• Nenhum resultado encontrado

III. RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

4. O dano nas wrongful claims

4.2. O dano nas ações de wrongful life

4.2.1. A vida como benefício

A primeira objeção deriva de uma abordagem ética e confessional, que sufraga a promoção da vida, mesmo infeliz, face à não existência, reforçando este argumento por um vetor jurídico extraído da consagração da vida como direito fundamental indisponível.

A tese da santidade da vida, proclamando-a como bênção a preservar a todo o custo, apresenta como reverso a impossibilidade do dano, pois sendo toda a existência preferível à não-vida, mesmo a vida deficiente se sobreporia à não existência.

Um passo em frente nesta linha de raciocínio passa pela identificação do pedido da criança com um ato de disposição da própria vida.

Como é sabido, esta ideia tem alicerçado muitas decisões dos tribunais norte- americanos292, mas não é estranha ao panorama nacional.

São impressivas, neste ponto, as palavras de M. C. FRADA293:

“(...) a vida é enquanto tal inidónea para constituir um dano. Um conceito de dano que se feche aos elementos normativos atrás referidos da ordem jurídica [v.g. art. 69 CC] não é portanto defensável do ponto de vista sistemático.

Se alguém alega um dano para obter uma indemnização, quer sempre prevalecer- se da situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento conducente à reparação (cfr. o art. 562). Assim, pretender que a vida é um prejuízo corresponde objetivamente a um ato, mental embora, de disposição da própria vida, prevalecer-se de não viver”.

M. CORDEIRO expressa a mesma ideia, acentuando que:

292

E não só. Veja-se igualmente no reino Unido a decisão McKay and another v. Essex AHA. Também doutrina importante se baseia neste argumento para se opor à procedência destas demandas. Assim, o alemão ZIMMERMANN, citado por Morillo, A., M., ob. cit., p. 404, nota 194.

293

«atribuir uma indemnização à criança… por esta ter nascido equivaleria a considerar a sua vida (atual e, porventura, deficiente) como dano, sendo que a alternativa apontaria não para uma vida “normal”, mas para a não-vida. Pedir-se-ia ao Direito que considerasse a morte preferível à vida deficiente, o que é de todo impossível, por contrariedade a qualquer sistema jurídico civilizado»294.

Por sua vez, M. NUNES VICENTE parece considerar o argumento para excluir a indemnização. Embora reconheça que o demandante não pretende abdicar da vida com a pretensão indemnizatória, acaba por admitir o prejuízo, mas tem-no por não indemnizável. Isso resultaria de a pretensão da criança estar em oposição à “liberdade de decisão da mãe de seguir ou não a gravidez” 295, argumento que redunda no receio já conhecido de se caminhar para a admissão do pedido da criança contra os próprios progenitores. Em o caso, a autora alterou entretanto a sua posição296, vindo a admitir a procedência das ações de wrongful life, e classificando mesmo o apontado argumento de “paternalista” e “masoquista”297.

A esta luz, porque a reparação dos danos da criança acabaria por constituir o reconhecimento de um “direito à não existência” ou um “direito a não nascer”, posição sem tutela legal298, os tribunais não seriam o local próprio para resolver o problema299.

- Este tipo de censura, mais simbólica do que jurídica, não basta, no entanto, para afastar a configuração do dano na wrongful life action.

Na verdade, é legítimo afirmar que o lesado, com a demanda, não pretende pôr em causa a vida ou apelar como preferível à não existência300. O que enfatiza é o erro médico e, por via dele, a situação de deficiência. Por outra parte, aceitando-se a vida como um valor supremo, é preciso colori-la com algumas nuanças (pensemos nos casos de legítima defesa, de estado de necessidade, da não criminalização do suicídio).

Para além disso, a tese da vida como benefício, subjacente ao chamado raciocínio anti-

perruchista, defendendo a ideia de ser preferível a vida ao nada, acaba por conferir-lhe uma

extensão e significado que nem os textos constitucionais consentem, a obrigação de viver como contrapartida do direito de viver.

294

CORDEIRO, M., Tratado de direito civil português, p. 288.

295

VICENTE, M. N., Algumas reflexões, p. 136 e 140).

296 VICENTE, M. N.,

Responsabilidade médica, p. 116-117. 297

VICENTE, M. N, em As wrong actions, p. 83.

298

O que é afirmado por MONTEIRO, A. P., Direito a não nascer?, p. 383 e ss.

299

Como conclui MONTEIRO, F. P., Direito à não existência., p. 132.

300

Pressuposto configurado por DIAS, João A., como sendo o sustentado nas wrongful life actions, in A procriação

Dizendo de outro modo, com O. CAYLA-Y. THOMAS301

“(…) en opposant au sujet qui dit préférer pour ce qui le concerne la non-vie à la vie handicapée, l’antiperruchiste l’assigne em réalité au respect d’une norme revêtant une tout autre signification, à vrai dire même exactement inverse, celle d´une obligation de vivre […]. On soit ici au coeur de la position antiperruchiste: fondamentalment, celle-ci est détermineé par une philophie du droit qui fait du

devoir de vivre un principe normatif sans lequel le droit ne serai pas pensable

(…)”302

.

Pode ainda invocar-se outra ideia, também de recorte ético, para abalar a noção da vida como preferível à não vida. A ideia de que enfatizar a santidade da vida, afirmando a primazia da existência sobre a não-existência, será afinal conferir um conteúdo positivo à primeira e um valor negativo à segunda. Falta, contudo, demonstrar a dimensão negativa da não existência, sobretudo em fase pré-concetiva, não faltando quem observe que “nonexistence, unlike death, is neither good nor bad”303

.

Ademais, o realce do valor da vida esquece a realidade em causa na wrongful life, o contrato no âmbito do qual, culposamente, o médico falseia um diagnóstico pré-natal e frustra o direito a uma procriação informada e consciente, ou o direito ao aborto eugénico. Logo, a outorga de uma indemnização à criança reveste também um cariz sancionatório, ultrapassando o momento da comparação entre a vida deficiente e a não-vida e valorizando a vida na sua plenitude.

Pode assim afirmar-se que a indemnização visa, em certo sentido, não a compensação do dano de ter nascido, mas a dor e o sofrimento de um nascimento em condições de infra- vida (burden of existence), sancionando do mesmo passo a violação de um contrato304.

Crítico, entre nós, do argumento da santidade da vida, F. SIMÕES:

“Há que reconhecer, desde logo que, o nosso ordenamento jurídico não atribui um valor absoluto e indiscutível à vida, uma vez que a sua proteção

301

CAYLA, O. e THOMAS, Y, Du droit de ne pas naître, p. 62.

302

Mesmo para FRADA, M. C, não é correto aludir-se a um dever de viver, pois “tal conduziria à exclusão de um estado de liberdade. […] Não parece, portanto, viável falar-se de um dever de viver por força do art. 24. º, n. º1, da Constituição” – A própria vida como dano, p. 242.

303

COHEN, apud, DAVIS, S. Genetic dilemmas, p. 57.

304

Na mesma linha de raciocínio, STOLKER e DOORM, enfatizando não estar em causa efetuar um juízo de valor sobre a vida, posto que “C’est pas l’enfant que constitue le préjudice mais les conséquences financiéres de son handicap” (Dutch case note, p. 232).

sofre algumas relativizações em alguns casos […]. Ademais, deve ter-se em conta que neste tipo de ações não é a vida, em si mesma, que consubstancia o dano, mas sim a vida com deficiência”305.

E também F. ARAÚJO: “Se este tipo de ações pretendesse pôr em causa o respeito tradicional pelo valor intrínseco e absoluto da via, elas deveriam ser pura e simplesmente banidas”306

.

V. L. RAPOSO, identicamente, se bem a compreendemos, afirma que o argumento parte de um pressuposto altamente duvidoso, que é o de ver a vida um valor necessariamente positivo307.

P. M. PINTO, por seu turno, sublinha: «Como não está em causa qualquer “reconstituição natural”, consistente na eliminação da criança deficiente […], não se vê como pode a indisponibilidade da vida humana ser afetada por se reconhecer uma indemnização à própria criança (ou aos pais)”308.

G. H. KERN conclui, por isso: “(…) a classificação como dano jurídico não implica um juízo de valor na vida real”309.