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Uma primeira etapa (1910-1936): da matriz republicana aos embates do autoritarismo

Nas nações ibéricas, na quietude das suas questiúnculas internas, eivadas de um sentimento de frustração, ou mesmo preocupação face à sua posição internacional, homens houve que procuraram apregoar as virtudes da Ciência. Em ambos os países houve elites que entenderam a ciência como componente a perseguir, se a nação pretendesse apanhar o “comboio da modernidade” (OteroCarvajal, 2000).

Em Portugal, em particular, a natureza de um projeto político, no caso o republicano, parece ter despertado preocupações alargadas com o progresso da nação, contemplando a Ciência, nomeadamente como forma de “quebrar o isolamento cultural” 8 do país, e especificamente o científico (Costa, [1918]: 60) – num entendimento que pretendia, inclusive nalguns mais ousados, entrelaçar a “alta cultura intelectual e a economia nacional” (Raposo, 1928: 416).

Entendemos portanto que, a partir de um reconhecimento da ciência enquanto instrumento político (Catroga, 1995: 584), o republicanismo contribuiu, de certa forma, para desencadear a “fase política da revolução científica”, conforme Dedijer ([1962]: 490) havia perspetivado em relação ao século XX. Em rigor, se não nasceu da República, pelo menos podemos reconhecer que as circunstâncias históricas que acompanharam a Primeira República proporcionaram a afloração de um pensamento, importante no âmbito da “cultura científica em Portugal, nomeadamente pela dimensão de organização da ciência e do papel pedagógico que lhe seria atribuído” (Rollo et al., 2011: 110). Nesse pensamento contemplava-se, e insistentemente se propôs, a criação de diversos organismos.

De facto, a República empreendera uma muito ansiada reforma do ensino superior. Todavia, cedo se entendeu à Universidade renascida lhe faltava ‘alma’, esse ‘espírito científico’ que orientava os ideais da geração de 1911. Anexara-se pedagogicamente os institutos e laboratórios de investigação – criando-se inclusive outros, tais como o Instituto de Anatomia, o Instituto de Histologia e Embriologia, o Instituto de Fisiologia, o Instituto de Farmacologia e o Instituto de Anatomia Patológica (Morato, 1937: 5) – mas a articulação entre os departamentos, entre o conselho pedagógico e os institutos, entre a prática docente e a prática científica permaneceu disfuncional, entre passividade e conflito latente. É isto que expressa Azevedo Neves, nas seguintes e expressivas palavras:

A nossa Universidade começou logo por ter uma pequena alma e nenhum corpo, porque o decreto que a fundou, se lhe deu existência, não lhe trouxe o modo de ser. Deus criou o homem de barro, e depois insuflou-lhe a alma; o órgão e a função. A Universidade de Lisboa falta por completo a anatomia, de que

8 Isto na linha de um intuito propedêutico, de regeneração da nação portuguesa, característico do pensamento educativo de alguns segmentos das elites nacionais do último terço do século XIX.

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resulta uma vida sem esteio, sem finalidade. (...) É necessário que a Universidade possua um ideal criador quanto à ciência, e um ideal de difusão, de infiltração quanto ao ensino e à cultura social. Em resumo, a nossa Universidade somente conseguirá desempenhar o papel que lhe pertence quando claramente assinalar um ideal científico e um fim social.» (Neves, 1920: 11)

Deste modo, face a estes problemas do ensino superior e à necessidade de afirmar um lugar para a Ciência, emergiu então a ideia de criação de um organismo independente da Universidade, da burocracia e da política, colocado paralelamente à própria Universidade, que, por seu lado, devia também tolerar a existência de centros e institutos de investigação, criados na sua órbita mas dependentes de instituição científica autónoma (Costa, [1918]: 68). Lembremos o próprio Agostinho de Campos, que falara sem rodeios:

Tolerar o inevitável: que as escolas superiores continuem a ser (como têm sido e as exige o ambiente social) estabelecimentos de preparação para as carreiras utilitárias. E entregar a função investigadora e criadora de ciência a institutos especiais, escrupulosamente dotados de pessoal, largamente dotados de material de trabalho (...). (Campos, 1937: 26)

Este primeiro período (1910-1936), portanto, contribui decisivamente para criação da ‘Junta de Educação Nacional’, enfim constituída em 16 de janeiro de 1929, de acentuada matriz republicana, de intuitos pedagógicos, um paradigma de política científica assente na estratégia de difusão e promoção da cultura científica. Conforme o diploma da Junta de Educação Nacional (JEN), característica de uma primeira geração de agências de política de ciência, avançara-se para a sua criação, “para favorecer a cultura científica, factor preeminente da riqueza e da força de um país, pela sua importância na formação da mentalidade social e pela sua influência na preparação profissional e na valorização do património comum (...)”.9

Logo nesses anos decorrera um debate quanto à questão do modelo que acabou por consagrar-se com a criação da JEN. Conforme Baptista (2001), ficou cedo bem patente o problema das responsabilidades sociais e políticas dos ‘homens de Ciência’, o papel atribuído à cultura científica e os primórdios da emergência de duas atitudes face à organização da ciência.Uma aposta não só na ‘liberdade da inteligência’ como na ‘vontade pedagógica’ e no enraizamento social das verdades externas da própria prática científica (diria António Sérgio

apud Baptista, 2001: 27), a ‘cultura científica’, por oposição a outra visão mais pragmática e apostada em apresentar os resultados da investigação científica, a visão que para uns terá já prevalecido e enformado o modelo final da JEN, aqui criticada como uma “Junta das Sumidades” (Baptista, 2001: 31) – uma clivagem entre ‘homens de cultura’ e ‘homens de ciência’, preexistente à própria emergência dos arautos do desenvolvimento económico

9 Segundo o Decreto n.º 16 381, de 16 de janeiro de 1929, que criava a Junta de Educação Nacional. Diário do Governo, Iª Série, n.º 13, 16 de janeiro de 1929.

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(veiculado pelo ‘engenheirismo’ e depois por uma escola de economistas a partir do segundo pós-guerra) (Brito, 1988; Rodrigues, 1999 e 2004; Rosas, 2000).

Todavia, mais ou menos elitista, de uma forma ou de outra e do ponto de vista do modelo de organização da Ciência, da sua institucionalização, estamos a falar de uma instituição que, claramente, fazia já parte do “sistema externo da ciência”10 (Kaplan, 1975: 352), pois tratava- se de facto da primeira agência de política científica que o País teve. Outros projetos antecederam, mas por uma razão ou outra nunca passaram de propostas ou letra de lei (Rollo

et al., 2011 e 2012). Neste ponto, o modelo da Junta de Educação Nacional, claramente de matriz republicana, era expoente de uma ‘primeira geração’11 de política científica, orientada pelo espírito do laissez-faire, que enquanto doutrina de economia política deu também corpo a órgãos de política científica tendo em vista ‘a promoção e o apoio’ da investigação científica, mas ainda não proclamando, diretamente ao menos, a afetação dos recursos científicos para determinados fins, aspeto que já será determinante na ‘segunda geração’ de agências de política científica que emergirão no segundo pós-guerra.

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