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Helena Lopes Braga, 1 Central European University, Budapeste

hlopesbraga@gmail.com

Resumo: A música é um produto social, feito por pessoas, para pessoas, sendo ao mesmo tempo estruturante e estruturada pelas várias camadas de dinâmicas de poder que perpassam qualquer tecido social. As particularidades vividas em Portugal durante o Estado Novo refletiram-se por isso na vida musical nacional, respetivos discursos e práticas. Os feminismos, que pulverizavam algumas elites, imiscuíram-se na vida musical, através das redes de sociabilidade de algumas das suas intervenientes. Não obstante, nunca houve em Portugal, ao contrário do que aconteceu noutros países europeus, qualquer tipo de associação mais ou menos formal de mulheres músicas.Na transição para a democracia, o que mudou? Terá havido alguma alteração significativa na forma como o género, enquanto instrumento de gestão social, se tem vindo a articular desde então nos discursos e nas práticas musicais? E hoje, que tipo de dinâmicas de género encontramos disseminados por estes discursos e práticas? Ao analisarmos dinâmicas de género subjacentes às práticas musicais, não podemos subvalorizar todo o contexto social português: as contingências que continuamente obscureceram(/cem) as mulheres, relegando-as individual e coletivamente ao esquecimento, mediante reiterações binárias de género, também se refletem nas narrativas historiográficas posteriores e na forma como a própria academia continua a encarar os estudos sobre as mulheres, os estudos de género, a teoria queer. Nesta comunicação percorreremos alguns momentos do século XX português, recorrendo a três estudos de caso.

Palavras-chave:musicologia, Portugal, Francine Benoît, género, música

1 Doutoranda em Gender Studies na Central European University em Budapeste, sob orientação da Professora Francisca de Haan. É Mestre em musicologia histórica e Licenciada em Ciências Musicais pela FCSH, UNL. Foi vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Investigação em Música (2013-2016) e é colaboradora do Centro de Estudos em Sociologia e Estética da Música (CESEM), FCSH, Nova. Áreas de estudo: musicologia feminista, sociologia da música, história das mulheres. Interesses: mulheres músicas (séc. XX), estudo de redes de sociabilidade, história das mulheres em Portugal (séc. XX), ativismo de mulheres de esquerda, identidade e teoria queer.

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Preâmbulo

As ciências musicais, ou musicologia, surgem enquanto área de saber académico, nas últimas décadas do séc. XIX (c.1885), no âmbito das ciências sociais, destinadas ao estudo da música, nas suas mais variadas formas. A musicologia é geralmente vista como o estudo da história da música, mas é muito mais vasta do que isso: engloba desde a história da música, sociologia da música, estética da música, psicologia da música, estudos em performance, acústica, organologia (estudo dos instrumentos musicais), estudos de música popular, entre muitos outros. Assim, uma musicóloga é alguém que tem a música como seu campo de investigação, independentemente do seu sub-campo ou das suas metodologias.

Eu enquadro-me na interseção entre dois sub-campos da musicologia: a sociologia da música e a musicologia feminista. Num framework pós-estruturalista, começo por assumir a música como um produto social, embebida em ideologias, discursos e estruturas de poder, e assumindo as dinâmicas interatuantes entre música e sociedade. Isto inclui todas as agentes do campo musical: desde consumidoras, estudantes, professoras, músicas, compositoras, disseminadoras, indústria de produção e manufatura de produtos musicais, etc..

A musicologia feminista (também chamada: estudos de género e música, termo por mim preterido pelo caráter politicamente mais polido que acaba por implicar) comecou a surgir nos anos 1970, isto apesar de haver investigações anteriores pontuais que essencialmente consistiam no resgate biográfico de mulheres compositoras e suas obras. Mas foi nos anos 1990 que os principais debates ocorreram (embora continuem a ocorrer com alguma frequência) quando a musicóloga Susan McClary publicou uma coleção de ensaios de várias autoras chamado Feminine Endings (1991) onde são questionados cânones musicais, métodos de análise musical e de forma mais vasta toda a musicologia, apontando claros traços de domínio patriarcal, machismo, misoginia.

A perceção que a música e a musicologia participam ativamente na ordem social e não poderiam continuar a ser estudadas de forma pretensamente apolítica ou neutra criou bases sólidas para a exploração de ideias de como o corpo e a corporalidade, as identidades, a diferença e as relações de poder hierárquicas, são construídas e mantidas atraves da música, de práticas e discursos musicais. O facto de isto ter sido invisível (e ainda ser em grande medida), apenas prova que o poder simbólico da música está bem solidificado e instalado. É assim fácil de ver porque é que uma crítica feminista da música e da musicologia é absolutamente vital. Nos últimos anos, surgiram também estudos interessantes que exploram casos em que as práticas musicais criticam ou questionam ou mesmo lutam ativamente contra normas de género, de sexualidade, exploram performatividades e incitam ao ativismo (ex. estudos sobre Annie Lennox, Lady Gaga, KDLang) (Rodger, 2004; Davidson, 2001; Williams, s.d; Corona, 2013; Elliott, 2005; Hammond, 1997).

Este artigo está dividido em três partes.

(1) Na primeira debruço-me sobre a minha principal investigação em curso: Francine Benoît e a sua rede de amizades. Trata-se de um levantamento intensivo de mulheres envolvidas na vida cultural portuguesa, com particular enfoque na musical, sobretudo entre as décadas de 1920-1960, em que pretendo problematizar alguns aspetos como: as causas da

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invisibilização destas mulheres nas narrativas históricas, as suas formas de sociabilização, o seu envolvimento em movimentos políticos (feministas e de oposição ao regime), a lenta e progressiva recuperação de algumas destas mulheres (quais e porquê?) em alguns circuitos académicos específicos.

(2) Na segunda parte apresento um estudo de caso em que procedi a um levantamento e análise da representação de mulheres na escrita sobre música em periódicos generalistas da década de 1980. Neste levantamento procurei perceber se seria possível concluir que, uma vez passada a revolução, bastião da liberdade, de remodelações sociais e mudanças de costumes, a representação das mulheres na esfera pública da vida musical portuguesa (sobretudo lisboeta) tinha sofrido alterações significativas. Quando parti para este estudo a minha expectativa era que nem por isso, uma vez que ainda hoje se verifica desigualdade nesta representação. Mas, mais do que isso, permiti-me também analisar as representações de género presentes nesses mesmos artigos reunidos: o que se narra nas notícias sobre a vida musical portuguesa? Que tipo de discursos são veiculados nestes artigos?

(3) Por fim, na terceira parte, alguns apontamentos breves sobre os últimos anos, que espero possam estimular a discussão que se seguirá.

Parte I

Um dos propósitos da minha investigação é recuperar da invisibilidade algumas figuras para as narrativas musicológicas e até generalistas, com o cuidado de evitar alguns perigos de cair ora em conteúdos meramente descritivos, ora em generalizações abrangentes que façam perder as especificidades das figuras em estudo (e das que não incluo no estudo), ora em cristalizações mais ou menos míticas, de figuras que valem pela sua obra, mantendo assim a separação da existência e experiência humanas em binários opostos – obra/vida, público/privado, bom/mau, muito/pouco, importante/inútil e homem/mulher

Estes e todos os binarismos são mutuamente dependentes, mutuamente estruturantes. Ao reiterarmos um, estamos a reforçar outros. Quanto a mim, a problematização de um levará idealmente à problematização de vários. Utopicamente, de todos.

Partilho de uma visão das “ciências” de abertura, de experimentação, de desafio. Tento recusar, e fá-lo-ei também nesta comunicação, preciosismos concetuais, citações constantes, obsessão formal. A recusa da objetividade, pelo reconhecimento do seu inevitável falhanço, da sua impossibilidade real. Todo o conhecimento é situado, parcial, político. E talvez a forma mais extrema de o ser seja negá-lo e defender acerrimamente o seu caráter apolítico e objetivo.

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Mulheres artistas no Estado Novo. Francine Benoît (1894-1990) e as suas

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