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III. RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

3. Os meios de diagnóstico pré-natal

O DNP refere-se, em termos genéricos, “ao conjunto de métodos de exame – amniocentese, cordocentese, citogenética molecular, exames de ADN - que permitem a deteção de defeitos congénitos ou de doenças genéticas durante a gravidez”.45

O aumento de testes genéticos como o chamado diagnóstico pré-concecional (que tem lugar antes mesmo da fecundação), pré-implantatório (que ocorre no âmbito da reprodução medicamente assistida com vista a avaliar da condição dos embriões a implantar no útero da mãe) e pré-natal (que é realizado no decurso da gestação), aliados ao avanço da tecnologia médica, alteraram a posição dos médicos e de todos quantos neste campo intervêm (v.g. laboratórios e pessoal auxiliar) em qualquer das fases do aconselhamento genético prestado aos futuros pais. Consequentemente, expandiram-se as hipóteses de negligência médica derivadas de qualquer falha na conclusão do diagnóstico (ou no aconselhamento), na avaliação do resultado ou na transmissão da informação aos progenitores.

Os meios de diagnóstico ao serviço da genética permitem despistar cerca de 80% das malformações que afetam as crianças 46, como sejam o síndrome de Down47, a doença falciforme, a deficiência do tubo neural, a fibrose cística, a doença de Tay-Sachs, etc…48,

genético, o profissional de saúde deve avaliar todas as circunstâncias que, conhecidas, impliquem risco de anomalias genéticas, apenas não lhe sendo imputável atitude negligente quando eventual diagnóstico erróneo resulte de uma particularidade do doente que não foi possível evitar (ex.: contaminação da colheita de líquido amniótico em função do tipo de placenta apresentada), ou quando o médico se afaste das leges artis tendo em conta as especiais condições físicas ou psíquicas da paciente (ex.: não submissão da grávida a amniocentese por motivos de contra-indicação – Cfr. MORILLO, A. Macia, ob. cit., ps. 274 e ss.

45

RAPOSO, Vera Lúcia, Responsabilidade médica em sede de diagnóstico pré-natal (wrongful life e wrongful birth), Revista do Ministério Público, 132, p. 72. Por sua vez, o Despacho do Ministério da Saúde nº 5411/97, de 6.8 (DR, II.ª série), define o DPN como sendo “o conjunto de procedimentos com o objetivo de avaliar se um embrião ou feto é portador de uma determinada anomalia congénita”. Mais informação sobre DPN em COSTA, Amélia, Perspectiva

Jurídica de um Acto de Amor, Universidade Autónoma de Lisboa, 2000,p. 151-152. 46

Conforme informa SILVA, Marta Santos, Sobre a inadmissibilidade das ações por “vida indevida” (wrongful life

actions) na jurisprudência e na doutrina. O Arrêt Perruche e o caso André Martins, in Direitos de personalidade e sua tutela, 2013, p. 119 e ss.

47

Sobre uma revisão sistemática da literatura publicada entre 1997 e 2012 relativa ao diagnóstico pré-natal não invasivo de trissomia 21 (NIPT – NonInvasive Prenatal Testing), pode ver-se MERSY et alt., 2013, Noninvasive detection of fetal

trisomy 21: systematic review and report of quality and outcomes of diagnostic accuracy studies performed between 1997 and 2012, disponível em http://apdpn.pt/news/2013/10/detecao-invasiva-trissomia-21-fetal. Os autores referem que o

NIPT de trissomia 21 é muito promissor e que poderá substituir o rastreio bioquímico. Contudo, serão necessários mais estudos para a validação da segurança de diagnóstico no 1º trimestre de gravidez, bem como da relação custo-benefício e da possibilidade de disponibilização do teste a todas as grávidas que tenham indicação para estudo.

48

Em Before birth, prenatal yesting for genetic disease, 1990, Elena O. NIGHTINGALE, M.D. e Melissa GOODMAN descrevem em pormenor o tipo de doenças congénitas que são, em regra, objeto deste tipo de testes nos EUA:

“Each year over 100, 000 infants in the United Sates are born with a genetic disease. Down syndrome is one of the five most common, potentially affecting 1 in every 1,000 births. Other common genetic afflictions are

assim se permitindo aos casais em risco de conceber um filho com deficiências desta natureza a possibilidade de virem, ao invés e noutra ocasião, a conceber uma criança saudável49.

Existem inúmeros métodos de avaliação da condição genética dos potenciais progenitores (testes de compatibilidade), do embrião e do feto, sendo alguns mais invasivos do que outros50, mas tendo todos em vista o aconselhamento genético, especialmente nos casos em que existe história familiar de doenças transmissíveis de forma hereditária.

Contudo, a mulher não pode ser forçada a efetuar qualquer tipo de diagnóstico,51 e, em caso de recusa, não poderá o médico responder no contexto das ações em presença.

Entre nós, o diagnóstico pré-natal foi contemplado legislativamente pela primeira vez em 1984, quando, pela Lei n.º 3/84, de 24 de Março, relativa ao planeamento familiar, se postulavam ações de aconselhamento genético tendo em vista o acesso aos conhecimentos científicos necessários para uma decisão responsável no campo da saúde, da maternidade e da paternidade.

Posteriormente, o Despacho nº 5411/97 do Ministério da Saúde (publicado no Diário da República, II.ª série, de 6.8), regulamentando a matéria e estabelecendo os objetivos, princípios e modelo de organização das atividades de diagnóstico pré-natal refere que as técnicas de DPN são importantes meios de aconselhamento genético.

Já a respetiva estrutura, os requisitos necessários e as orientações para a sua concretização no terreno foram estabelecidos em 1999, no Despacho 10 325/99, de 26.5 (Diário da República, II série), relativo aos procedimentos invasivos de DPN.

A prática médica parte de uma definição do universo das mulheres ou casais pertencentes às chamadas “classes de risco”, justificando o acesso preferencial aos serviços, “o que significa que os serviços não são obrigados a realizar técnicas invasivas de diagnóstico

sickle cell disease, which affects about 1 in 400 children born to African-Americans; neural tube defects, which affect 1 in 800 Caucasians; and Tay-Sachs disease, which potentially affects 1 in 3, 600 Americans of Eastern Jewish ancestry” (p. 3).

As autoras aludem, ainda, à atitude da população em geral perante a necessidade da sua realização, relatando (p. 59 e ss.) a reação massiva de desaprovação que manifestaram pais de crianças portadoras de malformações perante um artigo de opinião redigido por colunista, em 1988, no NEW YORK TIMES, expondo que, estando grávida e pertencendo a grupo de risco (mais de 36 anos), não se submeteria a DPN, considerando “The Child I Carry Is Wanted, Healthy or Not”.

49

Segundo Usandizaga BEGUIRISTÁIN (apud MORILLO, Andrea Macia, cit, p. 79, nota 114), atualmente o número de malformações fetais diagnosticadas durante a gravidez ascende a cerca de 400, em fase pré-natal. MORILLO A. , refere ainda que se estima que entre 2 a 6% dos nascidos seja afetado por uma enfermidade genética ou por uma malformação congénita (cit, p. 79).

50

DIAS, João Álvaro, menciona que “a fetoscopia (que permite a visualização direta do embrião através duma fibra ótica)” é “o método que comporta uma mais elevada taxa de complicações, que pode atingir os 10%, incluindo o aborto, amniotite, fissuras de membranas, iso-imunização, etc.”, Procriação assistida e responsabilidade médica, 1996, p. 378, nota 293.

51

Embora se questione se, em determinados casos (mulher com idade superior a 38 anos e mulheres com uma alfa- fetoproteína maternal superior à normal), a submissão a tais procedimentos poderá ser medicamente imposta, cfr. DIAS, J. Álvaro, Procriação, p. 379, nota 298.

pré-natal em relação às demais mulheres grávidas, ainda que estas se encontrem em situação de risco não tipificado no despacho”52

, mesmo declarando a grávida que, em caso algum, optará por uma interrupção da gravidez53.

Casais em risco e candidatos preferenciais à despistagem são, desde logo, aqueles em que a mulher tenha trinta e cinco anos ou mais ou em que haja história procriativa de componente genética negativa (por exemplo, pais de um filho portador de cromossomopatia), importando ainda ter em conta a saúde da mulher, a sua exposição a agentes teratógenos, como químicos ou doenças infeciosas.

Existe, igualmente, risco quando um dos progenitores é portador de cromossomopatia equilibrada; quando exista suspeita de anomalia congénita fetal decorrente da realização de uma ecografia: quando se verifique alteração dos valores dos marcadores serológicos maternos e quando haja risco elevado de recorrência de doença genética não cromossómica e risco elevado de efeito teratogénico (infecioso, medicamentoso ou outro)54.

Acresce, no caso da fertilização in vitro55, uma especial exigência de realização de sofisticadas técnicas de diagnóstico, posto que na reprodução medicamente assistida há “uma taxa mais elevada de deficiências de ordem cromossómica”56

, avultando a realização de diagnóstico pré-implantatório57. Ademais,

52

RODRIGUES, João Vaz, O consentimento informado para o acto médico no ordenamento jurídico português

(Elementos para o estudo da manifestação da vontade do paciente), 2001, p. 95. 53

Cfr. OLIVEIRA, Guilherme, O direito do diagnóstico pré-natal, RLJ, 132, p. 9:

“(…) se uma grávida rejeita liminarmente tirar consequências de um resultado infeliz, que poderia suscitar uma interrupção não punível, vai usar o serviço de forma inútil (…). Apesar da valia destes argumentos, creio que não se pode estabelecer a condição de IVG [interrupção voluntária da gravidez] para acesso das grávidas ao DPN. (…) no momento em que a grávida se presta a fazer um DPN, não sabe que o feto sofre de malformação ou doença genética (…). Só poderia prestar um consentimento antecipado, com base em probabilidades ainda não concretizadas. Um consentimento assim não parece ser verdadeiramente informado.”

54

A gravidez múltipla é também situação de risco porque implica um aumento três a quatro vezes maior de complicações perinatais, quer devido a prematuridade, quer devido a aumento de anomalias cromossómicas e morfológicas. Estas últimas podem atingir um só feto. Foi realizado um estudo retrospetivo de análise de todos os casos que ocorreram entre 1998 e 2011 na Maternidade Bissaya Barreto em Coimbra. Avaliaram-se 742 gestações gemelares e foram obtidos 39 casos (5,25%) de anomalias diagnosticadas em um dos fetos, 10 dos quais correspondiam a gestações obtidas após técnicas de procriação medicamente assistida. A idade média das mulheres foi de 32 anos. Em 29 casos a malformação foi diagnosticada ao longo do segundo trimestre. Realizou‐se feticídio selectivo em 9 gestações, registando‐se complicações em 1 destes casos (11,1%): corioamniotite com aborto espontâneo 9 dias após o procedimento ter sido realizado na 21ª semana de gestação. CFR. EIRA-VELHA N [et alt.] - Gravidez gemelar – e se um dos gémeos é

malformado?, in Livro de Resumos, X Jornadas Internacionais de Diagnóstico Pré-Natal, 2012, disponível em

http://apdpn.org.pt/blog/2012/09/jornadas-internacionais-diagnostico-pre-natal-viana-castelo.

55

No campo da medicina reprodutiva, procedimentos como a dação de ovócitos podem mesmo alargar o objeto das ações de wrongful birth e wrongful life. Veja-se o caso da falha de testes genéticos envolvendo doação de ovócitos e a possível responsabilização do dador, por exemplo, por ter omitido informações relevantes sobre a sua história genética. Sobre o tema pode ver-se CAREY, Kristen N., Wrongful life and wrongful birth: legal aspects of failed genetic testing in oocyte

donation, 2005, em http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17294555. 56

Como dá conta DIAS, João Álvaro, Procriação assistida e responsabilidade médica, 1996, p. 379. Ainda sobre a inseminação artificial no direito português e brasileiro pode ver-se, VARELA, Antunes, A inseminação artificial e a

filiação perante o direito português e o direito brasileiro, RLJ 127, p. 162, 194, 266 e 325. 57

“uma das indicações para o uso da reprodução medicamente assistida é o risco de transmissão de doenças genéticas. Assim, os casais nestas condições recorrem à fertilização in vitro e os embriões produzidos podem ser investigados no sentido de se implantarem só aqueles que não sejam portadores dos genes defeituosos que se receavam”58

.

Segundo o n.º 3 do despacho acima referido, são oito as regras a observar em relação aos procedimentos de DPN:

1 - O DNP só é efetuado se existir grande probabilidade de anomalia congénita grave (al. a);

2 - O casal tem de ser previamente informado sobre os exames e riscos a eles inerentes, bem como sobre as limitações e implicações dos seus resultados (al. b);

3 - Técnicas invasivas só podem ser usadas com consentimento da mulher grávida, de preferência escrito (al. c);

4 - Cabe à mulher a decisão de optar, ou não, pela IVG (al. d);

5 - A atividade relativa às técnicas de DPN tem de processar-se sob responsabilidade de um médico (al. e);

6 - Acreditação dos serviços onde se processem as técnicas de DPN (al. f)59;

7 - Todos os procedimentos – desde o aconselhamento genético à IVG - devem estar concentrados nos mesmos serviços (al. g);

8 - Deve garantir-se sigilo das informações fornecidas pelo casal, bem como dos resultados (al. h).

É, assim, visível que o dever de informação, como integrante das leges artis, é um parâmetro a cumprir pelo profissional de saúde diligente no âmbito do DPN.

Vejamos, mais detidamente.

Bioética, 1996, p. 183 e ss., observando o autor que DPI será uma “arma terapêutica” visando atuar sobre uma doença

genética e não eliminar o embrião.

58

OLIVEIRA, Guilherme, Implicações jurídicas do conhecimento do genoma, RLJ, 128, p. 361.

59

O Despacho do Ministério da Saúde nº 10325/99, de 26.5 (DR, II.ª série) estrutura os Centros de DPN. Sobre estes Centros pode ver-se RODRIGUES, João Vaz, ob. cit, p. 100-101.