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O golpe militar ocorrido a 11 de março de 1975 correspondeu a um embate entre os setores mais conservadores (no seio do qual se destacavam os oficiais 'spinolistas'), e os setores mais à esquerda no seio das Forças Armadas (os que estavam próximos da Coordenadora do Movimento das Forças Armadas - MFA), na sequência da formação de campos político- militares antagónicos ao longo dos meses anteriores.3 Apesar das especificidades inerentes à instituição militar não serem menosprezáveis, estes campos também correspondiam a

2 É nomeadamente o caso das análises às lutas sociais nas empresas (Santos et al., 1976) e de trabalhos que sublinham a importância das comissões de trabalhadores e moradores (Hammond, 1988; Bermeo, 1986), bem como dos que analisam as transformações económicas verificadas durante o período (Murteira,1979: 137-148; Silva, 1984: 43-72).

3 Existem vários relatos e versões dos acontecimentos (Neves, 1975; Pinto e Calvão, 1995; Bernardo, 2004; Rezola, 2007). Existe também um 'Relatório preliminar sobre o 11 de março', elaborado por uma Comissão de Inquérito nomeada pelo Conselho da Revolução (Neves, 1975: 270-291). Há ainda um excelente estudo dedicado ao comportamento dos militares e à evolução do MFA durante o processo revolucionário (Rezola, 2004).

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divergências relativamente às transformações em curso na esfera económica e social, que se haviam aprofundado ao longo dos meses anteriores.

A economia portuguesa, que registara uma acentuada deterioração dos termos de troca com o exterior a partir de 1973, vira o investimento contrair-se e o défice da balança comercial aumentar significativamente após o derrube da ditadura, quando uma vaga de conflitos laborais percorreu o país aproveitando a desagregação do aparelho repressivo e obtendo aumentos salariais consideráveis (Ribeiro et al., 1985: 453-454; Noronha, 2012: 227- 233). Formado em maio de 1974, o I Governo Provisório havia instituído um salário mínimo e congelado os preços de bens essenciais, ao mesmo tempo que o Banco de Portugal injetava liquidez na economia, utilizando as suas reservas de divisas e emprestando dinheiro à banca privada, a uma taxa de juro reduzida (redesconto), para manter em laboração empresas com dificuldades de tesouraria (Banco de Portugal, 1975: 231-232).

As autoridades não podiam contudo controlar a aplicação desse dinheiro e numerosos pequenos e médios empresários começaram a reportar ao Governo Provisório ou à Coordenadora do MFA casos injustificados de recusa de concessão de crédito.4 Desde o Verão que a direção do Sindicato dos Empregados Bancários de Lisboa (eleita em 1972 e na qual figuravam diversos militantes do Partido Comunista Português [PCP]) considerava o setor bancário um dos principais instrumentos de poder nas mãos do que denominava o 'capital monopolista'5 (os grandes grupos empresariais que controlavam os setores estratégicos da economia e que haviam beneficiado da política de industrialização do Estado Novo), acusando os banqueiros de canalizar para as suas próprias empresas e contas pessoais a liquidez que obtinham junto do Banco de Portugal. As denúncias públicas deste Sindicato assumiam um impacto tanto maior quanto este desempenhava, desde 25 de abril de 1974, um papel oficioso (reconhecido pelas autoridades militares) na fiscalização das instituições de crédito, com o objetivo de impedir fugas de capitais e corridas aos depósitos.6

Emergiam simultaneamente novos conflitos laborais, através dos quais a mobilização coletiva dos trabalhadores procurava impedir despedimentos ou reduções salariais (Pires, 1975; Santos et al., 1976; Pérez, 2009). A partir do outono de 1974, generalizou-se a prática do 'controlo operário' e a exigência de nacionalização ou intervenção do Estado, com as Comissões Sindicais ou de Trabalhadores a aceder a documentos confidenciais até aí reservados às cúpulas empresariais e a denunciar casos de 'sabotagem económica': desvios de fundos, exportações ilícitas de capitais, transações de títulos proibidas pelo Banco de Portugal, práticas de subfaturação e sobrefaturação que canalizavam verbas de empresas portuguesas para firmas intermediárias localizadas no estrangeiro. Esta vaga de conflitos laborais produziu uma narrativa, hegemónica no espaço público, sobre a economia portuguesa e os mais poderosos empresários e banqueiros, acusados de bloquear propositadamente os

4 ACMF, Gabinete do Ministro das Finanças, 33- Banco de Portugal, refª 0000 0011 0259.

5 Veja-se, a esse respeito, o livro publicado pela Comissão de Delegados Sindicais do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (Antunes et al., 1975). A propósito do «capital monopolista» (Santos, 1977; Pereira, 1974: 124-132).

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seus investimentos de maneira a agravar a situação económica e de financiar atos conspirativos contra o MFA e o Governo Provisório. A força dessa narrativa explica tanto a sequência de acontecimentos posterior ao 11 de março como as medidas governamentais ao longo dos meses anteriores, que visavam assegurar o “controlo do poder económico pelo poder político”.7 O Decreto-lei 660/74 permitia ao Estado remover administradores de empresas privadas, caso houvesse suspeitas de irregularidades ao nível da gestão, mediante um inquérito levado a cabo pela Inspeção-Geral de Finanças. O Decreto-Lei 661/74 permitia ao Banco de Portugal colocar delegados junto das administrações da banca privada, com pleno acesso a todas as informações relacionadas com a concessão de crédito e a evolução dos depósitos. No início de 1975, enquanto se debatiam soluções para enquadrar a intervenção do Estado na esfera económica (nomeadamente um 'Plano de Política Económica' redigido sob a orientação do Major Melo Antunes), os bancários de Lisboa aprovaram em assembleia-geral uma moção exigindo a imediata nacionalização da banca.8

No fim-de-semana de 8 e 9 de março, os bancários do Partido Socialista (PS) aprovaram num encontro nacional um documento com exigências do mesmo teor (Cabral et al., 1975).9 Esta sucessão de medidas governamentais e movimentações laborais permite-nos compreender melhor os acontecimentos de março de 1975. Assim que tomou conhecimento do ataque aéreo ao Regimento de Artilharia Ligeira 1, na manhã de 11 de março, o Sindicato dos Empregados Bancários do Distrito de Lisboa emitiu uma curtíssima circular interna com instruções aos seus associados:

Camaradas, face à tentativa desesperada dos restos da escumalha fascista, o sindicato de Lisboa decidiu: encerrar os bancos, mantendo a estrutura sindical a vigilância aos sectores fundamentais; não permitir o acesso aos estabelecimentos bancários às administrações.10

À tarde foi emitido um comunicado à população explicando a decisão sindical de 'encerrar os bancos a partir das 14 horas' para 'proteger os valores à guarda dos bancos da rapina das administrações reaccionárias'.11 Tendo assumido ao longo dos meses anteriores as funções de um duplo poder, capaz de controlar os movimentos bancários e fiscalizar a concessão de crédito, o Sindicato tomou pura e simplesmente controlo dos bancos entre 11 e 15 de março, formando piquetes que ocuparam as instalações e tomaram posse das chaves dos cofres. No dia 13, um longo comunicado assinado pelos três Sindicatos Bancários justificava o encerramento e afirmava simultaneamente o seu poder sobre a banca:

7 A expressão tornou-se frequente tanto no discurso governamental como entre os elementos do MFA. Cf. Movimento, Boletim do Movimento das Forças Armadas, nº4, 12/11/1974, 1.

8 Informação nº15 (número especial), 3/01/1975, ASBSI.

9 "Apoiar o Plano de política económica na sua interpretação progressista – decisão do encontro dos bancários socialistas”, República, 10/03/1975, 12-14.

10 Informação 13/75, 11/03/1975, ASBSI.

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A retumbante vitória da aliança Povo/MFA sobre as forças reaccionárias que no dia 11 tentaram implantar de novo o fascismo, arrasta necessariamente responsabilidades e consequências. Os trabalhadores bancários souberam prontamente assumir as suas responsabilidades vigiando e controlando os bens depositados à guarda dos Bancos e continuarão a assumi-las demonstrando uma vez mais que estão inequivocamente integrados no irreversível processo revolucionário. A necessidade de adaptar as actuais estruturas das empresas bancárias aparece como consequência lógica da nova situação política conquistada. … Como ainda não foi possível realizar tudo o que consideramos necessário para que estes objectivos sejam alcançados, torna-se prematura a abertura dos bancos imediatamente. Nesse sentido os bancos continuam encerrados hoje, dia 13. A sua reabertura será pública e oportunamente divulgada pelos Sindicatos e órgãos governamentais.12

Foi neste contexto que decorreu, na madrugada de 12 de março, uma assembleia de militares sem convocatória formal ou ordem de trabalhos prévia, na qual seriam tomadas decisões com um impacto duradouro (Neves, 1975: 291). Foi criado um órgão político-militar com amplos poderes (o Conselho da Revolução) e institucionalizado o MFA (até aí uma sigla de contornos informais). O Conselho da Revolução iniciou os seus trabalhos a 14 de março, decretando a nacionalização do sistema bancário (com exceção das caixas agrícolas e dos bancos estrangeiros a operar em Portugal) através do Decreto-Lei 132-A/75, no qual destacava 'a capacidade demonstrada pelos trabalhadores da banca na fiscalização e controlo do respectivo sector de actividade', reconhecendo a importância decisiva das organizações sindicais.

Pairava há meses o espetro de uma conspiração financiada e guiada pelos grandes empresários portugueses, materializada pelos setores mais conservadores das Forças Armadas, em conjugação com elementos de extrema-direita e o apoio de serviços secretos estrangeiros. O enredo de 11 de março encaixava plenamente nessa narrativa e veio converter suspeitas em certezas, persuadindo os elementos mais moderados ou hesitantes do MFA e da coligação governamental. As informações vindas a público na sequência da nacionalização da banca e do acesso dos delegados sindicais aos cofres-fortes e gabinetes das administrações pareciam confirmar as acusações de 'sabotagem económica'.13 Ainda que a complexidade e opacidade das operações em causa - financiamento de partidos políticos de direita e extrema- direita, desvios e exportações ilícitas de capitais, «sacos azuis» criados para levar a cabo manobras especulativas no mercado de títulos - tornassem difícil apurar alguns dos factos fundamentais (ou enquadrá-los juridicamente à luz da legislação vigente), as instituições acusadas incluíam o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL), o grupo Borges & Irmão, o Banco Pinto & SottoMayor, o Banco Totta & Açores e o Banco Fonsecas & Burnay.14 A divulgação destas informações parecia legitimar as nacionalizações enquanto medidas defensivas face a uma ameaça contra-revolucionária (o caso do Chile era frequentemente referido como exemplo na imprensa), fazendo da «opção socialista» um

12 «Hoje dia 13, a banca continua encerrada», 13/03/1975, ASBSI.

13 “Sabotagem económica desmascarada”, Diário Popular, 01/04/1975, 1 e 15.

14 “ «Nacionalizar a banca foi destapar os segredos do grande capitalismo» - afirmou Mário Murteira”, Jornal de Notícias, 05/04/1975, 4.

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corolário do antifascismo e o prolongamento lógico do derrube da ditadura. Saudada por manifestações em diversas cidades e recebendo o apoio dos partidos que integravam o III Governo Provisório (ao PCP e PS juntou-se o Partido Popular Democrático [PPD, fundado por dissidentes liberais do regime ditatorial]), a nacionalização da banca foi considerada por Álvaro Cunhal (Secretário-Geral do PCP), num comício realizado a 16 de março, 'o dobre de finados dos grupos monopolistas' (Cunhal, 1975: 166). Menos dramático na sua formulação, o relatório do Conselho de Administração do Banco de Portugal assinalava a relação entre a conflituosidade social e as nacionalizações:

Em termos globais, pode salientar-se, como alteração de fundo, a perda do poder económico dos grandes grupos privados que anteriormente dominaram boa parte do processo produtivo. Tal perda começou por concretizar-se pela redução drástica do poder de negociação dos empresários em relação aos trabalhadores e culminou com a nacionalização de grande parte dos sectores dominantes da economia, de que resultou a transferência para o Estado do poder de actuação directa sobre a actividade produtiva. (Banco de Portugal, 1975, 230)

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