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Evolução e sobreposição de paradigmas na ‘política científica nacional’ Cruzando conjunturas e atores intervenientes no processo português, é possível revisitar a

periodização da história da política científica, tendo presente a existência de três momentos no longo processo histórico de construção (Gonçalves, 1998; Ruivo, 1998; Brandão, 2008) da política científica em Portugal. A periodização é porém um exercício de organização da narrativa histórica, cuja dialética de tensões, de carateres cumulativos e multifatoriais resultam normalmente numa cristalização difícil de resistir ao confronto historiográfico. Feito de uma permanente tensão entre memória, narrativas legitimadoras, de poder e de hegemonia cultural, o tempo e o espaço histórico é diverso, carregado de tensões e contradições.

Assim, procurando contemplar aqui uma dialética de continuidades e descontinuidades, como é da natureza dos trajetos históricos, de sobreposições e ruturas, evolução de traços cumulativos e involução em tensões e resistências, e perspetivas idiossincráticas, cremos então que a história da política científica deve ter presente os seguintes momentos: um período de génese (1910-1936), marcado pela afloração de uma identidade de pensamento e

6 Sobre o conceito de paradigma aplicado à perceção de etapas na evolução da política científica, veja-se Ruivo (1994 e 1998: 63 e 81-85), cuja proposta se baseia numa extrapolação do conceito kuhniano (Kuhn, 1996 [1962]). No entanto, apesar da tentativa de delimitar períodos, a aplicação por Beatriz Ruivo do conceito de paradigmas para a delimitação de períodos na história da política científica portuguesa resulta problemática, inclusive para descrever a evolução histórica do caso português. (Ruivo, 1998: 85 e 1994: 163) Cremos que, por via inclusive do caminho metodológico, e do próprio referencial teórico que privilegia, Ruivo adotou uma perspetiva porventura demasiado estática (senão algo mecanicista), insuficiente para captar as dinâmicas do tempo histórico, não retirando todas conclusões do conhecimento histórico que, apesar de algumas limitações mas de forma pioneira, a própria autora apresenta já no seu importante e exaustivo estudo. Como a própria refere, determinar «o começo da política científica nacional é um problema delicado, já que parece ser um processo cumulativo» (Ruivo, 1998: 84). Contudo – e apesar do levantamento sistemático que faz quanto às definições de política científica –, o facto de frequentemente insistir na noção de um ‘período de pré-política científica’ e, deste modo, valorizar apenas desenvolvimentos de institucionalização dessa política, episódios que anunciavam aliás uma determinada e bem específica visão de política científica, entre o segundo pós-guerra e a transição para o decénio de 1960 e, tendencialmente até, fixando-se, no caso português, na criação da JNICT (em 1967), tal posicionamento resultou num involuntário, certamente, afunilamento das problemáticas da política científica na história.Assim, torna-se hoje necessário que procuremos aqui propor nova periodização para o caso português, menos estática e mais coerente com as dinâmicas do tempo histórico, com os processos de aprendizagem e de mudanças incrementais, e que de facto venha a ter presente a dinâmica de construção da política científica, a conformação dessa ‘cultura de política científica’, que aliás a própria Beatriz Ruivo refere – isto é, “conjunto dos conhecimentos, a sua memória, sobre perspectivas de política científica, seus instrumentos, métodos e práticas”, que como sabemos não esgotam a densidade ampla e abrangente da problemática genérica da política científica na história e, sobretudo, não se esgotam nos modelos veiculados pela comunidade de analistas em política científica, apoiados em fóruns internacionalizados (Ruivo, 1998: 84 e 1994: 161).

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ação em política científica, tornada visível pela criação da Junta de Educação Nacional e compreendendo-se aqui anos de pioneirismo,enorme criatividade e certo experimentalismo na implementação de uma política científica; um segundo período (1929-1960), em que sobressaem as condicionantes do regime autoritário, mas em que se abriram outras frentes de política científica (colónias, energia nuclear, etc.), cruzando-se já conceitos e visões distintas de política científica; outro período, também se sobrepondo, em que o regime do Estado Novo português teve de ceder às lógicas de um novo pós-guerra (1945-1968), em que começam a circular os conceitos ‘modernos’ da política científica, sob influência de diversas colaborações com organismos internacionais, desde a ajuda Marshall às relações com a OCDE, passando pelo Programa de Ciência da NATO e encerrando-se, simbolicamente, com a passagem de testemunho do salazarismo para o marcelismo. Por fim, temos a emergência de um período nos finais da década de 1960, resultado do predomínio do ‘paradigma tecnocrata’7 de política científica, alegadamente ‘sistémico’ e ‘vinculacionista’, em boa medida por detrás da criação da JNICT e que logrará resistir aos ventos revolucionários da aurora democrática em Portugal – política e ideologicamente em contraciclo. Resistindo à instabilidade política, o ‘paradigma tecnocrata’irá permanecer e virá mesmo a beneficiar de renovado impulso proporcionado pelo horizonte europeu e pelo processo da integração comunitária, em boa medida um processo de delimitação da política científica à alocação de recursos, incrementados pelos fundos comunitários, e de subordinação às práticas auxiliares de programação e gestão, enquadradas por quadros legais e normativos comunitários.

Vejamos então em síntese, numa perspetiva político-institucional, os três períodos que se configuram entre 1910 e 1968, entre continuidades e sobreposições, demonstrando a dimensão cumulativa do processo de construção da política científica. Veremos como em vésperas da Revolução de 1974 a diversidade do conceito de política científica em Portugal era patente, não obstante estar já em curso a paulatina afirmação de algumas lógicas de cariz tecnocrata. De seguida procuramos então avaliar o significado do processo revolucionário interrompendo este processo, desarticulando idiossincrasias e traduções institucionais, embora no final do período revolucionário (1974-1976) sob o manto da democratização e da modernização da sociedade portugueses descortina-se já a sobrevivência de algumas lógicas que marcarão períodos subsequentes.

7 Por ‘paradigma tecnocrata’ entendemos uma lógica de afirmação e iminente predomínio de uma visão de apropriabilidade do conhecimento e da investigação, seja política ou económica, sendo inclusive propalada pela lógica ‘economicista’ uma visão tecnocientífica do conhecimento – isto é, atribuindo à tecnologia um lugar central no desenvolvimento económico e social e, simetricamente, olhando apenas para os fins tecnológicos (ou comercializáveis) da investigação e do desenvolvimento experimental. Assinale-se que, longe de ser um anacronismo, este fenómeno (e o sentimento associado) foi historicamente percecionado – por exemplo, Meynoud (1968).

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Uma primeira etapa (1910-1936): da matriz republicana aos embates do

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