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III. RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

6. O aborto como pressuposto das wrongful actions

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Também para ARAÚJO, Fernando, A procriação assistida, cit., p. 105 e ss., a responsabilidade por informações não abarca os conhecimentos incertos que abundam no campo da genética; excluem-se da obrigação de informar, igualmente, os casos de dever de compaixão; há que contar com assimetrias informativas (deficiente perceção da informação pelos destinatários) e com os conflitos de deveres (v.g. quando o médico descobre determinado gene presente no feto cuja presença revele que o progenitor não é o marido ou o companheiro da mãe, caso em que se impõe a confidencialidade).

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MORILLO, A., ob. cit, p. 180.

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Os fundamentos das vertentes ações pressupõem duas realidades distintas: a médico- legal, baseada na existência de sofisticados meios técnicos de diagnóstico e na transmissão da pertinente informação, e a realidade legal, traduzida na possibilidade de cessação voluntária da vida intra-uterina, uma vez diagnosticadas - e transmitida aos progenitores a correspondente informação - as deficiências ou malformações detetadas no feto.

Com efeito, nos sistemas anglo-saxónicos, onde a questão se colocou pela primeira vez, a reação inicial foi de rejeição destas pretensões exatamente porque as mesmas se baseavam num suposto direito que os ordenamentos não acolhiam81.

Na verdade, o princípio nemo auditur propriam turpitudinem allegans precludiria a pretensão do demandante de se prevalecer de um ato ilegal – o aborto – como base de pedido. Mesmo que não punível em termos criminais, pode colocar-se a questão da licitude do aborto em termos civis82. Por outras palavras, o facto de o aborto não ser, em certas circunstâncias, objeto de censura penal não o torna, para alguns, lícito em termos civis83.

É difícil, no entanto, concordar com esta perspetiva; sobre defender uma solução manifestamente incoerente, o que faz é imputar ao legislador essa mesma solução, o que os melhores critérios hermenêuticos proscrevem, salvo melhor opinião (lembre-se o critério do legislador razoável do art. 9. º, nº 3, do Código Civil).

Nos ordenamentos em que o aborto não é admissível, à partida não se colocam os problemas das wrongful claims, embora sempre reste um espaço para considerar – como já se considerou judicialmente84 - que os pais podem pretender indemnização pelo facto de serem

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Assim no caso Gleitman v. Cosgrove, julgado pelo Supreme Court de New Jersey em 1967, em que foi indeferida pretensão da criança e pais porque “the right to life is inalienable in our society. A court cannot say what defects should prevent an embryo from being allowed life such that denial of the opportunity to terminate de existence of a defective child in embryo can support a cause of action”, tendo os juízes considerado, em obiter dictum, “only the endangerment of the mother’s health and life (the so called medical indication) would form reasonable grounds for an acceptable abortion” http://www.leagle.com/decision/19677149NJ22_160).

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É o que refere FRADA, Manuel A. Carneiro, em A proteção juscivil da vida pré-natal – Sobre o estatuto jurídico do

embrião, Revista da Ordem dos Advogados, ano 70.

Disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=30777&idsc=112472&ida=112751: “Os tribunais comuns podem, portanto, nas suas decisões concretas, decidir pela relevância civil do aborto como necessidade decorrente da imposição constitucional da proteção do direito à vida. Estando em causa a (mera) ilicitude civil, não se incorre na proibição do nullum crimen sine lege”.

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Na Alemanha e na Áustria, com efeito, parte da doutrina revela-se cética quanto à licitude da indicação eugénica. A este propósito escreve Anastasios Moraitis:

“In German and Áustria the lawfulness of abortion is regarded as one of the necessary prerequisites of the doctor’s liability (…). Jurisprudence and in part case law, however, also addressed the question, to which extent the impunity of abortion by law also precludes its unlawfulness as a tort (Tötungsdelikt). This means that a claim for compensation in tort could eventually not be asserted, when the damage could be averted only by means of an act, which is legal from a criminal law point of view, but still unlawful in terms of civil law;” (in When childbirth becomes damage: a comparative overview of “wrongful birth”

and “wrongful life” claims, Lex Medicinae, ano 4, n.º 8, p. 43-44). 84

Decisão do Tribunal de Perugia, de 7.9.98, referido por RAPOSO, Vera Lúcia, Responsabilidade médica em sede de

surpreendidos pelo nascimento de uma criança não saudável, quando esperavam uma criança saudável, não tendo sido – e podendo/devendo sê-lo – alertados para tal situação.

O problema não se coloca no caso do DPC ou do DPI, uma vez que nessas fases iniciais, antes de concebido um feto, a não informação sobre a possibilidade de realização de exames médicos ou o falso negativo afetam apenas o direito de procriar em liberdade. Nessa situação, a deteção de problemas congénitos terá como consequência uma decisão de não conceber ou de não transferir os embriões, isto é, a não implantação dos embriões no útero da mulher, não se desencadeando, pois, uma gravidez (alude-se à seleção terapêutica de embriões ou à terapia génica).

No caso do DPN, o aconselhamento genético, havendo identificação de doenças ou anomalias genéticas no nascituro em gestação, determina, se tal for possível, a realização de uma terapia génica fetal (situação que não é a pré-figurada nas ações de responsabilidade civil aqui em causa), ou, caso o não seja, a faculdade de interrupção terapêutica da gravidez.

Neste último caso, alude-se a aborto eugénico, embriopático (ou fetopático) ou reprodutivo (ou por lesão do nascituro)85.

Com efeito, a interrupção voluntária da gravidez, sendo em princípio passível de punição criminal, não é punível quando se verifiquem determinadas circunstâncias que as diversas legislações penais86 preveem e que se reconduzem basicamente aos dois seguintes modelos87, que podem combinar-se entre si:

1. Modelo dos prazos (Fristenmodell), em que o aborto não é punido dentro de certos prazos (em geral, no primeiro trimestre da gravidez), sem dependência de fundamento ou argumentação.

2. Modelo das indicações (Indikationsmodelle), no âmbito do qual o aborto é sujeito a punição, com ressalva da existência das chamadas indicações. O aborto livre de indicação, ainda que dentro de um certo prazo, não é permitido. As indicações são, em regra, as seguintes:

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DIAS, Figueiredo, em anotação ao art. 142.º do Código Penal, considera infundamentado denominar a indicação em apreço de eugénica porque a indicação em causa “nada tem a ver com preocupações eugénicas e tudo tem a ver com os interesses da grávida e com o sofrimento que porventura possa causar-lhe a continuação da gravidez e o nascimento de uma criança pesadamente lesada na sua saúde e (ou) no seu corpo”, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, p. 186.

86 Na Irlanda – único país da União Europeia que não previa situações de não descriminalização da IVG -, em Agosto do

corrente ano (2013), introduziu-se a não punição criminal do aborto em caso de “risco real e substancial” para a vida da mulher, o qual tem de ser certificado por médicos. O Protection of Life During Pregancy Act de 2013 (http://www.oireachtas.ie/documents/bills28/acts/2013/a3513.pdf) foi a resposta a uma política restritiva que vitimou, no ano de 2012, uma mulher de 31 anos que fora impedida de interromper uma gravidez que acabou por provocar-lhe a morte.

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Seguimos de perto a exposição de WIKUS, Priska, “Just birth – wrongful decision”, von Gesetzen, Urteilen und deren

2.1 – Indicação eugénica: permitido o aborto, se há risco de o conceturo ou de o nascituro nascerem com deficiência física ou mental. Em alguns países é, igualmente, estabelecida uma fronteira temporal, que acresce à indicação. 2.2. – Indicação médico-terapêutica: condições rigorosas para excluir a punição, designadamente perigo grave para a vida ou saúde da grávida, não removível de outra forma.

2.3 – Indicação médico-social (ética, jurídica ou humanitária): considera, não o perigo para a saúde da gestante, mas antes a componente social da vida da grávida (ex. gravidez resultante de agressão sexual). É esta a solução do direito alemão (Beratungsmodell).

3. Modelo das combinações: modelo intermédio entre o modelo dos prazos e das indicações, no âmbito do qual o aborto não é punido dentro de um prazo determinado. Depois disso, a gravidez está sujeita a indicações para que o aborto não seja punido.

O sistema consagrado no art. 142.º do Código Penal é do modelo combinado. Tal preceito, na redação da Lei nº 16/2007, de 17.4, passou a prever o aborto a pedido da mãe até às 10 semanas (n.º 1, al. e), caso em que, se as malformações ou doenças congénitas forem detetadas dentro de tal período, não se colocam obstáculos de natureza criminal.

Contudo, como os problemas subjacentes aos chamados birth torts têm a ver com o DPN e o aconselhamento genético, e como estes geralmente só podem fazer-se para lá das 10 semanas de gestação, o que está em causa é o chamado aborto embriopático ou fetopático (art. 142.º, n.º 1, al. c), do Código Penal), admitido até às 24 semanas de gravidez, devendo verificar-se nestes casos se a doença ou a malformação congénita é grave e incurável88.

Só o DPN efetuado dentro desse período e que deu origem a falso negativo pode ser fundamento de uma pretensão indemnizatória no quadro das ações em apreço.

Se o diagnóstico dito incorreto, ou omitido, apenas foi realizado – ou era realizável - após as 24 semanas, mesmo com observância das leges artis, já não se pode alegar violação da liberdade procriativa89. Isto sem prejuízo de surgir aqui o direito a compensação por outro

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Sobre a necessidade de considerar que o adjetivo grave se refere não só á doença mas também à malformação congénita, veja-se RAPOSO, Vera Lúcia, Responsabilidade médica em sede de diagnóstico, p. 104. A autora considera que, não existindo uma listagem de doenças ou malformações graves, deverá o juiz socorrer-se de pareceres de comissões de ética a fim de puder concluir se a doença de que padece o nascituro é suficientemente grave para fundamentar o aborto. Que a definição de gravidade depende de um critério médico e não judicativo é algo igualmente por MORILLO, Andrea Macia, ob. cit., p. 356, e por OLIVEIRA, Guilherme, Implicações jurídicas do conhecimento do genoma, RLJ, 128, p. 363.

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Sendo certo que na execução de exames para despiste de doenças genéticas se exige, por vezes, mais do que as dez semanas ou mesmo as vinte e quatro, o que pode criar sobre os médicos pressão para incumprir os comandos criminais, conforme alerta OLIVEIRA, Guilherme de, Implicações jurídicas do conhecimento do genoma, RLJ, 128, p. 362.

dano não patrimonial, o da frustração da expetativa de ter uma criança saudável – como se esperou durante 9 meses – sem poderem os pais (como poderiam, caso o DPN fosse efetuado ou corretamente efetuado) preparar-se para tal evento, situação que, em todo o caso, não se enquadra nos parâmetros da wrongful birth action, a não ser que o atraso no DPN seja imputável ao médico, que deveria fazê-lo mais cedo, segundo as leges artis.

Caso os embriões ou fetos inviáveis nasçam mortos ou pereçam imediatamente após o nascimento, o art. 142.º, n.º 1, al. a), parte final, do Código Penal, não coloca exigências de prazo, admitindo o aborto a todo o tempo. Nessa situação, ainda que se entenda que se está no âmbito de uma wrong action, se se considerar que não é requisito desta estar em causa o exercício da liberdade de decidir continuar a gravidez ou não90, o dano consiste apenas na privação da liberdade de abortar, sendo indemnizável a surpresa por ter sido prosseguida uma gestação, com a manutenção de expetativas, quando afinal o feto era inviável. Acrescem despesas materiais que possam ter sido feitas em função da gravidez (v.g. consultas médicas ou outras).