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REDES E ROTAS TRANSOCEÂNICAS DE COMÉRCIO

2.1 ALGUMAS CONEXÕES POSSÍVEIS

Conforme referência anterior, pretende-se, neste capítulo, identificar a dinâmica de funcionamento das rotas comerciais entre Bahia, África e Estado da Índia. Partindo da já mencionada relação de Caldas, dos “alvarás”, requerimentos e do TSTD175, é possível identificar e demonstrar que as “rotas” de comércio “frequentadas” por alguns desses comerciantes nem sempre eram definidas pelo sistema de “frotas”, que vigorou por muito tempo, nem através das “licenças de comércio” conferidas a esses negociantes. Muito menos pelas “concessões ou arrendamentos dos contratos” feitos pela Coroa, junto ao Conselho Ultramarino, a seus “concessionários” estabelecidos nas diversas regiões do Império Ultramarino. Além do contrabando, difícil de ser rastreado e combatido, solicitações de permissões poderiam ser feitas através dos “alvarás de navegação” concedidos, excepcionalmente, pelo Rei, com aquiescência do Conselho Ultramarino, ou pelo Governador Geral aos comerciantes, que tinham suas viagens autorizadas, sobretudo, para as regiões da Costa Africana e para o Estado da Índia.

Na relação elaborada por Caldas, constam também “autodeclarações” feitas por vários comerciantes que identificavam as principais rotas de comércio, portos de saída e chegada de suas embarcações. Diversos territórios do ultramar eram “frequentados” por esses “homens de negócio” que se distribuíam pelo Reino (Lisboa e Porto), Índia (Gôa e Calicute), Costa Africana (Ilhas Atlânticas, Costa da Mina, Angola, Moçambique) e na “Colônia” [Nova de Sacramento]176. Os locais que “frequentavam” apareciam, nesta relação, como um tipo de classificação prévia da importância, que estes negociantes desempenhavam na praça de Salvador, questão que será abordada posteriormente neste estudo.

Dentre as rotas comerciais mais “frequentadas” e declaradas apareciam o “Reino”, “Costa da Mina” e “Angola”. Havia os que seguiam por dois, três ou mais destinos como “o Porto e Lisboa”, “Costa da Mina e Índia”, “Costa da Mina e para o Reino”, “Costa da Mina e Lisboa”, “Reino e Angola”, “Angola e Costa da Mina”, “Reino, Costa da Mina e Angola”, “Reino, Costa da Mina e Minas [das Gerais ou de Goiases]” e “Colônia, Angola [ou] Costa da Mina e mais partes”. Também foram identificados os comerciantes que estavam em “várias

175 O The Transatlantic Slave Trade Database, Disponível em:

<http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces>, (TSTD doravante) é um banco de dados on line e com acesso livre, coordenado por David Eltis, agrupa aproximadamente 35 mil viagens realizadas por navios negreiros entre a África e as Américas.

176 Trata-se da Colônia Nova de Sacramento, pois apesar do termo não vir acompanhado do nome “colônia” no

corpo do texto de Caldas, os documentos consultados que fazem essa referência deixam bem claro que se trata da região mencionada.

partes” e em “varias coisas” ou em sociedade e, até mesmo, os que já estavam aposentados. O estabelecimento destas sociedades por parte desses negociantes (muitas vezes temporárias) viabilizava inserir e ampliar itinerários de viagem, tocando muitas vezes dois ou mais portos. Muitos requerimentos demandados por negociantes distintos favoreciam ao grupo de comerciantes ao qual pertenciam seus “sócios” que se reuniam para aquela viagem específica e, desse modo, podiam receber diferentes autorizações para navegar por diversos portos.

Como exemplo de viagens com roteiros diversificados, pode-se destacar a atuação de João Dias da Cunha. Pela informação contida na relação de Caldas, Dias da Cunha possuía Casa Comercial em Salvador e “declarava freqüentar” o “Reino e geralmente”. Entre os anos de 1737 a 1760, cinco navios de sua propriedade – Galera N.S. da Arrábida e Sta. Rita, Galera N.S. da Piedade, Corveta Jesus Maria José, São Francisco Xavier e Almas, Escuna N.S. da Graça, S. João Batista e Almas e o Bergantim Jesus Maria José – estiveram onze vezes na Costa da África. Dessas entradas registradas na Alfândega da Bahia, durante este período, oito vieram da região do Golfo do Benin (Costa da Mina e Epê177 1737, 1742, 1744, 1748, 1751, 1755)178; duas vieram da África central atlântica (Benguela 1750, 1753)179 e uma da África Oriental (Moçambique 1760)180. Esses dados demonstram que sua atuação no comércio de mercadorias era amplo e incluía, além do “Reino”, importantes portos da costa africana, declarados por ele como “geralmente”. Além disso, mantinha relações comerciais com diversos outros negociantes e capitães de navios. O primeiro registro de viagem à Costa da Mina, em 1737, divide a propriedade do navio com seu piloto, Jerônimo da Silva Coelho. Em todas as demais, figura como único proprietário das embarcações, o que pode sugerir que seus negócios tenham prosperado.

É provável, também, que tenha conquistado grande proeminência com as atividades mercantis em que esteve envolvido por meio da sua “Casa Comercial”, já que após obter “licença” do Rei para seguir viagem para Moçambique e de lá poder “despachar escravos da sua carregação, e de partes”, foi atendido no requerimento encaminhado a Sua Majestade, para “reaver [o valor] da fiança dada [por Cunha] pelos escravos vindos de Moçambique, a

177 Porto situado no litoral da Costa da Mina que no final do século XVIII pertencia ao reino de Ijebu, atual

Nigéria. Em seu artigo sobre escarificações de escravos Paul Lovejoy menciona um escravo vindo dessas proximidades: “Osefikunde had been born in c. 1798, perhaps several years earlier, in Makun, near Epe, in the kingdom of Ijebu. Ver LOVEJOY, Paul E. “Scarification and the Loss of History in the African Diaspora”. “Scarification and the Loss of History in the African Diaspora,” in Andrew Apter and Lauren Derry, eds., Activating the Past Historical Memory in the Black Atlantic (Newcastle: Cambridge Scholarly Publishing, 2009).

178 TSTD, Op.cit., viagens #51964, #50649, #50629,#50679, #50665, #50698, #50732, #50757. 179 TSTD, Op.cit., viagens #52026, #49613.

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fim de ter “restitu[ído] os direitos do donativo pagos por tal carregamento”181

. Apesar de não ter sido atendido de imediato e por isso não tenha se aproveitado, pessoalmente, desse benefício – o requerimento só teve uma resposta positiva junto ao Conselho Ultramarino, após longos sete anos, e D. Maria da Encarnação, viúva do comerciante, conseguiu a devolução do que foi cobrado indevidamente do seu marido. Convém ressaltar que as relações comerciais entre os comerciantes estabelecidos, tanto na praça da Bahia como na praça de Moçambique, continuaram no século XVIII.

Continuando a investigação no sentido de comprovar algumas dessas rotas diversificadas, é importante destacar as fontes cartoriais (escrituras e procurações encontradas nos livros de notas) que evidenciam as redes comerciais atendidas por estes comerciantes. As escrituras podem indicar as relações sociais tecidas e as procurações ajudam na identificação dos vários representantes comerciais, estabelecidos em partes distintas, que cobriam tanto o trecho de longa distância quanto o trecho marítimo costeiro e o terrestre, passando pelas diversas vilas nos caminhos do interior da Colônia. Estas fontes apontam para a existência de articulação entre as rotas atlânticas e o tráfico inter-regional de escravos, ouro e outros gêneros coloniais. 182 Os representantes comerciais (procuradores) estavam espalhados pelos mais variados locais. Estavam presentes tanto nas rotas de longa distância (Lisboa, Porto, Grã-Bretanha, Ilha da Madeira, Ilha de São Tomé e Príncipe, Moçambique, Colônia de Sacramento, Montevidéu, Angola, Benguela, Costa da Mina, Goa, Calicute), como nas rotas marítimas intercoloniais (Sergipe D‟El Rei, Alagoas, Pernambuco, Maranhão, Paraíba, Rio de Janeiro, São Pedro do Rio Grande do Sul), alcançando também as regiões do sertão (Jacobina, Rio de Contas, Serro do Frio, Vila Boa, Cuiabá, entre outras).

Convém registrar mais um exemplo, selecionado dentre outros que farão parte desta pesquisa, para entender como as viagens podiam ter seus itinerários diversificados. Manoel do O‟ Freire183

, mais um dos “homens de negócio”, relacionados por Caldas, declarava ir para “o Reino e Angola”. Foi classificado pelo autor da relação, como um dos homens de negócio de “maior inteligência nos preceitos mercantis, e capacidade para freqüentar o comércio”. Desde

181 ANRJ, Alfândega da Bahia, Códice: 141, Lv. 11 (1754-1828), s/fl, 29/12/1760.

182 Essa conexão entre as rotas foi indicada por Mariza Soares ao tratar especificamente da rotas que levavam

escravos vindos da Costa da Mina para Minas Gerais, argumentando ser este trecho um segmento da rota atlântica que por sua vez além da travessia oceânica deve incluir também o trecho terrestre desde o inicio do deslocamento dos escravos até os portos do litoral africano. Ver Mariza de Carvalho Soares, “Indícios para o traçado das rotas terrestres de escravos na Baía do Benim, século XVIII”. In Mariza de Carvalho Soares (organizadora) Rotas Atlânticas da Diápora Africana: entre a Baía do Benim e o Rio de Janeiro. Niterói. EdUFF. 2007. pp. 65-99

183 Para maiores informações sobre ele vide ALVES, M. “O Comercio marítimo e alguns armadores do século

XVIII, na Bahia”., In Revista de História, vol. XXI, nº. 81, São Paulo: FAPESP, 1970, p.181-3.; BARROS, Francisco B., Op. Cit. 83; RIBEIRO, A. V., Op. Cit. p. 392-3.

1757, O‟ Freire já “frequentava” as rotas atlânticas do comércio de escravos. Nesta ocasião, atuou como “fiador” do Capitão Bento Fernandes Galiza, outro nome que figurava no rol de pessoas citadas por Caldas, que dizia “freqüenta[r] o comércio, e maneja[r] o seu negócio” e nele declarava comercializar “para a Costa da Mina”. Em setembro deste mesmo ano, o Capitão Bento Galiza e Cia., senhorio da embarcação, requer, através de uma petição junto ao Provedor Mor da Alfândega, autorização para carregar uma “corveta por invocação N. Sra. do Cabo, e o Sr. do Bonfim, de que [era] Capitão Damasio Martins de Carvalho [a sair do porto de Salvador, em direção] ao presídio de Benguela, no Reino de Angola, a resgatar escravos [e de lá retornar] em direitura a mesma Cidade da Bahia, ou a do Rio de Janeiro”184. Ao que tudo indica, esta petição sucedia uma primeira encaminhada pelo comerciante, em meados de agosto deste mesmo ano, retificando o nome da embarcação. Com isso, o navio Santo Antonio e Almas que havia sido autorizado a seguir viagem para o Presídio de Benguela, em março de 1754, não o fez, pois se “achava incapaz de seguir viagem”, sendo substituído três anos mais tarde, pela corveta N.S. do Cabo, e o Sr. do Bonfim. À petição, seguia anexada a provisão régia concedida por D. José I, assim como o termo de ajuste. A este último, seguia a “obrigação” passada por Bento Galiza e abonada pelo seu avalizador, Manuel do O‟ Freire, garantindo o pagamento de 10$200rs (dez mil e duzentos réis) a cada um dos escravos transportados, pagos ao administrador do contrato dos direitos da saída dos escravos do Reino de Angola na Bahia, Manuel Dantas Barbosa.

Cruzando as informações da provisão régia com dados do TSTD, há registro de uma viagem, cujo piloto era o Cap. Damasio Martins de Carvalho e o proprietário o mesmo Bento Fernandes Galiza. A embarcação, N.S. da Penha da França e Sr. do Bonfim, tinha registrado como data de saída da Bahia – 27/08/1757 – contudo, sua chegada ao Reino de Angola ocorreu pelo porto de Luanda, e não ao presídio de Benguela, conforme constava no “alvará de licença”. Este registro sugere que, de alguma maneira, a provisão dada por D. José I, em março de 1754, não foi utilizada, imediatamente, para a viagem até o presídio de Benguela, pois o navio Santo Antonio e Almas seguiu para a Costa da Mina, local onde o comerciante não necessitava de autorização prévia, pois já lhe era permitido navegar. Três anos mais tarde, o Cap. Galiza, já de posse da mesma provisão régia, solicita junto ao Provedor Mor da Alfândega a substituição da embarcação, alegando incapacidade da mesma de navegar e tendo seu pedindo deferido, seguiu viagem a bordo da coverta N. Sra. do Cabo, e o Sr. do Bonfim para o presídio de Benguela. Note-se que mesmo indiretamente Manoel do O‟ Freire pertencia

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a um grupo mercantil que estava vinculado de alguma maneira ao Capitão Bento Fernandes Galiza, ao capitão do navio Damasio Martins de Carvalho e ao administrador do contrato dos escravos de Angola, Manuel Dantas Barbosa. É provável que o uso desses expedientes possibilitassem aos comerciantes participarem de “rotas” diversificadas de comércio de escravos, além daquelas declaradas por eles (neste caso o “Reino e Angola”).

Para confirmar estas observações, uma procuração registrada, em outubro de 1757, no livro de nota do tabelião João da Costa Ferreira185, tem papel muito importante. Na procuração referida, Manuel do O‟ Freire nomeava vários representantes comerciais, em diversos locais, provavelmente, onde mantinha algum tipo de negócio. Assim, dois meses após o embarque do Capitão Damásio para Luanda, a bordo da citada coverta de propriedade de Bento Galiza – NS da Penha da França, e Sr. do Bonfim – O‟ Freire nomeou o referido capitão e Manuel Luis Leite186, capitão da sumaca Santíssima Trindade e São Pedro, que havia partido em viagem da Bahia para o porto de Luanda, em 1757, retornando pelo do Rio de Janeiro em 05/12/1758, como seus procuradores para representá-lo nas carregações durante estas viagens. Além desses, outros procuradores também foram nomeados. Na cidade da Bahia, Manuel José de Carvalho, Antonio Álvares dos Reis, Felix Manoel Dias e Francisco Xavier da Costa; em Angola, o Sgto. Mor Manoel de Castro, e em caso de sua ausência, o capitão Custódio Simões da Silva e Francisco Antonio Ribeiro; em Benguela, o Sgto. Mor José da Silva Vieira, Francisco Gonçalves da Silva e o Cel. Antonio Paiva Farias. Nas capitanias do Rio de Janeiro, o cap. Rodrigues Nunes, Francisco Ferreira Guimarães e Cia. e Manoel Rodrigues Ferreira; na de Pernambuco, o Cel. José Vaz de Salgado, Antonio Pinto, Manoel Gomes e Luis Ferreira de Moura; e na do Espírito Santo, João Antonio de Morais e Bento Ribeiro. Esta nomeação de representantes demonstra a diversidade de negócios que O‟Freire mantinha em diferentes praças comerciais.

Seguindo as pistas deixadas por Manuel do O‟ Freire, encontra-se, nos documentos, que o mesmo era “cabeça” de seus negócios e proprietário de dois navios, registrados efetivamente em seu nome – N.S. dos Prazeres e S. Pedro Gonçalves e N.S do Pilar S. Antonio e Almas. Estas embarcações realizaram quatro viagens para a Costa da África entre 1764 e 1777. Nas três primeiras, tocaram os portos de Epê e Porto Novo na Costa da Mina, e na última, seguiram até Luanda. Na viagem realizada em 1772 para a Costa da Mina, dividia a

185 APB, Seção Judiciária, Livro de Notas, nº 101, 1757, fls.14 e 15. 186

O nome desse Capitão está registrado no TSTD, como Manuel Luis Leitão, que acredito ser o mesmo, por ter havido um pequeno engano no momento de alimentar o banco de dados, Op. Cit., #8872 (1758).

propriedade da corveta N.S. dos Prazeres e S. Pedro Gonçalves com outro homem de negócio dessa praça não tão proeminente, João Machado de Miranda187.

Quanto à corveta N.S do Pilar S. Antonio e Almas há registros de que seguiu para Porto Novo, passando pela Ilha de São Tomé, em 22/03/1764. Ao que tudo indica iniciou seus negócios em Porto Novo a 02/10/1764, mas só partiu da costa africana em 25/07/1765, mais de um ano, após a provável data de sua saída, retornando ao porto de Salvador em outubro de 1765. A viagem durou algo em torno de 500 dias. Este fato sugere, mais uma vez, que as autorizações dadas para a realização das viagens (alvarás de licença) indicavam os portos de saída e chegada, no entanto os reais trajetos percorridos por esses navios, capitães, gêneros e escravos só eram conhecidos de fato após o término das viagens.

Mais uma vez é importante observar que, nestas viagens, além dos portos de comércio não serem aqueles declarados pelo negociante ─ pois abarcavam, também, a região do Golfo do Benim ─ chama a atenção o tempo gasto para ir e voltar, que ultrapassava e muito a quantidade de dias habitual para este tipo de travessia188.

A seguir, será abordado o funcionamento e dinâmica do comércio nas rotas ultramarinas e a participação dos diversos comerciantes estabelecidos na praça da Bahia envolvidos nas redes mercantis espalhadas pelas regiões de domínio português.

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TSTD, Op. Cit., viagens, #50867, #50883, #50973 e #40308, Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces, Acesso em 22/07/2011.

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A viagem para a região da Costa da Mina, segundo Frédéric Mauro é sempre a mesma: utilizando ventos alísios do Ne. E as correntes marítimas N. Equatorial, depois contra-corrente do Equador, o alísio do Sudeste, navegando contra ele, e a monção de Sudeste”, durava em torno de 60 dias. MAURO, f., Op. Cit., 39-55. O navio de Bento Fernandes Galiza para Luanda durou ao todo mais de 750 dias do porto de saída até o seu retorno e desembarque dos escravos.