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III. RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

2. Manifestações do tema em direito comparado

2.4. Alemanha

Na Alemanha, tal como alhures, são as ações de wrongful conception que têm suscitado maior interesse, quer por parte da doutrina, quer do lado da jurisprudência.

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Considera PEREIRA, André Dias, O consentimento, p. 385, nota 867, que aqui se distingue o dano pré-natal (pré-

natal injury), que merece tutela delitual, do “dano de vida indevida” cuja tutela é afastada.

155 Assim, BELLIVIER, Florence e ROCHFELD, Judith, apud CORREIA, Vanessa, ob. cit., p. 103, nota 16 e FABRE-

MAGNAN, Sériaux, apud MORILLO, A., ob. cit, p. 131.

156 Como assinala PEREIRA, André Gonçalo, O consentimento., p. 386, nota 869. 157

Jurisprudência mencionada por SILVA, Marta Santos, Sobre a inadmissibilidade das ações por “vida indevida”

(wrongful life actions) na jurisprudência e na doutrina. O Arrêt Perruche e o caso André Martins, in Direitos de Personalidade e sua Tutela, 2013, p. 161, nota 133.

Estas decisões estão disponíveis em http://www.revuegeneraledudroit.eu/blog/decisions/cedh-6-octobre-2005-draon-c- france-affaire-numero-1181003/#.UoTbYHC8Dow e http://hudoc.echr.coe.int/sites/fra/pages/search.aspx?i=003- 1464002-1529999#{"itemid":["003-1464002-1529999"]}.

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Depois disso, tanto a Cour de Cassation como o Conseil d’État, em decisões diferentes do ano de 2006, entenderam que a loi Kouchner se aplicaria apenas aos nascimentos ocorridos após a sua entrada em vigor. O Conselho Constitucional, em 2010, considerou válida a interpretação segundo a qual a lei anti-Perruche se aplicaria aos casos propostos após a sua entrada em vigor, ainda que o nascimento tivesse ocorrido anteriormente.

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VINEY, Geneviére, afirma mesmo existir um paradoxo quando se aceita que os pais possam ter direito a uma indemnização, mas não a criança, pelo que melhor seria que se rejeitassem ambas as demandas. Citada por PEREIRA, André G. Dias, O consentimento, p. 389.

O problema discutiu-se, primeiro, a propósito dos erros médicos no aconselhamento e prática do planeamento familiar, inicialmente considerados insuscetíveis de gerar um dano ressarcível, mas caminhando-se depois para a aceitação generalizada do dano e da indemnização160.

Todavia, as ações de wrongful birth e de wrongful life não foram esquecidas, tendo sido alvo de debate, a partir de 1980, marco da despenalização do aborto (nicht

rechtswidrig)161, num sistema misto de indicações e de prazos, admitindo-se então a possibilidade de ressarcimento dos casos de wrongful birth, tutelando-se como danos indemnizáveis os alimentos devidos à criança162.

Ao contrário de outros sistemas, no direito alemão nem sempre se distingue entre os casos das crianças deficientes e o das crianças sãs, uma vez que se parte do princípio de que em ambos os casos se produz um nascimento indesejado.

Por essa razão, não há uma verdadeira distinção entre as ações de wrongful birth e as de wrongful conception, sendo as mesmas analisadas de forma homogénea, através do prisma da “teoria da separação” (Trennungslehre).

A teoria assenta na distinção entre o dano do nascimento da criança, por um lado, e o dano decorrente dos gastos de manutenção e educação necessários para o seu desenvolvimento, por outro, entendendo-se que o ressarcimento só colhe quanto aos danos da segunda espécie.

Na verdade, o debate centra-se, não tanto na privação da liberdade de os pais abortarem, mas antes em que o reconhecimento da indemnização pelo dano do nascimento pode ser considerado uma lesão da dignidade da pessoa humana. Assim, a discussão em torno desta questão terá levado à “separação” antes referida, como forma de superar a dificuldade.

Deste modo, nas ações de wrongful birth em sentido lato (aqui se incluindo as de

wrongful conception), os danos considerados os alimentos devidos à criança (i.e, despesas

necessárias à educação e desenvolvimento), ressarcindo-se os mesmos sob a forma de uma

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Famoso ficou o caso analisado pelo Tribunal de Apelação de Bamberg, em 6 de fevereiro de 1978, em que, na sequência de um pedido de indemnização cível baseado na ocorrência de uma esterilização mal realizada, que deu origem ao nascimento de gémeos, o Tribunal veio a considerar não existir dano passível de ressarcimento. Esta decisão foi rejeitada pelo Tribunal Federal Supremo, numa outra ação com factualidade semelhante, em 18 de março de 1980, sendo o médico condenado a pagar indemnização e alimentos à criança (Vide Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil português, vol. I, tomo III, p. 282 e ss e RAPOSO, Vera Lúcia, As wrong actions, p. 69).

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Sobre a lei criminal alemã relativa ao aborto, mormente § 218 a do dStGB (Strafgesetzbuch - Código Penal alemão), podem ver-se MORAITS, A. ob. cit., p. 44 e LEJEUNE, Christine, Wrongful life, das Kind als Vermögensschaden, 2009, p. 8.

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O tribunal de Apelação de Munique, em 1982, rejeitou a pretensão dos pais cujo filho nasceu com malformações graves por não ter sido diagnosticada à mãe rubéola durante a gravidez, tendo vindo o Bundsgerichtshof, por decisão de 18.1.1983, a reconhecê-la. A pretensão de wrongful life foi indeferida. A decisão é analisa por CORDEIRO, Menezes,

Tratado de direito civil português, I, Parte Geral, Tomo III, 2004, p. 284, nota 1050, bem como por RAPOSO, Vera

renda, calculada nos termos legais163. Admite-se, ainda, a indemnização do dano moral decorrente da dor e do sofrimento causados pela gravidez e pelo nascimento, bem como, nos casos de wrongful conception, pela dor e pelo sofrimento da operação de esterilização a que o progenitor ou a progenitora se submeteram inutilmente.

Já quanto às ações por vida indesejada, o sentido geral das decisões é de improcedência164, apontando-se a contradição entre considerar possível eliminar a vida do nascituro deficiente, mas não a do recém-nascido que se encontre na mesma situação; donde o absurdo de considerar “tecnicamente impossível […] a vida (extra-uterina) como um dano, para efeito de penalizar a não “interrupção” da vida intra-uterina”165

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Lembre-se que, tendo o Tribunal Constitucional considerado166, em obiter dictum, que em virtude da dignidade reconhecida pela Lei Constitucional a todas as pessoas, jamais a existência poderia ser concebida como um dano, em 1995 desapareceu a indicação embriopática (§ 218 do Strafgesetzbuch) como causa de exclusão do aborto, deixando apenas como motivo de indicação o risco para a saúde da grávida, nas primeiras doze semanas. O que significa que o risco de malformações no nascituro só pode levar à IVG quando isso põe em perigo a saúde da gestante, assim se diminuindo o campo factual das vertentes ações.