GUERRA JUSTA E DO USO LEGÍTIMO DA FORÇA SEGUNDO

1.2.3. Hugo Grotius

O holandês Hugo Grotius (1583-1645) iniciou sua carreira jurídica aos onze anos quando entrou para a Universidade de Leyden para estudar Direito. Aos dezesseis trabalhou como jurista em Haia e publicou anonimamente “Mare Liberum” (1606), defendendo a internacionalidade das águas oceânicas. Em 1613, tornou-se Governador da cidade de Rotterdam, todavia, após um golpe de Estado calvinista, foi preso e condenado à prisão perpétua, acusado de traição. Fugiu para Paris, onde se estabeleceu.

Embora, há tempos, já se reflita sobre o conceito de guerra justa, com Grotius o tema ganhou outros novos contornos. Ainda que sua obra tenha sido elaborada com fortes elementos do protestantismo, a sua concepção de guerra justa foi desenvolvida de forma laica. Em uma obra “De Jure Predae Commentarius” (1605), sua doutrina chegou a ser empregada a um caso concreto, concernente à captura de uma caravela portuguesa por um almirante holandês que se encontrava a serviço da Companhia das Índias. Nesse cenário a guerra é inserida na esfera jurídica, não sendo incompatível nem proibida pelo Direito Natural.

A dessacralização do Direito ganhou forças com Grotius, cuja sua célebre afirmação:

jus naturale est dictatum rectae rationis, indicans actui alicui ex ejus convenientia aut disconvenientia cum ipsa natura rationali ac sociali96, demonstrava que o Direito natural é fruto da reta razão condizente com a natureza sociável do homem.

Após as guerras medievais, a Europa ocidental passou a verificar a formação dos Estados Nacionais Modernos, tornando fundamental a idéia da busca de um equilíbrio político europeu, decorrente da preocupação com as guerras geradas, visto que as potências da época estavam dispostas a recorrer ao uso da força sempre que julgasse necessário a seus objetivos.

Nesse contexto, a obra de Grotius foi marcada pela preocupação em obter-se um cenário de trégua, visando à paz, bem como sobre as relações entre os Estados. Discorre sobre direito de propriedade, contratos e responsabilidade civil, dentre outros temas, que permitiram uma reflexão sobre a guerra e sobre o Direito Internacional, estabelecendo, nitidamente, a distinção entre direito civil atinente à vida dos cidadãos e o direito da guerra e da paz, atinente

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GENTILI, op. cit., p. 39.

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Direito natural é uma imposição da reta razão que indica, para determinado ato, que é ele uma torpeza moral ou uma necessidade moral, segundo sua conveniência ou não conveniência com a própria razão natural ou social.

à relação entre os povos, o direito das gentes. Dentre suas obras, destaca-se “De iure belli ac

pacis” (“O direito da guerra e da paz”), a qual contribuiu para a construção do Direito

Internacional Moderno.

Hugo Grotius rompe com o pensamento maquiavélico de que os fins justificam os meios, uma vez que o poder do soberano não poderia ser justificado quando não respeitasse limites impostos pela racionalidade, não encontrando fundamentação para que esse poder fosse absoluto. Entedia que a comunidade internacional necessita de que normas jurídicas regulamentem as condutas entre os Estados e, estes, por sua vez, contribuam para isso, no sentido da manutenção da paz.

A comunidade internacional deve ter como fundamento da justiça e das normas estabelecidas, o direito natural da sociabilidade humana, distinguindo a humanidade dos animais pela natural propensão do homem à sociabilidade, elemento que viabiliza a paz. Por seu turno, o Direito Internacional (jus gentium), enquanto direito voluntário humano deriva do consentimento de todas as nações, ou, pelo menos, de muitas”97.

Apesar de tratar de matérias relativas às guerras, o pensamento jurídico de Grotius é centrado no indivíduo. Sob essa perspectiva, sua obra elenca uma exposição sistemática e exaustiva dos direitos do homens dentro de um tratado sobre a guerra. Tendo em vista que nele se tratam das causas da guerra, a enunciação de tais direitos surge precisamente porque as causas justas da guerra decorrem da sua violação; fora dessa hipótese, haverá somente um pretexto para fazer a guerra.98

Por outro lado, Grotius classifica a guerra como privada (entre particulares) ou pública (feita pela autoridade de um pode civil), subdividindo-se esta em guerra pública solene (deve reunir as condições de ser feita por um soberano e haver uma declaração de guerra) e guerra pública não solene. Em relação à guerra pública decorrente da vontade do soberano, os seus atos são vistos independentes de qualquer outro poder.

Ao oferecer uma subdivisão da noção de soberania em “comum” e “própria” Grotius contribui sobremaneira, para as ciências do direito e das relações internacionais, uma vez que seu estudo é enfocado por dois prismas: pelo Direito Constitucional e pelo Direito Internacional Público. A teoria de Grotius dedica-se ao estudo da soberania “própria” pertence ao Direito Constitucional, ramo que estuda as causas da sua investidura, o fundamento e a dimensão da soberania do povo. E também ao estudo da soberania “comum” pertence ao Direito Internacional, não sendo da competência desse ramo mensurar a forma política interna

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GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijui, 2004, v. 1, p. 19.

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dos Estados, mas apenas o reconhecimento de Estados independentes e iguais uns em relação aos outros.

O autor analisa se a guerra é tolerada pelo direito, partindo de entendimento que entre as nações existe um direito comum que vigora em relação à guerra e no decurso da mesma; o que implica a distinção entre duas áreas dessa matéria, quais sejam, o jus ad bellum e o jus in belum, no próximo capítulo analisados. A proposta de Grotius era limitar a guerra em dois

sentidos, quer pela doutrina da guerra justa, com as suas severas limitações às causas que permitem a ela recorrer, quer pela procura de algumas limitações humanas aos meios pelos quais a guerra era travada.99

Ao tratar das causas da guerra, admite-a em três situações: (i) na defesa; (ii) na reparação do dano; e (iii) na punição. As duas últimas encontram-se, em geral, associadas, embora o autor reconheça que não é qualquer injúria que pode ser causa de guerra justa, porque há ofensas triviais e comuns que é melhor ultrapassar do que punir, isto é, a guerra deve ser travada quando não houver “inconveniência para todos, ou grande parte dos súditos, uma vez que os interesses da comunidade, mais do que o das partes, são objeto principal do cuidado do soberano”100. Além da guerra em defesa dos súditos, ela ainda pode ser feita em favor dos seus aliados, dos amigos e mesmo de qualquer um.

Grotius elaborou uma análise complexa sobre quais ações são consideradas legítimas e ilegítimas durante um conflito armado. Configura-se, como um exemplo, o caso em que um determinado Estado, que tenha celebrado diversas alianças, seja solicitada ajuda ao soberano por aliados que sejam inimigos entre si. Nesse caso, deve-se dar preferência ao aliado que exercita uma guerra justa. No caso em que os dois aliados, inimigos entre si, demonstrarem agir segundo os parâmetros da doutrina da guerra justa, deve-se optar por fornecer auxílio indireto às duas partes. Para Grotius “existe uma lei comum entre as nações, que é válida tanto na guerra como para a guerra”.101

Em relação às obrigações oriundas de um determinado tratado público, Grotius afirma que este obriga uma parte, somente ao mesmo tanto, a que a outra parte fornece as prestações que tinha prometido à primeira. Caso o tratado tenha sido celebrado por uma autoridade pública sem que se tenha a autorização e a ratificação por parte do soberano, este último não se encontra obrigado em relação à outra parte contraente. Igualmente, um Estado que recorre

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DRAPER. Grotius’ Place in the development of legal ideas about war, Hugo Grotius and international relations, Hedley Bull, Benedict Kingsbury, Adam Roberts (eds.), Oxford: Clarendon Press, 1990, p. 199. Apud. PEREIRA, op. cit., p. 145.

100

GROTIUS, op. cit., p. 430.

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à guerra injustamente, fica proibido de exigir o cumprimento dos tratados anteriormente firmados, sendo admitido ao próprio súdito desse Estado recusar-se a combater uma guerra injusta.

Em sua análise sobre a legitimidade da guerra, entende Grotius que dentre o militarismo e o pacifismo deve existir uma solução, cuja resposta seja no sentido de que até que os homens não acreditem que tudo é permitido, devem igualmente não se convencer de que nada o é. Assim a guerra, além de ter que ser justa, deve ser legal. A imposição da legalidade da guerra, ao lado da exigência da justiça, deve ser indispensável em uma sociedade entre Estados como o é em uma sociedade entre homens. Nesse sentido, a guerra deve solucionar divergências entre os Estados, e partindo-se da premissa que tem como fundamento a justa causa, ela é reconhecida pelo direito, assim como um processo judicial promovido por cidadãos perante a justiça interna do Estado102.

A guerra não pode deixar de ser regulamentada pelo direito. Quando a guerra for permitida, isto é, quando o motivo for justo, legítimo e legal significa que “a guerra não deveria ser deflagrada exceto para a aplicação de direito” 103. Existem situações em que a guerra serve ao direito: “porque o fim da guerra, a conservação da vida e dos membros (...) está plenamente conforme esses princípios naturais” 104. A guerra deve ser instrumento do direito, mas não se pode admitir seu recurso para violar ou alterar o sistema legal.

É função do direito definir as causas pelas quais se admite o recurso à guerra. A concepção internacionalista inovadora de Grotius assenta-se na solidariedade entre os Estados que compõem a sociedade internacional. A eficácia da lei deve decorrer dessa solidariedade105. Na teoria grociana, não há a guerra justa para os dois lados, mas pode ser injusta para ambos. A doutrina da razão do Estado106 (segundo a clássica doutrina de Maquiavel e de Hobbes) foi suplantada pelo embrião do Direito Internacional, e as idéias de Alberico Gentile foram ratificadas por Grotius para quem as leis da guerra deveriam ser obedecidas, independente de ser ela justa ou não, limitando seus efeitos, bem como regulamentando o comportamento dos combatentes no campo de batalha.107

Todavia, o conceito de razão de Estado desenvolvido por Maquiavel inconciliável com a necessidade de motivo justo, legítimo e legal para o recurso à guerra far-se-á presente nos

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HUCK, op. cit., p. 55. 103

GROTIUS, op. cit., p. 20.

104

Ibid., p. 72.

105

HUCK, op. cit., p. 56. 106

Razão de Estado é a exigência de segurança do Estado que os governantes, para garanti-la, são obrigados a violar determinadas normas jurídicas, morais, políticas e econômicas que consideram imperativas, quando essa necessidade está perigo.

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séculos XVII e XVIII e parte do século XIX, decorrente do conceito de soberania absoluta e dos princípios de direito costumeiro internacional então vigente que equalizava a relação direito e poder.

As ideias de Grotius sobre guerra e a lei da natureza continuaram a ser consideradas e desenvolvidas por filósofos mais liberais como John Locke em seus Two Treatises on Civil Government (1689). Locke concorda com Grotius ao declarar que o poder e a força não criam

direito e ainda que guerras justas têm por finalidade preservar direitos. Além disso há uma certa desvalorização da reta intenção enquanto condição de guerra justa porque muitas vezes a sua execução torna-se viciada por aquele que a empreende. Para o autor era necessário que a guerra além de justa fosse legal. Assim, Grotius ajudou a delinear o conceito de sociedade internacional, isto é, uma comunidade ligada pela noção de que os Estados e seus governantes possuem um regime próprio do direito das gentes que devem respeitar, uma vez que consagra- se a igualdade entre os beligerantes, independentemente da causa.

Ainda que Grotius repudiasse a guerra, entendia ser ela reconhecida pelo direito divino, direito natural e pela lei das nações. Sua conclusão é no sentido de ser impossível pensar a guerra sem que ela fosse regulada, concomitantemente com as condutas dos combatentes, pelo direito. Todavia, a ideia de Grotius de que a guerra somente deveria ser conduzida quando respeitasse os critérios estabelecidos pelo direito passou a ser empregada apenas no século XX. Importante, ressaltar que Grotius sustentava a licitude do recurso à força para subtrair uma população ao governo tirânico ou desumano do seu próprio soberano, reconhecendo, portanto, o que poderia ser chamado de intervenção por motivos de humanidade108.