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Há concepções teóricas distintas acerca de um assunto de extrema importância para o processo de alfabetização: o termo letramento. Para o presente estudo investigativo, serão apresentados diferentes posicionamentos a respeito do uso do termo, seu significado e suas implicações no que tange ao processo de alfabetização. Para tanto, inicialmente, tomam-se como base os conceitos de duas autoras referências na área da educação, Emilia Ferreiro e Magda Soares, embora com posicionamentos distintos no que compete ao significado da alfabetização e à utilização do termo letramento. Tendo em vista suas importantes pesquisas, publicações e contribuições, não há como tratar do termo letramento e de sua utilização sem utilizar como referência Magda Soares (2006, 2008), como também, seria negligência falar de alfabetização e cultura letrada sem se referir à Emilia Ferreiro (1993, 2001, 2012), bem como seus estudos e obras. Contudo, as duas autoras não atribuem o mesmo sentido ao termo alfabetização e discordam quanto à utilização do termo letramento.

Influência nas práticas pedagógicas atuais, dentro do campo da alfabetização, há um marco importante que necessariamente impulsionou outras formas de se pensar o ensino da leitura e da escrita: o surgimento do termo letramento13. Muitas vezes, as pessoas se alfabetizam, mas não adquirem competência para utilizar a leitura e a escrita e para envolverem-se com as práticas sociais de escrita, o que remete ao termo letramento, muito presente em pesquisas e estudos que envolvem o campo da alfabetização. Soares (2006, p. 34) relaciona o seu surgimento à existência de um novo fenômeno, o qual foi necessário nomear:

“O termo letramento surgiu porque apareceu um fato novo para o qual precisávamos de um

nome, um fenômeno que não existia antes, ou, se existia, não nos dávamos conta dele e, como

não nos dávamos conta dele, não tínhamos um nome para ele”.

A mesma autora (2006, p. 39) define letramento como “resultado da ação de ensinar e

aprender as práticas sociais de leitura e escrita”. Traz também como definição: “O estado ou

condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se

apropriado da escrita e de suas práticas sociais” (SOARES, 2006, p. 39). Nesta perspectiva, o

letramento é um processo social, diferentemente da alfabetização, que é um processo tipicamente escolar. Ambos, alfabetização e letramento, embora processos diferentes, são

13 O termo letramento, como coloca Soares (2006), surgiu pela primeira vez no Brasil em 1986, no livro da autora Mary Kato: No mundo da Escrita: uma Perspectiva Psicolinguística e, consequentemente, após esta referência na obra de Mary Kato, a palavra apareceu em outros títulos lançados no mundo da educação, sendo assunto de diversas pesquisas e estudos, tornando-se palavra de uso corrente.

complementares para uma aprendizagem qualificada e significativa da leitura e da escrita. Na distinção entre alfabetização e letramento, ter aprendido a ler e a escrever é diferente de ter se apropriado da escrita, pois, aprender a ler e a escrever significa codificar a língua falada e decodificar a língua escrita, enquanto apropriar-se da escrita é assumi-la no sentido de torná- la própria, de colocar as habilidades e os conhecimentos de leitura e de escrita em prática, em situações cotidianas (SOARES, 2006).

Noutras palavras, Soares (2006) distingue os dois processos - alfabetização e letramento - sendo que o primeiro se refere à aprendizagem da leitura e da escrita, ou seja, aprender a ler e escrever, codificar e decodificar a língua. Já o segundo diz respeito ao uso social da leitura e da escrita, juntamente às práticas sociais de leitura e de escrita exercidas pelo sujeito na sociedade letrada. Nesta visão, são dois processos diferentes, mas que se complementam para uma aprendizagem significativa da leitura e da escrita, daí popularizando-se a expressão “alfabetizar letrando”. Nesta perspectiva, alfabetizar letrando é ensinar a ler e a escrever por meio de um trabalho pedagógico que faça pensar sobre o uso e os significados da leitura e da escrita, contribuindo para os conhecimentos escolares e para a qualidade de vida do sujeito que aprende. Para que isso seja possível, é essencial que todos os envolvidos com a criança, principalmente os professores, compreendam como acontece a construção do conhecimento relacionado à aquisição do sistema de escrita alfabética, como também, os processos que fazem com que a criança se torne um leitor.

Emilia Ferreiro não utilizou o termo letramento, preferindo, para a tradução de literacy (termo em inglês), a expressão cultura escrita ou cultura letrada. Para Ferreiro (2012, p. 56),

“embora a alfabetização esteja ancorada em ‘alfabeto’, nada solucionamos com um

letramento que está ancorado em ‘letra’. O que devemos dizer é ‘cultura letrada’, para nos aproximarmos do significado original de literacy [...]”. Dessa forma, o surgimento do letramento teria ocasionado uma perda para o significado da alfabetização, passando a concebê-la como sinônimo de decodificação. Para a autora, o correto seria utilizar o termo cultura letrada, visto que a criança, desde cedo, já está imersa nesta cultura, quando escuta alguém ler em voz alta, quando observa alguém escrever, enfim, quando participa de situações sociais em que a leitura e a escrita estão presentes.

Ferreiro defende que o aprendizado das noções matemáticas e do sistema de escrita inicia antes do ingresso na escola, pois isso se dá devido às crianças estarem expostas desde cedo a diversas informações relacionadas com a cultura letrada. Os conhecimentos adquiridos referentes à escrita, para Ferreiro (2001, p. 99), são de diversas procedências, tais como:

a) a informação que recebem dos próprios textos, nos contextos que aparecem (livros e jornais, mas também cartazes da rua, embalagens de brinquedos ou alimentos, roupas, TV etc.);

b) informação específica destinada a elas mesmas, quando alguém lhes lê uma história ou lhes diz que tal ou qual forma é uma letra ou um número, ou lhes escreve seu nome ou responde às suas perguntas;

c) informação obtida quando participam de atos sociais que envolvam o ato de ler ou de escrever. Este último tipo de informação é o mais pertinente para compreender as funções sociais da escrita.

Nessa perspectiva, a participação em atos sociais de leitura e de escrita se daria a partir de situações cotidianas, como, por exemplo, quando a criança presencia um adulto consultando um jornal para informar-se sobre os acontecimentos, ela percebe que a escrita serve como veículo de informação; quando a criança presencia a leitura de uma carta ou de um bilhete, ela compreende que a escrita também tem a finalidade de comunicação. Neste sentido, estar exposta em um meio letrado permite à criança adquirir conhecimentos importantes referentes à língua escrita. Sobre isso, acrescenta Ferreiro (2001, p. 59-60):

A criança que cresce em um meio “letrado” está exposta à influência de uma série de

ações. E quando dizemos ações, neste contexto, queremos dizer interações. Através das interações adulto-adulto, adulto-criança e crianças entre si, criam-se as condições para a inteligência dos símbolos. A experiência com leitores de textos informa sobre a possibilidade de interpretação dos mesmos, sobre as exigências desta interpretação e sobre as ações pertinentes, convencionalmente estabelecidas [...]. A criança se vê

continuamente envolvida, como agente e observador, no mundo “letrado”. Os adultos

lhe dão a possibilidade de agir como se fosse leitor - ou escritor-, oferecendo múltiplas oportunidades para sua realização (livros de histórias, periódicos, papel e lápis, tintas, etc). O fato de poder comportar-se como leitor antes de sê-lo, faz com que se aprenda precocemente e o essencial das práticas sociais ligadas à escrita.

Por conseguinte, embora haja duas visões distintas acerca do significado dos termos alfabetização e letramento, nada mais adequado do ponto de vista educativo do que alfabetizar a partir de práticas pedagógicas que explorem recursos que façam parte do cotidiano dos alunos e que sejam significativas. Nesse sentido, é preciso trabalhar na escola práticas pedagógicas contextualizadas, que insiram as crianças desde cedo na cultura letrada e que explorem os sentidos e os usos sociais da língua escrita. Embora as autoras tenham opiniões opostas acerca da utilização do termo letramento, o mesmo é utilizado em obras e pesquisas publicadas por autores do campo da educação, sendo um assunto bastante presente nesta área.

Para Christofoli (2009), a alfabetização é um processo que fica a cargo da escola, principalmente a partir da expansão da escola pública. Porém, ao mesmo tempo em que a escola tem esta tarefa de ensinar a ler e a escrever, também se depara com essa dicotomia entre a aprendizagem da leitura e da escrita e a função social da língua escrita, ou seja, entre a alfabetização e o letramento.

Tfouni (2006, p. 9) aponta que a alfabetização está relacionada com “a aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de

linguagem”, e que o letramento surgiu com a necessidade de designar uma palavra para

atribuir sentido ao processo de se estar exposto aos diferentes usos sociais da língua. A autora atenta para o fato de que, sendo a alfabetização um processo, o que a caracteriza é a incompletude, dessa forma, há níveis/graus diferentes de alfabetização. E, no que tange ao letramento, não há o iletrismo, ou seja, um sujeito com nível/grau zero de letramento, visto que, vive-se em uma sociedade que a autora denomina como “moderna”, sociedade essa que é letrada, e que, portanto, a escrita se encontra presente em situações cotidianas, sociais. O que existem são graus ou níveis de letramento. Tfouni (2006) compreende os dois processos, alfabetização e letramento, como diferentes, e nesse sentido, o ideal é conceber os processos interligados, embora tenham características distintas.

Ainda no que cabe ao significado de alfabetização e letramento, há no aporte teórico de Freire (2005), a concepção de alfabetização como um processo reflexivo, emancipador, capaz de levar o sujeito a refletir criticamente sobre sua situação no mundo. “A alfabetização, portanto, é toda a pedagogia: aprender a ler é aprender a dizer a sua palavra” (FREIRE, 2005, p. 21). Nessa direção, apresenta-se uma concepção de alfabetização relacionada com conscientização, cujo sujeito aprendente é tão protagonista quanto o ensinante. Dessa forma, o alfabetizando não é um sujeito passivo, que apenas espera as instruções do professor, mas alguém que tem vez e voz, que participa ativamente do processo de aprendizagem. Freire acreditava que a alfabetização envolve um processo crítico da leitura, algo que não é esgotado na simples decodificação da palavra escrita, mas que se estende na leitura de mundo. “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem

dinamicamente” (FREIRE, 2011, p. 19-20). Nesse sentido, a leitura de mundo, representada

pelas vivências que o aluno tem, antecede a aprendizagem do sistema de escrita alfabética, o que remete à ideia de que, antes de ser alfabetizado, o aluno já possui muitos conhecimentos relativos à língua escrita, advindos da convivência na sociedade, devido à cultura letrada. Na perspectiva de Piccoli e Camini (2012, p.17) a concepção que Freire tinha de alfabetização

“era tão ampla que englobava e superava o conceito de letramento, já que a relacionava à

consciência crítica dos sujeitos acerca da realidade por eles vivida para transformá-la,

questionando a alfabetização apenas como técnica mecânica de codificação e decodificação”.

A partir dessas diferentes perspectivas teóricas e significados atribuídos aos dois processos, alfabetização e letramento, este estudo investigativo toma como referência o termo

“alfabetização numa perspectiva de letramento”, como um processo de alfabetização que,

concomitantemente ao trabalho que dê visibilidade à aprendizagem da leitura e da escrita, como algo significativo, vá além do codificar e decodificar a língua, isto é, que valorize e proporcione o acesso às práticas sociais de leitura e de escrita. Esse termo “alfabetização numa perspectiva de letramento” é de uso corrente em estudos, pesquisas e autores do campo da educação, sendo inclusive usado como referência no material de formação utilizado no Pacto14, como também presente em outros referenciais importantes para o campo da educação e da alfabetização, como por exemplo, as DCNEB15 (BRASIL, 2013).