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Comece-se então por observar alguns títulos e cabeçalhos desta seleção de artigos. “Madalena Perdigão: ´Sou uma mulher muito feliz´” – 13/05/1983, A Tarde, entrevista de Isabel Riques – salienta-se uma frase da entrevista, que em primeiro lugar não diz ser uma pessoa muito feliz, mas uma mulher, depois, nada revela sobre a sua vida profissional. Noutro caso: “Nella Maissa conta o dia-a-dia de pianista e dona de casa” – 08/09/1983, A Capital; inclui-se a referência à sua atividade artística, mas sem esquecer o seu lado “feminino” (e uso intencionalmente o adjetivo feminino), que é ser dona de casa. O baixo português Álvaro Malta, um dos mais familiares nomes do canto em Portugal, também por com frequência falar de ópera na rádio ou na RTP, diz em entrevista a José Meireles: “Sou totalmente anti-aborto”

– 15/10/1984, A Capital. A entrevista data do ano em que a lei do aborto foi aprovada (Lei

6/1984, de 11 de maio), sendo então permitido interromper a gravidez até às 12 semanas nos casos em que apresenta risco de vida ou lesão grave e duradoura para a mulher ou quando a gravidez resulta de violação e até às 16 semanas quando há malformação do feto. Apesar de ser uma lei vista como desajustada foi uma importante conquista dos direitos das mulheres, e portanto uma mudança social. A prova disso é que cinco meses depois de a lei ter sido decretada em Diário da República, o debate público mantém-se, até numa entrevista a um cantor. Mas além dos cabeçalhos, um pouco por todo e cada artigo estão espelhadas mensagens políticas, são veiculadas ideologias. Atentemos num excerto da entrevista a Madalena Perdigão por Isabel Risques:

Madalena Perdigão não é apenas a mulher do Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. Ela é também, entre outras coisas, a responsável pela organização do 1º Festival Internacional de Música de Lisboa que amanhã se inicia, em primeira audição, no Teatro Municipal de São Luís. (...) Quanto ao resto, e para além de se considerar “muito feminina”, considera-se uma pessoa “muito feliz!”: “Tenho de dar graças a deus por aquilo que me tem concedido na vida. Tenho a obrigação de me considerar uma mulher muito feliz.

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Porquê? Porque tenho um marido, um filho, uma vida familiar harmoniosa e um trabalho que gosto.” (A

Tarde, 13/05/1983)

Repare-se que Madalena Perdigão é, em primeiro lugar, a mulher do Presidente. E como “a mulher” é ótima em tarefas organizativas, ela não é a Diretora do Festival Internacional de Música de Lisboa, mas antes a responsável pela organização. Depois assume-se “muito feminina”, embora não saibamos o que quer isso dizer, mas ela continua, devendo a sua felicidade acima de tudo ao facto de possuir um marido e um filho. Também Nella Maissa, que nos é apresentada como dona de casa, vê o seu género bem definido:

A par dos seus recitais e concertos, Nella Maissa tem a vida de qualquer dona de casa. Adora cozinhar “e dizem que sou uma boa cozinheira”, acrescenta. As suas especialidades são os pratos tradicionais de família, massas italianas, tartes, pizzas napolitanas. (…) Na sua opinião o dia-a-dia de uma dona de casa é muito cansativo e, sem ajuda, equivale a um emprego: “Acho pior do que trabalhar. É um trabalho inglório, mas necessário”. Extraordinariamente activa, faz tricot, não pode ver nada desleixado na casa e joga bridge. Lê também bastante. (A Capital, 08/09/1983)

Por ocasião do funeral de Rachel Bastos, a notificação inclui o comentário de Gaspar Simões ao seu livro “Um Fio de Música”, que lhe salienta o caráter feminino…

Foi na segunda-feira a enterrar a escritora e artista lírica Rachel Bastos, que falecera em Lisboa no dia anterior, com 83 anos. (…) Rachel Bastos escreveu a novela “Um fio de música”, que em 1937 foi galardoada com o prémio Fialho de Almeida e que João Gaspar Simões considerou então “o livro mais feminino que se tem escrito em Portugal” (“Rachel Bastos foi a enterrar”, Se7e, 18/01/1984).

Atente-se no cuidado de referir, por um lado, um homem a reconhecer qualidade ao livro de uma mulher, por outro, a seleção da frase, a qualidade do livro revela-se no cumprimento de género da autora. No excerto que se segue, sobre um concerto para mulheres, fala-se da sala onde as convidadas se reuniram após o seu fim. Não há qualquer referência à música tocada, aos instrumentos, apenas se referem às convidadas e à decoração da sala. Uma notícia sobre mulheres escrita para mulheres.

A dra. Manuela Eanes, acompanhada das embaixatrizes dos países com representação diplomática em Portugal, assistiu ontem no Palácio da Ajuda, a um recital pela Fundação Músical dos Amigos das crianças. (…) Além das embaixatrizes estiveram presentes as senhoras da Associação dos Diplomatas Portugueses, a esposa do Sec. de Estado da Cooperação, embaixatriz Gaspar da Silva, as senhoras da presidência da República e as convidadas pessoais da esposa do Presidente da República, como a dra Madalena Perdigão e a orientadora da FMAC, Adriana de Vecchi.

(…) Após o concerto, (…) as convivas reuniram-se na sala de jantar privada da rainha D. Maria Pia, que não se encontra aberta ao público e onde está exposta a colecção de pratas e as restantes prendas que constituiram os presentes de casamento daquela rainha. A sala foi adornada com flores arranjadas à maneira do século passado (“Concerto na Ajuda para embaixatrizes”, Diário de Notícias, 28-02-1984).

Em 1984, na entrevista a Álvaro Malta já citada devido a um cabeçalho, encontram-se muitas mais pistas sobre a definição e distinção de géneros, mas também sobre direitos humanos, onde um obstetra cantor que se assume como profundamente católico tece comentários punitivos acerca do aborto.

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Alto, robusto como um touro, simpático e directo, Álvaro Malta, que também é médico especialista em ginecologia e obstetrícia, sorri ao futuro. (…) “Conheci a minha mulher no coro de teatro de S. Carlos quando ela tinha 15 anos.” (…) Quando falamos sobre o aborto Álvaro Malta põe-se rígido, aferra-se à mesa de trabalho e olha em frente: “Sou um homem religioso e como tal sou totalmente anti-aborto. Se alguém considera que abortar é legítimo, é profundamente desumano como desumana é a Assembleia da República e o senhor presidente da república, não tenho medo de o dizer.” E acrescenta: “Acho que é uma crueldade sem nome e dos maiores crimes que se cometem contra a humanidade permitir matar estas crianças indefesas.”

Para os casos específicos que a lei portuguesa do aborto contempla, Álvaro Malta tem uma resposta pronta: “Das malformações encarrega-se a Natureza que não permite a existência de monstros. Não precisa a Assembleia da República de deixar matar pessoas inocentes.” (…) “A mãe violada não tem direito de matar o feto, porque ela não é dona dessa vida inocente e diferenciada que está a gerar dentro de si.” (José Meireles entrevista Álvaro Malta, A Capital, 15-10-1984).

Mas há ainda outros comentários, ou pequenas frases que refletem a continuidade de estereótipos e preconceitos. Seguem-se alguns exemplos que pretendem incitar à reflexão.

Lia Altavilla e Helena Vieira, em que dificilmente podíamos ver as feias irmãs (Diário Popular, 07/1985, F.P.).

A Berganza no palco é, só por si, sem abrir a boca, um maravilhoso espectáculo, até na arte de bem vestir (Correio da Manhã, 01/1986, J. Pacheco).

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