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III. RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

4. O dano nas wrongful claims

4.1. O dano nas ações de wrongful birth

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CORDEIRO, Menezes, in Tratado de direito civil, I, 2004, p. 303-305, refere-se, com exemplos, à evolução da jurisprudência nacional relativa ao tema do direito do nascituro a indemnizações por lesões causadas antes do nascimento, evolução essa que culminou na sua admissão genérica.

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A defesa da posição do conceturo, nestes casos, pode explicar-se, por exemplo, com recurso às noções de direitos sem

sujeito ou de direito geral de personalidade ou, ainda, de direito à integridade física dos progenitores (como refere

SOUSA, Rabindranath, V. A. Capelo, in O direito geral de personalidade, 1995, p. 362, nota 904). Quanto às pretensões indemnizatórios originadas em intervenções sobre o genoma humano, veja-se DIAS, João Álvaro, Dano Corporal, p. 463 e ss. Veja-se, ainda, a chamada lei da Procriação Medicamente Assistida (Lei nº 32/2006, de 26 de Julho) cujo art. 3.º afirma que as técnicas de procriação medicamente assistida devem respeitar a dignidade humana.

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Como refere CORDEIRO, Menezes, Tratado do direito civil, I, 2004, p. 305, argumentando que o legislador de 1966 não estava preparado para regular matéria complexa e em mutação como é a que trata de associar a personalidade ao nascimento, pelo que neste preceito apenas se visa a capacidade jurídica. Lacuna superveniente é como lhe chama FRADA, Manuel Carneiro, autor que considera que o direito do nascituro à indemnização existe desde a produção do dano apenas tendo os seus efeitos suspensos da verificação da condição legal de eficácia (e de exercício) que o nascimento constitui, pelo que entende que o art. 66.º tem de ser interpretado de acordo com o art. 24.º, n.º1, da Constituição (A protecção juscivil da vida pré-natal). Também SOUSA, Rabindranath V. A. Capelo de, defende a existência de vida humana desde a conceção, tutelando-lhe o Código Civil a personalidade física e moral: arts. 1878.º, n.º 1 (os pais defendem e representam os filhos, ainda que nascituros), 1826.º, n.º 1 (presunção da paternidade também relativamente aos filhos concebidos na constância do matrimónio) e 1855.º (perfilhação da nascituros), além das doações a nascituros concebidos ou não concebidos (art. 952.º do Código Civil) e o deferimento de sucessões, sem restrições, quanto aos concebidos (art. 2033.º, n.º1 do Código Civil) e testamentária ou contratual, quanto aos não concebidos (artº 2033.º, n.º 2, do Código Civil). Acrescenta que o art. 70.º do Código Civil abrange os nascituros, na medida em que estes são dotados de personalidade física ou moral naturalística, pelo que lhe assiste direito à omissão contra ofensas ou ameaças à sua vida e à sua saúde – in O direito geral de personalidade, p. 156 e ss. Outras posições são defendidas a respeito, como seja a direitos sem sujeito (PINTO, Carlos da Mota, Teoria Geral, 1988, p. 201), meros estados de

vinculação, personalidade parcial, reduzida, fracionária (para um resumo das diversas posições, veja-se

VASCONCELOS, Pedro Pais de, Teoria geral do direito civil, 2012, p. 66 e ss.).

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Não sendo o tema central deste trabalho, diremos apenas - quanto às wrongful pregnancy e wrongful conception

actions - consistir aí o dano na violação do direito dos pais ao planeamento familiar ou ao direito à autodeterminação,

onde se inclui a liberdade procriativa (negativa). É questionável poder aceitar-se compensação por danos não patrimoniais com base no mero facto do nascimento de uma criança saudável (ainda que se admitam outros da mesma natureza, como sejam os relacionados com a própria gravidez ou parto) – cfr. PINTO, Paulo, Indemnização, p. 941

Nas ações de wrongful birth, os progenitores pretendem uma indemnização pelos danos emergentes de um nascimento inesperado de uma criança com malformações.

O dano, porém, é um dos pontos mais sensíveis, pondo-lhe os autores as maiores reticências. A razão prende-se, mais uma vez, com a assimilação do dano à própria vida (a

vida como dano), já que tal asserção contraria, segundo se diz, os princípios básicos da

cultura jurídica279, embora, por oposição, não falte quem assinale que a proteção do bem vida sofre exceções várias nos diversos ordenamentos jurídicos (legítima defesa, aborto, suicídio, recusa de tratamentos médicos causa de morte, etc…).

Mas há ainda outros obstáculos que se invocam, de natureza ética ou ideológica. Considerar, diz-se, o ser humano como prejuízo (a vida como dano) equivaleria a negar a dignidade da criança, agredindo a sua individualidade (bastardo emocional). Chega-se mesmo a argumentar que: “se é indubitável que o nascimento de uma criança comporta alterações no equilíbrio e no estilo de vida dos progenitores, também o normal é que tal nascimento consubstancie uma ocasião de alegria na própria família […]. Repugna a consideração do nascimento de um filho como dano, especialmente não patrimonial” (S. PEREIRA280).

Em todo o caso, há argumentos para retorquir. O enunciado da “santidade da vida”, por exemplo, não impede, nas ações de wrongful birth, a possibilidade de se perspetivar o prejuízo em moldes distintos. A doutrina e os tribunais alemães, refira-se, fazem apelo à

teoria da separação (Trennungslehre); afirmam a existência de um dano à margem da vida,

distinguindo abstratamente a vida e o nascimento, por um lado, e os gastos necessários à sua manutenção, por outro281.

A afirmação do dano é, ainda, possível pela via de o identificar com a lesão do bem jurídico em causa. O dano será a privação da liberdade de decisão dos pais quanto à procriação futura (no caso de falso negativo pré-concetivo ou pré-implantatório), ou a privação da faculdade de interromper a gravidez (em caso de falso negativo pré-natal).

Para a doutrina nacional, quanto aos danos dos pais, o que está em causa não é a identificação com a existência ou com a vida, mas a “diminuição do seu direito à autodeterminação informada – uma lesão provocada por má prática médica”282.

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PETERS Y PETERS, por este motivo, alude a um desajuste cultural (cultural lag) entre o progresso científico e o direito quando carateriza as wrong actions, apud MORILLO, ob.cit., p. 333.

280

PEREIRA, Soares, apud SIMÕES, F. Dias, Vida indevida?, p. 193.

281

Ainda que, ali, não haja consenso relativamente à quantificação dos danos gerados pelo nascimento da criança – mais desenvolvido em MORILLO, A. M., ob. cit., p. 338 e ss.

282

SIMÕES, Fernando Dias, Vida Indevida?, p. 192. No mesmo sentido, OLIVEIRA, Guilherme, O direito do

diagnóstico, p. 12 e ss, PINTO, P. Mota, Indemnização, p. 928, RAPOSO, Vera Lúcia, Responsabilidade médica, p. 95 e

O apelo aos bens jurídicos violados pelo falso negativo tem a vantagem de responder àqueles que negam a indemnização sob pretexto de lesão da dignidade do filho, auferindo como que um preço do nascimento. Na verdade, o que é antijurídico, em wrongful birth, não é o nascimento do ser, mas a privação da autonomia procriativa.

A esta luz, a distinção não é entre a vida e os gastos com nascimento, como pretende a teoria da separação, mas entre a liberdade dos pais de regularem a sua vida conceptiva e a vida de outra pessoa concebida por eles.

O dano, pois, reside na privação da faculdade de abortar.

Ao afirmar-se o dano como lesão da liberdade procriativa, parece dispensar-se a prova de que os pais, em concreto, optariam por não procriar. Constituirá essa prova pressuposto do dano e da indemnização?

A dúvida levou a doutrina francesa a acrescentar aqui uma ideia, a perda de chance (perte de chance) ou de oportunidade (loss of opportunity). O dano identificar-se-ia, então, com a oportunidade perdida ou frustrada. Por outras palavras, o préjudice causado aos progenitores estaria na oportunidade perdida de poupar uma despesa extraordinária decorrente do nascimento da criança (sem falar do dano moral associado).

Esta visão coloca o aproveitamento da oportunidade nas mãos da progenitora e por isso continua a não prescindir da prova de que a mesma converteria a oportunidade em facto, abortando a gravidez283.

A teoria da perte d’une chance tem vantagens, sobretudo, no estabelecimento do nexo causal entre a negligência do médico e o nascimento da criança. Por isso que:

«dado o desconhecimento do sentido da decisão da mãe (pais) sobre a interrupção da gestação, os tribunais tendem a optar por considerar a contribuição causal do erro médico para uma outra espécie de dano traduzido na privação da possibilidade “de prendre une décision éclarée à la possibilite de recourir à une interruption de grosse thérapeutique”»284

.

Em todo o caso, julgamos, a outorga de indemnização não deveria ser condicionada à dita prova, posto que o dano reside na impossibilidade de decidir, de modo livre e esclarecido, fosse qual fosse o sentido da decisão dos pais.

283

Sobre a crítica à teoria da perda de chance adaptada às ações de wrongful birth, veja-se MORILLO, A. M., ob. cit., p. 366 e ss.

284

A questão da prova sobre a atitude dos progenitores poderia ainda resolver-se, como fazem a doutrina e a jurisprudência alemãs, recorrendo a uma presunção de que os pais se

comportariam de forma adequada, tendo em conta a informação285, e adotariam as condutas necessárias (entenda-se, a não procriação, a interrupção da gravidez).

Por outras palavras, a prova da decisão posterior dos pais só relevará quanto à extensão do dano, variando o valor a atribuir aos pais podem em função da prova que se fizer. Assim, como refere P. M. PINTO286, demonstrando-se a opção da mãe pela interrupção da gravidez em curso, (ou, antes disso, pela não conceção ou não transferência de embriões), na indemnização devem considerar-se, além das despesas acrescidas pela deficiência, também os gastos de sustento e educação da criança287.

Um último argumento que se ergue contra a noção do dano (nos casos de wrongful

birth e de wrongful life) é o extraído da chamada offset rule ou “regra do benefício”, pondo à

luz as “alegrias da paternidade” e a satisfação que gera o nascimento de uma criança288

. Por esta via, pretende-se demonstrar que há não nenhum dano para ressarcir, porquanto os gastos gerados com o nascimento são compensados com as vantagens (a “alegria com a criança”) que a família sempre retira da chegada de um novo membro (compensatio lucri cum damno).

Como logo se vê, o argumento prende-se apenas com o cômputo do valor indemnizatório, referindo-se ao quantum e não propriamente ao an do dano, merecendo algumas objeções: uma, por exemplo, a de não poder aceitar-se a compensação, já que as vantagens não estão todas ligadas causalmente ao dano; outra, a de que a aceitação posterior do filho não faz desparecer o dano anterior; outra, ainda, não estar demonstrado que o nascimento de uma criança traga apenas alegrias aos pais.

Uma última referência, quanto ao dano nestas ações, para frisar o seguinte. Há danos de natureza patrimonial - danos emergentes, ou seja, despesas acrescidas derivadas da deficiência (assistência médica e medicamentosa, internamentos, ensino especial adaptação de casa e veículo automóvel, etc…), assim como lucros cessantes (os progenitores, ou um deles, deixa, por exemplo, uma atividade laboral para cuidar do filho). E há, igualmente, danos de natureza não patrimonial, o sofrimento resultante da privação da liberdade

285

Como menciona por PINTO, Paulo Mota, Indemnização, p. 931, nota 47.

286

Idem, p. 940.

287 Neste sentido também VICENTE, Marta Nunes, Algumas reflexões, p. 122, 123. Para esta autora, porém, a prova de

que a mãe não teria interrompido a gravidez, ainda que a informação lhe tivesse sido corretamente transmitida, parece determinar a improcedência do pedido de wrongful birth. A autora entende que a questão é de causalidade, que verifica sempre, apenas variando o quantum indemnizatório “em função do grau de violação do direito em causa”, situação que veremos adiante quando tratarmos do nexo causal. Diferente, RAPOSO, V. L, que de modo pouco compreensível considera a prova de que a mãe não teria abortado fundameto de improcedência da ação, ao mesmo tempo que entende que o dano dos pais é a privação da possibilidade de abortar, Responsabilidade médica, p.97 e 100.

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procriativa e da omissão de informação, o choque de um nascimento em condições inesperadas, a preocupação relativamente ao futuro do filho, etc.

Para os danos patrimoniais, é aceitável um equilíbrio entre vantagens e desvantagens, deduzindo à indemnização os valores a que os lesados não teriam direito, se não fosse o nascimento (v.g. prestações sociais). Esses valores devem abater-se ao cômputo global, em consonância com o princípio legal (art. 562.º do Código Civil)289.

Já no âmbito dos danos não patrimoniais, não fará sentido efetuar a compensação de vantagens. Isto porque, neste domínio, desde que afastado o dolo, a lei impõe a consideração de “todas as circunstâncias do caso” (art. 494.º do Código Civil), incluindo-se aqui, evidentemente, as vantagens imateriais resultantes do nascimento de um filho em condições de deficiência290.