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Ao longo de toda a década de 1980 foi largamente superior o número de homens ao número de mulheres a escrever sobre música. A escrita sobre música não é inocente, não é ausente de veinculação de ideologias, quer sejam estéticas, morais ou políticas. O lugar das mulheres ou é secundário, ou acaba por ser salientado quando se trata de comentadoras com visibilidade como é o caso de Maria Helena de Freitas e de Francine Benoît. A escrita sobre música na imprensa generalista, além de formar melómanos, influenciar gostos, estabelecer repertórios, validar obras e compositores, serve também um fim moralizante, e contribui para a cristalização de estatutos de género. É sublinhado de forma mais ou menos evidente o caráter sensível, doméstico da mulher, a par e passo com o seu elogio físico e, de igual forma, o lado protetor, aguerrido, público do homem, e a valorização da sua inteligência e perspicácia intelectual. É estimulada e valorizada a mulher enquanto dona de casa, o seu papel de educadora, a demonstração de qualidades tidas como femininas, como o sejam a organização, a sensibilidade, a responsabilidade, a afetividade e, claro, a apreciação da música enquanto arte inefável, enquanto manifestação sensorial. Ao passo que os homens revelariam uma preocupação mais racional nos seus comentários, com mais enfoque nas questões técnicas e apreciações formais. Parece portanto que estamos perante um perpetuar de estereótipos, que persiste (ainda hoje) no tecido social português.

Com o avançar da década, não pude deixar de notar a mudança significativa do teor dos artigos, notando-se a emergência de uma nova linha crítica, sobretudo a partir de 1985/86- isto coincide com a época de conclusão das/os primeiras/os licenciadas/os em musicologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH). Os artigos aumentam gradualmente

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de tamanho e substancialmente de conteúdo. A crítica deixa de ser efetuada por melómanos e pessoas com poucos conhecimentos músicais e começa a revelar preocupações técnicas e também ideológicas. Persistem alguns representantes da musicografia até a esta altura exercida, como o são os casos mais evidentes Maria Helena de Freitas, seu marido Nuno Barreiros e José Blanc de Portugal. Salientam-se pela acuidade e sentido crítico Mário Vieira de Carvalho e Rui Vieira Nery, ambos assinam artigos desde 1981 nesta amostra, mas a frequência aumenta com o passar dos anos. A presença crescente de artigos de Mário Vieira de Carvalho e Rui Vieira Nery, entre outros, gera um contraste abismal entre especialistas, sendo que só agora se pode usar o termo musicólogos sem constrangimentos formais, e musicógrafos, onde constam poetas que escrevem sobre música e jornalistas. A musicologia trouxe qualidade à crítica musical e mostrou que esta não se resume a comentar a afinação e sincronia dos músicos, nem a “beleza” destes e dos seus trajes ou da sua voz. Mas mesmo nestes artigos do final da década, continuamos a ver indicadores de genderização, e note-se que os dois autores cujo trabalho salientei são homens, que ainda hoje estão presentes, não só na escrita sobre música naturalmente. São pequenas palavras, inocentes frases e comentários, que permanentemente nos passam despercebidos e continuam a ser interiorizados de forma violenta e impercetível.

Parte III

Quero agora apenas referir alguns dados mais recentes que recolhi, para que sirvam de ponto de partida para refletirmos em conjunto sobre práticas naturalizadas contemporâneas.

Em dezembro 2012 a Orquestra Gulbenkian contava com 22 mulheres e 40 homens. A Orquestra Sinfónica Portuguesa tinha 38 mulheres e 65 homens.

Em novembro 2014 a Orquestra Gulbenkian conta com 18 mulheres e 38 homens. A Orquestra Sinfonica Portuguesa tem 31 mulheres e 60 homens. Desta última refiro ainda que nos primeiros violinos há uma maioria clara de homens, enquanto que nos segundos violinos encontramos, pelo contrário, 3 homens e 13 mulheres. Nos contrabaixos há uma mulher e 7 homens. Nos sopros, metais e madeiras, há uma clara preponderância de homens.

Quando preparava esta comunicação reparei numa notícia do jornal Blitz que dava conta do prémio Pop-Eye de "Melhor Artista Português" atribuído às Anarchicks no Festival Cáceres Pop Art, em Espanha: “As Anarchicks são um quarteto de rock feminino que editou em 2013 o primeiro álbum, de influência punk, e prepara atualmente o segundo disco” (Blitz, 14/11/2014 – sublinhado da autora).

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A Cescontexto é uma publicação online de resultados de investigação e de eventos científicos realizados pelo Centro de Estudos Sociais (CES) ou em que o CES foi parceiro. A Cescontexto tem duas linhas de edição com orientações distintas: a linha “Estudos”, que se destina à publicação de relatórios de investigação e a linha “Debates”, orientada para a memória escrita de eventos.

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