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Legitimação por referência a homens: caso de Irene Lisboa e Francine Benoît

É corrente na escrita de biografias históricas recorrer a referências para legitimar determinada pessoa ou grupo de pessoas. Mas é infeliz verificar como no caso de mulheres, continuamente ocultadas, e gradualmente recuperadas ao longo dos últimos vinte/trinta anos, as referências utilizadas são, persistentemente, homens, reiterando, em vez de combater, a hegemonia patriarcal.

A título de exemplo, refiro duas das mulheres deste estudo: Irene Lisboa e Francine Benoît (1894-1990). De Irene Lisboa (1892-1958), grande parte dos textos, recorre à afirmação de José Gomes Ferreira: “a maior escritora de todos os tempos portugueses” (apud Carmo, 2013: 46) ou ainda a profecia por realizar de José Rodrigues Miguéis: “daqui a dez ou vinte anos, quando a mais-valia do tempo tiver definitivamente cristalizado a sua Obra de audácia e reticência, de anseio e pudor, ela será, toda ela, um documento humano de irrecusável pungência e beleza” (apud Cruz, 2013: 1). Outros dos nomes que são evocados quando se escreve sobre Lisboa são: José Régio, Gaspar Simões, Casais Monteiro, Vitorino Nemésio, Óscar Lopes, entre outros. Quanto a Benoît, é frequente remeter-se para a relação de amizade com o Fernando Lopes-Graça, mas referem-se também com alguma frequência, entre outros, Vitorino Nemésio, João José Cochofel, José Gomes Ferreira, Mário Dionísio.

Invisibilidades

Mas além da enorme discrepância entre o número de homens e o número de mulheres referidas, há mais conteúdos problemáticos nestes trabalhos recentes: por exemplo, no caso de Francine Benoît, é constante a omissão da sua vida privada. Vieira (2011) optou intencionalmente por não considerar os diários de Francine Benoît como fonte para o seu trabalho sobre esta, o que considero ter sido uma grande lacuna. Em primeiro lugar, estes contêm dados intermináveis sobre a sua vida profissional, incluindo notas de encomendas de obras, o seu processo criativo, também sobre a sua atividade pedagógica, os coros que dirige, etc.. Depois, porque evoca constantemente nomes de amigas e amigos, comentando questões profissionais, mas também fornecendo pormenores sobre os convívios. Há que entender que o binarismo público/privado é mais um dos sistemas de dominação que importa combater, o que ajuda se percebermos como as sociabilidades por exemplo, se imiscuem inevitavelmente no percurso profissional de qualquer pessoa.

Falando de afetividades lésbicas, sabemos (Foucault/biopoder) que a naturalização da classificação das perversões e comportamentos desviantes foi e é operada mediante uma repetição e simultaneamente re-inscrição de comportamentos. Esta lei vista como natural é reforçada por dispositivos legais, como sucedeu em Portugal de forma particular no Estado Novo – o regime serve-se da ideia de que o safismo perverte a função natural da mulher, ser esposa e mãe, e remete todos os comportamentos de cariz homoerótico para penalizáveis atos contra a natureza. À questão legal acresce o caráter fantasmagórico (Castle, 1995) de mulheres lésbicas: há uma dupla estigmatização que pesa sobre mulheres que vivam

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afetividades lésbicas, por um lado porque são mulheres, e não se considera terem uma sexualidade ativa, mas passiva e funcional subjugada ao homem, negando-lhes prazer físico no ato sexual; ainda porque a sua sexualidade é desafiante e desviante, contrária às normas, e, por não haver penetração de um falo nem ser vertido sémen, é tida como uma prática afetiva pouco significativa. Foi este caráter fantasmagórico que acabou por ajudar a proteger as lésbicas da classe dominante, mas não só, da prisão, da tortura, do internamento – o que acontecia a mulheres de outros contextos sociais menos privilegiados. Escondendo-as, e ignorando as suas práticas subversivas, mas ao mesmo tempo tidas como ingénuas, instalou- se uma permissividade nas elites.

Na historiografia, o tratamento mais frequente é o apagamento de tudo o que possa remeter para relações lésbicas, e a adocao do discurso do celibato como dedicação extrema ao trabalho. E isto que acontece com Francine Benoît também. Vieira refere-se à companheira de mais de trinta anos de vida de Benoît apenas como amiga: “O estudo sobre Francine Benoît surgiu do conhecimento de Dª Madalena Gomes, escritora portuguesa de literatura juvenil portuguesa, que havia conhecido em vida Francine, que ao morrer sem descendência direta, confiou à sua amiga parte do seu património cultural” (Vieira, 2011: 28).

Sobre o percurso de vida de Benoît, Vieira afirma que: “este papel que aparentemente aceitou de forma passiva, conduziu a uma postura psicológica e masculina”2 (Vieira, 2011: 233), concluindo que “as suas preocupações de formar um casamento e, consequentemente, a maternidade, pioram a situação de uma viuvez internalizada”3 (2011: 235). Assim, Vieira associa o não cumprimento das normas sociais à adoção de uma postura que apelida de “masculina”: “a atitude preconizada por Francine é a de uma mulher moderna, que gosta de tabaco e dos cabelos curtos, hábitos quase exclusivos dos homens, sinónimos de perda de feminilidade”4 (idem: 235).

Este tipo de argumentos é prova de um binarismo de género estruturalmente inscrito nas práticas e discursos. Perante a adoção destes discursos, o que não seja traço dito feminino (que é considerado dominado, submisso, dependente, passivo, cuidador, discreto, espírito, emoção) é, por oposição, tido como masculino (dito dominador, ativo, instigador, agressivo, matéria, inteligência).

É tendo por base o discurso que a vida íntima não é um dado a ter em conta (e porque se parte do pressuposto que existem duas esferas opostas: íntima e pública), que se reiteram preconceitos e invisibilidades que se revestem de um teor efetivamente violento. Ao marginalizar continuamente afetividades alheias à norma (sendo a norma a

2 Tradução da autora. No original: “este papel que aparentemente aceptó de forma pasiva, le han conducido a una postura psicológica y masculina”.

3 Tradução da autora. No original: “sus preocupaciones de formar un matrimonio y, consecuentemente, la maternidad, empeoran con el infortunio de una viudedad interiorizada.“

4 Tradução da autora. No original “Sin embargo, la actitud preconizada por Francine es la de una mujer moderna, a quien gusta el tabaco y de los cabellos cortos, hábitos casi exclusivos de hombres, sinónimos de pérdida de femineidad”.

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heterossexualidade), acentua-se a estigmatização de que são alvo pessoas que as vivam ou tenham vivido.

Quanto a mim, não tenho dúvidas que o facto de entre Francine Benoît e muitas das mulheres da sua rede de amizades se terem vivido afetividades lésbicas contribuiu também para o apagamento destas narrativas, e para o tratamento questionável (em que me debrucei) nas recuperações recentes, em que as sociabilidades íntimas são omitidas. Porque as causas nunca são unas, mas sempre uma assemblage de fatores, acredito que este tenha sido mais um.

Acho ainda provável que o receio de algumas mulheres serem tidas como demasiado próximas de Francine, demasiado próximas de círculos feministas e lésbicos, terá prejudicado as lutas destas mulheres, e pela sobrevivência até. Em entrevista a Elisa Lamas, pianista e professora aposentada do Conservatório Nacional, que conheceu Francine Benoît e socializou com algumas pessoas próximas desta, disse-me:

Oh, sim, a Francine Benoît toda a gente sabia que era homossexual. Aliás, olhava-se para ela e via-se logo. A forma como se vestia e apresentava, não era uma mulher bonita e nem se esforçava minimamente por sê- lo. (ignoremos aqui a interiorização deste discurso misógino e homofóbico)

Por outro lado, outras houve que simplesmente esqueceram ou apagaram os seus ideais, em prol de uma vida tradicional ou de mais notoriedade. Invoco o exemplo de Gabriela Monjardino Gomes que, mesmo tendo mantido uma relação íntima e duradoura com Francine Benoît, decidiu tornar-se esposa de Vitorino Nemésio, tendo o seu dia-a-dia passado a resumir-se a cozinhar, limpar e tratar dos filhos e marido, conforme a própria descreve na correspondência tardia que mantém com Benoît. Ou o exemplo de Virgínia Gersão, que manifesta afetividades lésbicas na correspondência mantida com Francine Benoît, foi parte de uma elite intelectual de Coimbra ligada à oposição, mas eventualmente ter-lhe-á virado costas ao aceitar um lugar de deputada na Assembleia Nacional, onde esteve entre 1945 e 1949 ligada à Educação – isto foi visto como uma traição por Francine Benoît e outras amigas, que acabaram por se afastar.

Parte II

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