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Mulheres artistas no Estado Novo Francine Benoît (1894-1990) e as suas redes de sociabilidade

Primeiro, importa clarificar que este estudo se centra em elites, com todos os privilégios por isso inerentes. Falo de mulheres que pertencem a círculos intelectuais e artísticos, onde constam nomes canonizados (refiro-me aos homens pois, como Fernando Lopes-Graça, João José Cochofel, Mario Dionísio, Vitorino Nemésio, Francisco Vieira de Almeida, etc.), redes que se reforçam mutuamente. A resistência ao Estado Novo destas elites verificava-se essencialmente nas artes, não só em discursos e palestras, como também na defesa e prática de estéticas contrastantes com as apologizadas pelo regime. E, sim, nas práticas sociais íntimas, onde as ideias circulam, onde se pensa coletivamente, onde se partilham opiniões. O salão enquanto forma de sociabilidade é alvo de estudo há alguns anos, sobretudo relacionado com a história das mulheres, por lhes estar associado e também relegado à esfera privada, minimizada a sua relevância, etc..

Utilizo várias vezes o termo mulher, não enquanto pretensamente abrangente e homogeneizante de toda uma massa populacional, mas referindo-me a um entendimento muito específico de género relativo às figuras e contexto em estudo, que cruza perceções sociais de sexo, de comportamento, de classe, de raça e etnia, de aparência e performatividade.

Resultado de pesquisa pelos diários e epistolografia de Francine Benoît, passo a salientar alguns nomes de mulheres do seu vasto leque de amizades.

Figura 1. Esquema duas gerações de mulheres amigas de Francine Benoît

Na música, Arminda Correia, Berta Rosa, Maria Elvira Archer, Maria Fernanda Calisto, Maria da Graça Amado da Cunha, Maria Helena Leal, Maria Vitória Quintas, Orquídia e Glicínia Quartin, bem como a mãe destas, Deolinda Lopes Vieira.

Das letras e teatro, a família Rey-Colaço, Berta Agostinho da Silva, Berta Bivar (e as filhas Leonor e Inês Vianna da Motta), Etelvina Lopes de Almeida, Irene Lisboa e sua

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companheira Ilda Moreira, Ilse Losa, Lília da Fonseca, Manuela Porto, Maria Barroso, Maria Helena Holstein (duquesa de Palmela), Maria Letícia Silva, Noémia Cruz, Virgília de Sousa Coutinho (Condessa de Caminha), Virgínia Gersão, Virgínia Vitorino e ainda Maria Palmira Tito de Morais.

Não pretendo afirmar que valores feministas (e que valores feministas?) apenas uniam estas mulheres. Em comum encontramos vários indicadores sociais, nomeadamente, geográficos (falamos da zona centro do país, com especial prevalência de Lisboa), de classe (tudo mulheres de classe média/alta, algumas com ascendência aristocrática, mas sobretudo burguesa, que revelam costumes de uma burguesia culta e endinheirada), políticas (na maioria destes nomes há uma clara associação à esquerda) e por fim, o sexo. Já a idade não parece ser um indicador importante, uma vez que encontramos datas de nascimento algo díspares, mas que ainda assim se podem situar entre duas gerações: uma primeira (na primeira linha) nos anos de transição do século XIX para o XX, e uma segunda (linha inferior), de mulheres nascidas já na 2ª década do século XX.

As sociabilidades resultantes do salão estão também diretamente ligadas à participação destas mulheres na vida política portuguesa. Prova disso é o facto de muitas delas terem estado ativamente envolvidas em movimentos de mulheres, inclusive em lugares de destaque e em movimentos mistos antifascistas.

Tabela 1. Participação de mulheres dos círculos de amizades de Benoît em associações de mulheres

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O Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP), filiado no International Council of Women, congregou bastantes mulheres, entre as quais Francine Benoît e um número significativo de mulheres dos seus círculos. Muitas destas fizeram também parte da Associação Feminina Portuguesa para a Paz, criada em 1936. Ambas tiveram uma participação significativa de mulheres da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde estavam duas amigas muito próximas de Francine Benoît, Virgínia Gersão e Gabriela Monjardino Gomes. Entre 1945 e 1948 a Comissão Feminina do MUD contou com Maria da Graça Amado da Cunha, Maria Keil, Manuela Porto, Maria Palmira Tito de Morais e a própria Benoît. Como vemos, muitas mulheres pertenciam a várias associações em simultâneo.

O Estado Novo foi inicialmente tolerante quanto a estas associações e essencialmente pelo menosprezo das mulheres em geral, e dos grupos de elite que as constituíam, mas também porque o seu aspeto público mais visível manifestava-se em ações pela educação, pela paz, pelo cuidado e assistência. Mas à medida que a repressão do regime ia aumentando, tambem a tolerância diminuía, e manifestava-se não raras vezes na ridicularização destas mulheres e grupos. Sobretudo após 1952 (encerramento da Associação Portuguesa Feminina para a Paz), gera-se um vazio em termos de ativismo feminino não alinhado com o regime, pelo que estas mulheres vão associar-se a iniciativas mistas da oposição. No entanto, nos círculos oposicionistas a prioridade é a luta contra o fascismo, o que acaba por menorizar as lutas feministas. Mas estas associações não são objeto de estudo neste artigo.

Sabemos, dos inúmeros trabalhos de que dispomos (saliento os de Cova, 1997; Gorjão, 2002; Neves, 2001; Pimentel, 2001 e 2011; Tavares, 2000 e 2011),que o regime ditatorial português se dedicou a implementar a noção de família, enquanto núcleo primário corporativo, funcional idealmente com um homem, detentor e regulador do poder, e uma mulher como complemento, parideira, servente e criadora dos frutos do projeto eugénico. Pretendia-se mascarar a diferenciação entre os sexos e a discriminação com uma aparente valorização das “funções femininas”, discurso apropriado, claro, pela OMEN (Obra das Mães pela Educação Nacional), a organização de mulheres estatal, que pretendeu também absorver e manter sob controlo mulheres que tinham pertencido a outras organizações entretanto encerradas pelo regime – e chegou a acontecer que algumas mulheres mais conservadoras de facto se associaram à OMEN. A forma de legitimar e naturalizar esta discriminação foi o essencialismo biológico, aliás, como sempre. Remeter para a função materna, íntima, cuidadora da mulher. A ideologia passou também por e para o panorama legal, com o Código do Processo Civil de 1939, considerado um retrocesso no que toca aos direitos da mulher:

As mulheres deixaram de poder afiançar, exercer comércio, celebrar contratos, administrar bens, viajar para fora do país, sem o consentimento por escrito do marido,(…) foram afastadas de certas profissões, de cargos de chefia administrativa e da magistratura judicial. (Pimentel, 2011: 46)

Neste contexto, identificam-se alguns indicadores comuns que fazem com que estas mulheres, por um lado, sejam lidas e eu as possa tratar como um grupo, por outro, contribuem para produzir diferença em relação a outros grupos sociais contemporâneos a que surgem algumas vezes associadas.

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As principais tecnologias produtoras de diferença que identifico são então:

- Serem mulheres: género, inscritas no binarismo normativo, do lado do não-privilégio. É-lhes imposta uma performatividade de género cis-normativa (para a qual sexo = género), que carrega vários constrangimentos, limitações e exigências.

- Pertencem a elites culturais: são privilegiadas no acesso à cultura e bens culturais, famílias com algumas posses (alta burguesia), habituadas a estilos de vida com alguns luxos – estas elites culturais são compostas essencialmente por pessoas ligadas às artes.

- Feministas: aderem a movimentos, participam em sessões públicas, questionam-se individualmente. Numa sociedade dominada pela hegemonia masculina, pela atribuição da mulher à esfera privada (por oposição ao homem, esfera pública), marcada pela secundarização e apagamento de toda e qualquer atuação mais visível destas, estas duas mulheres contrariam a norma.

- Afetividades lésbicas: quando falo de afetividades lésbicas, não estou a assumir que ambas tenham tido uma orientação sexual estável, ou sequer uma afirmacão identitária. Mas, ao mesmo tempo, revelar medo em fazê-lo denuncia a homofobia internalizada e imiscuída nos discursos correntes. Facto: algumas partilharam a vida com outras mulheres, amaram outras mulheres, viveram relações lésbicas (não exclusivamente, de teor erótico e sexual, mas sobretudo de afinidade, de partilha de intimidade).

Quanto à vivência músical, tendo em conta este enquadramento, as mulheres só seriam naturalmente pedagogas. Marion Scott, musicóloga, fundadora da Society for Women

Musicians, cuja existência se prolongou de 1911 até 1972, num artigo publicado no Daily

Express, lamentava que as obras de compositoras fossem votadas ao silêncio e nunca ninguém tinha ouvido falar de mulheres críticas de música ou musicólogas. Scott afirmava que as mulheres na música só tinham lugar como cantoras, pianistas acompanhadoras ou professoras. O mesmo se verifica nestes grupos do meu estudo: apesar de Francine Benoît e, por exemplo, Maria Vitória Quintas, terem composto, é o seu lado mais gender-conformative que é publicamente visível: a primeira como pedagoga, a segunda como pianista. Maria da Graça Amado da Cunha, tida como alguém de opiniões fortes, politicamente aguerrida (além da sua participação determinante na AFPP, muito ativa no MUD, por exemplo), é conhecida por ter sido uma pianista conceituada.

As mulheres artistas, por serem mulheres, não mereciam o mesmo tipo de reconhecimento que os homens, vistos como capazes, como inspirados, como geniais. Para as mulheres, a arte seria uma divagação do seu espírito sensível, uma brincadeira a que se podiam e deviam dar ao luxo de vez em quando, enquanto prova do seu elevado estatuto social. Há assim toda uma hierarquia imposta que contribuiu para o menosprezo destas mulheres e das suas atividades (mesmo as ‘puramente musicais’) enquanto vivas e que continua a contribuir para o seu apagamento nas narrativas históricas.

Genericamente, deparamo-nos com condições limitadas para que as mulheres se juntassem numa associação formal (por exemplo de mulheres músicas ou de mulheres artistas). Mas por não ter havido um grupo formado, não quer dizer que as opiniões não circulassem. E circulavam nestas formas de sociabilidade alternativas possiveis: o salão, enquanto ponto de encontro mais direto, digamos, e as suas ramificações diretas, entre as quais encontrei na epistolografia uma das mais ricas fontes.

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Legitimação por referência a homens: caso de Irene Lisboa e Francine

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