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III. RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

4. Dever de informação e aconselhamento genético

O dever primacial do médico é o tratamento, incluindo-se aqui atividades distintas, que vão da observação ao diagnóstico, da terapêutica à vigilância.60

Ora, de acordo com a classificação de René DEMOGUE, a obrigação que recai sobre o devedor não é sempre da mesma natureza, pois umas vezes o devedor promete um resultado (obrigação de resultado), noutros casos promete apenas adotar medidas que são idóneas, abstratamente, a potenciar o resultado (obrigação de meios)61. Assim, se nas primeiras, o resultado não for atingido, o devedor presume-se culpado, devendo demonstrar, para se eximir à responsabilidade, o caso fortuito ou a força maior. Já nas segundas, compete ao credor demonstrar que o devedor não empregou a prudência e a perícia exigidas pela obrigação assumida62.

Considerando que o médico não se vincula à obrigação de curar o doente, não sendo a cura o objeto do contrato, porque depende de fatores aleatórios, endógenos e exógenos, tem- se concluído que a obrigação do facultativo é uma obrigação de meios63. Existem, porém, argumentos válidos para aceitar que, ao invés da cura, o médico se vincula a uma prestação de tratamento. É da violação dessa prestação, dever principal emergente do contrato, que nasce a responsabilidade do prestador do serviço de saúde64.

No âmbito das ações por nascimento e vida indevidos, está em causa um outro dever, por assim dizer instrumental65,embora integrando de igual modo as leges artis. É o dever de

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Cfr. ALMEIDA, Carlos Ferreira de, Os contratos civis de prestação de serviço médico, Revista de Direito Da Saúde e Bioética, AAFDL, 1996, p. 107 e ss.

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A terminologia de DEMOGUE é afastada por alguns autores franceses que entendem que a mesma deveria ser substituída pela distinção entre obrigações determinadas e obrigações gerais de prudência ou diligência - Cfr. DIAS, João Álvaro, Procriação assistida e responsabilidade médica, p. 224-225, nota 8.

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Sobre a prova na responsabilidade civil médica em função da natureza da obrigação, cotejando a doutrina e jurisprudência alemãs com as soluções jurídicas do ordenamento nacional, pode ver-se FARIA, Jorge Ribeiro, Da prova

na responsabilidade civil médica – reflexões em torno do direito alemão, in Revista da Faculdade de Direito da

Universidade do Porto, Ano I, 2004, p. 115 – 195.

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Cfr. DIAS, Álvaro, Procriação assistida e responsabilidade médica, p, 251 e 252, onde se lê:

”Se é certo que o diagnóstico é, em grande medida, um percurso lógico e cientificamente fundamentado não é menos verdade que tem uma parte de empirismo, construído à custa de tentativas e hesitações sucessivas que, no mínimo, podem conduzir a uma certa álea e, em casos limite, a situações de redutível impasse. A terapêutica, por seu turno, comporta sempre uma certa margem de desconhecido no que toca aos efeitos secundários de certos medicamentos ou técnicas, às complicações que daí podem advir e, não raro, à sua inexplicável inoperância”, assim, “caberá ao credor fazer a demonstração em juízo que a conduta do devedor não foi conforme com as regras de atuação suscetíveis de, em abstrato, virem a propiciar a produção do resultado almejado”.

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Neste sentido, ALMEIDA, Ferreira, Os contratos civis de prestação de serviços médico, 1996, p. 109.

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informação, corolário do direito de autodeterminação da pessoa e do direito à integridade pessoal66.

O dever de informação está consagrado na Lei de Bases da Saúde [Base XIX 1, al. e)], no art. 44.º e ss. do CDOM e ainda no art. 5.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (Decreto do Presidente da República n.º 1 /2001, de 3.1, DR I.ª série-A), mas a norma fundamental do ordenamento jurídico português relativamente ao dever de esclarecimento é o art. 157.º do Código Penal que prevê que “o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico, a índole, o alcance, envergadura e possíveis consequências das intervenção ou tratamento…”.

Este dever impõe ao profissional de saúde a obrigação de comunicar ao paciente as hipotéticas ocorrências relacionadas com o ato que demanda a sua intervenção, mormente as caraterísticas da enfermidade em questão, o diagnóstico e o prognóstico, os riscos e o tratamento.

O cumprimento do dever de informação por parte do profissional constitui pressuposto para o consentimento do paciente, legitimando uma intervenção médica, que, se assim não fosse, poderia consubstanciar uma intervenção ou tratamento arbitrário (art. 156.º Código Penal) e uma violação dos direitos de personalidade do paciente (art. 70.º CC).

O consentimento informado consubstancia o cumprimento das leges artis, manifestando o respeito pelo paciente e pelo seu direito moral à integridade. Constitui assim o reconhecimento do paciente como “centro de decisão respeitável”67

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O dever de informação tem, todavia, uma outra incidência, dita “humanitária”68

, visando a informação não propriamente a recolha do consentimento do paciente, mas sim o respeito da dignidade pessoal e do direito à autodeterminação.

É este segundo aspeto do dever de informar, como refere A. M. MORILLO69, que se destaca nas ações de que tratamos, isto porque, do que se trata, na maior parte das vezes, é da transmissão de suficiente informação aos progenitores quanto ao resultado de um diagnóstico efetuado, ou mesmo da informação acerca da necessidade daquele.

O objeto da informação no que tange ao diagnóstico pré-concetivo, pré-implantatório e pré-natal, concretizando a investigação genética acerca da presença de doenças ou de deficiências genéticas, constitui o aconselhamento genético, expressão que encerra em si o

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O dever jurídico de dar conselho, recomendação ou informação está consagrado no art. 485.º do Código Civil.

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OLIVEIRA, Guilherme de, O fim da arte silenciosa, cit. RLJ, 128, p. 103. Para sigilo médico, infeção por HIV e

wrongful birth, cfr. MORILLO, Andrea Macía, La Responsabilidade médica por los diagnósticos preconceptivos y

prenatales, p. 272.

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MORILLO, Andrea Mácia, ob. cit. 253.

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dever de informação aplicado a este campo, quando estão em causa suspeitas de anomalias genéticas70.

Assim, cabe aos profissionais de saúde a operar nesta área a obrigação, desde logo e numa primeira fase, de prestar aos interessados a informação acerca da existência de exames médicos para averiguação de riscos decorrentes de doenças hereditárias ou genéticas, obrigação essa que ocorre, pelo menos, nos casos em que se verifica estar-se perante classe de risco. O diagnóstico pré-concetivo permite, pois, uma gravidez livre de risco ou a opção consciente pelo não início daquela.

Já em caso de recurso a técnicas de reprodução humana assistida, maxime de fertilização in vitro, o diagnóstico pré-implantatório permite detetar possíveis deficiências cromossomáticas ou alterações genéticas nos embriões antes de estes serem transferidos.

À mulher grávida - pelo menos àquela que se encontre numa das situações de risco já faladas - deve ser comunicada a possibilidade de realização de DPN, informando-a “das finalidades da intervenção, dos riscos que o exame implica para a mulher e para o feto, dos resultados típicos possíveis (ausência de anomalias, anomalia ou doença pequena ou grave, etc.) e das medidas subsequentes possíveis (terapêuticas ou interrupção da gravidez)”71

. Mais concretamente, no caso das ações por “nascimento indevido” ou por “vida indevida”, o que está em causa é saber se os progenitores foram colocados em situação de poder conhecer exatamente as implicações médicas dos diagnósticos propostos e os motivos que podem invocar como recusa dos mesmos, tudo isto pressupondo que lhes são transmitidos os benefícios e riscos que a evolução da ciência médica potencia72.