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1.2 “NÓS VISTOS POR ELE(A)S”

1.4 MERCADOS E MERCADORIAS

1.4.2 O Crédito Mercantil

A carência de dinheiro vivo circulante na economia colonial era um problema evidente que atingia não só a capitania da Bahia, como toda a América Portuguesa e, até mesmo, a metrópole. A insuficiente produção de metais preciosos para suprir o “déficit comercial de Portugal com a Europa e com o Oriente” só agravou o problema103

. Mesmo com o aumento da produção aurífera e da expansão dos negócios coloniais, no século XVIII, os meios de pagamento não cresceram no nível esperado104. Com a carência da moeda metálica o recurso do crédito generalizou-se nos diversos grupos sociais. A reduzida circulação monetária, na economia colonial baiana, fez do crédito um importante meio de pagamento e entesouramento, ao lado do escambo (troca de mercadoria por mercadoria) transformados em práticas comuns nos negócios coloniais105.

Maria José Rapassi Mascarenhas identificou essa carência de dinheiro amoedado nos inventários da Salvador colonial. A partir da análise de mais de 320 inventários baianos, entre 1760 e 1808, a historiadora encontrou, predominantemente, referências a pagamentos em produtos e “espécie como açúcar, tabaco e outros gêneros agrícolas, tecidos, escravos e até mesmo imóveis”. O “dinheiro de contado” apareceu em pequena proporção, sobretudo, quando associado aos senhores de engenho que se constituíam, àquela época, nas maiores fortunas. Os valores mais altos desse bem, presentes nesses inventários, sempre aparecem vinculados aos comerciantes. Para Rapassi, isto demonstra a pouca existência de liquidez na praça de Salvador, e sua concentração nas mãos dos comerciantes106.

103

Num interessante texto apresentado no V Congresso Brasileiro de História econômica, o historiador Antonio Carlos Jucá faz referencia aos diversos tipos de moedas – metálicas ou não – que circularam na América portuguesa e de como suas características definiam o seu processo de circulação. Segundo o autor, para compensar a falta crônica de numerário, que só seria solucionado com a descoberta das áreas de mineração no interior da colônia, elegeu-se um meio de pagamento alternativo ao que ele chamou de “moedas substitutas”. Estas “moedas” correspondiam a produtos de grande circulação, como o açúcar, os tecidos de algodão, a farinha de mandioca e a cachaça, que adquiriam importância conforme a sua utilização. SAMPAIO, Antonio C. Jucá de., “Crédito e circulação monetária na Colônia: o caso fluminense, 1650-1750”, in Anais do V Congresso Brasileiro de História Econômica e 6ª Conferência Internacional de História de Empresas. ABPHE, 2003.

104 SERRÃO, Joel, e MARQUES, A.H. Oliveira (Direç), Nova Historia da Expansão portuguesa. O Império

Luso-Brasileiro (1750-1822), Vol.VIII, Lisboa: Ed. Estampa, 1ª ed., 1986, p.190.

105 MASCARENHAS, Mª José Rapassi, “Dinheiro de contado e credito na Bahia do século XVIII”, disponível

em: « http://www.uesb.br/anpuhba/artigos/anpuh_I/cleide_lima_chaves.pdf ». Para um estudo mais aprofundado das implicações dessas práticas no processo de acumulação de riquezas na economia e sociedades baianas do século XVIII (1760-1808) ver MASCARENHAS, Mª José Rapassi, Fortunas coloniais: Elite e Riqueza em Salvador (1760-1808), Tese de Doutorado, São Paulo: PPGH/USP, 1998.

106 MASCARENHAS, Mª José Rapassi, Fortunas coloniais: Elite e Riqueza em Salvador (1760-1808), Tese de

Doutorado, São Paulo: PPGH/USP, 1998, p.185. Trabalhos recentes apontam que o problema da circulação monetária podia ser percebido em toda a América portuguesa, ver ALMEIDA, Carla Maria de Carvalho, Homens Ricos, Homens bons: produção e hierarquização social em Minas colonial, 1750-1822, Tese de doutorado, Niterói: PPGH-UFF, 2001; GODOY, Silvana, Itu e Araritaguara na rota das monções (1718 a 1838),

Durante o século XVIII as dificuldades financeiras se agravaram e nas ultimas décadas do setecentos, na colônia se verificava, inclusive, a escassez de moeda divisionária107. Ao que parece o problema de falta de numerário permaneceu por mais algum tempo. Bem no inicio do século XIX, Lindley também observava que em Salvador, “o escambo é o modo de realizar-se o comércio. [...] Uns concedem crédito aos outros, em larga medida”. Antes mesmo de ser levado ao porto baiano, ainda durante sua permanência em Porto Seguro, ele verificava a prática do escambo como sendo a mais usual entre os comerciantes baianos:

“A propriedade das lanchas e de sua carga é reservada a algumas pessoas,

relativamente ricas, que recebem o pagamento do seu peixe em dinheiro,

artigos de alimentação e vestuário, que revendem àqueles seus dependentes que podem comprá-los (em geral não tem meios para isso)”108.

Como já foi dito anteriormente, diante da falta de dinheiro líquido, a necessidade de recurso de crédito tornou-se essencial para a subsistência dos negócios coloniais. Recorria-se ao crédito para quase tudo, desde o investimento e aplicação na produção e na mercancia, à circulação de mercadorias e capital entre as diversas praças mercantis, da expansão dos negócios e obtenção de lucros à simples compra de propriedades ou de um objeto de uso pessoal.

As observações de Lindley, no despertar do século XIX, vão ao encontro das considerações de Flory e Rapassi. Emprestava-se ou concedia-se crédito em todos os níveis socioeconômicos. Até o primeiro quartel do setecentos, a principal fonte de empréstimo eram as instituições religiosas (dentre elas a irmandade da Santa Casa de Misericórdia ocupava lugar de destaque). Os homens de negócio (sobretudo aqueles que se dedicavam ao comércio marítimo de exportação) aparecem com a segunda colocação e os senhores de engenho assumiam a quarta principal fonte de empréstimo nesta época. A partir da segunda metade do setecentos, o quadro sofreu uma pequena variação e os negociantes assumem o primeiro lugar enquanto fonte credora fundamental de crédito e, a segunda posição, passa a ser ocupada pelos senhores de engenho que não exerciam nenhum ramo de comércio. Categorias sociais como criadores de gado, lavradores de fumo e cana, proprietários de curtumes, armação de Dissertação de Mestrado, Campinas: PPGH-UNICAMP, 2002; HAMAISTER, Martha D., O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes, c.1727 – c.1763, Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: PPGH-UFRJ, 2002.

107 SERRÃO, Joel, ... , Op. Cit., p.190.

108 Segundo sua avaliação tendenciosa, o viajante inglês atribuía esta opção pelo crédito, “não obstante a

abundancia de moeda em circulação”, a “astúcia mesquinha e velhaca” dos negociantes portugueses e baianos. Segundo ele “salvo algumas exceções, são as pessoas inteiramente destituídas de honra, [...] e retidão”. LINDLEY, T., Op. Cit , pp. 172 e 150.

pesca, fábrica de velas, profissionais da cidade (construção civil, carpinteiros, artesãos, barbeiros, tanoeiros, etc.) também compõem o quadro de credores da Capitania109.

Por outro lado, as pesquisas evidenciaram que para o mesmo período, geralmente, os principais credores – os negociantes – quando relacionados aos maiores tomadores de empréstimo – os senhores de engenho – figuravam, também, como grandes devedores. Ou seja, o número dos senhores de engenho que buscava crédito estava bem próximo ao de negociantes, apesar das dívidas desses alcançarem menores somas. Situação diferente da que foi encontrada por Flory nas duas ultimas décadas do seiscentos e no primeiro quartel do século XVIII. O trabalho de Flory mostrou que o número de senhores de engenho que demandava crédito era bem maior do que o de comerciantes.

Outro aspecto importante observado por Rapassi era que o recurso ao crédito estava presente em todas as faixas de fortunas. A prática comum de recorrer ao crédito fez o mesmo circular entre os diversos níveis socioeconômicos da população como se fosse uma moeda invisível. Para a historiadora não há duvida de que o crédito compunha uma parcela considerável da riqueza e da acumulação na economia e sociedade colonial a partir da década de 1760 até o início do século XIX. Assim, o crédito tornou-se o principal componente do patrimônio e controle, por parte dos comerciantes, levando-os a obter ganhos importantes nas decisões sobre o crédito mercantil.

O crédito, portanto, passou a constituir-se como elemento fundamental da atividade comercial. “No comércio português dos séculos XVII e XVIII, as letras de risco e as carregações são modos de comerciar muito freqüentes, sobretudo se o comércio é por via marítima”110

. Anna Amélia Nascimento ainda apresenta outro “modo de comerciar”, usualmente presente nas praças comerciais coloniais, o empréstimo de dinheiro a juros. Nas trocas comerciais, esses empréstimos tinham suas taxas acordadas dependendo dos riscos enfrentados, como os perigos do mar, no caso do comércio marítimo. As descrições feitas pela

109 Para um conhecimento mais aprofundado dos sistemas creditícios e sua importância na economia da colônia

ver: FLORY, Rae Jean Dell. Bahia society in the mid-colonial períod: the sugar planters, tabacco groers, merchants, and artisant of Salvador ando the Recôncavo, 1680-1725, Tese de Doutorado, Austin, University of Texas, 1978; FRAGOSO, João Luis R., Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercntil do Rio de Janeiro (1790-1830), RJ: Arquivo Nacional, 1992; ___& FLORENTINO, Manolo G., O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c.1790 – c.1840, 4ª edição revista e ampliada, RJ: Civilização Brasileira, 2001; OSORIO, Helen., O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes, Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2007; SAMPAIO, Antonio C. Jucá., Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650- c.1750), RJ: Arquivo Nacional, 2003, especialmente o capítulo IV.

110 NASCIMENTO, Anna Amélia V., “Letras de risco” e “carregações” no comércio colonial da Bahia: 1660-

historiadora podem dar uma pequena amostra de como se estabeleceram os complexos mecanismos de circulação mercantil no comércio marítimo português no período colonial.

Este comércio, apoiado pelas relações entre seus agentes posicionados nos seus respectivos mercados, atuava mediante trocas de fazendas e efeitos que sustentavam a circulação das mercadorias. As letras de câmbio funcionavam como instrumento privilegiado de crédito. Podiam ser pagas em diferentes termos, dependendo do acordado previamente entre as partes. “Atestavam a aquisição de fazendas, declaravam o compromisso do respectivo pagamento e tinham a vantagem de ser endossadas ou descontadas”111

. A modalidade mais usual no comércio de longa distância era denominada letra de risco.

Neste caso, “os negociantes operavam ora como capitalistas, se tinham fundos disponíveis e estavam dispostos a correr algum risco, ora como devedores, quando procuravam cabedais para armar os seus navios ou completar a carga das suas negociações” eram “documentos enviados do porto de destino da viagem comercial, ou porto de descarga”112

. Vejamos como funcionavam as letras de risco na prática.

O interessado (negociante menor, mestres de embarcações, etc.) precisava de capital (financiamento) “para a realização de sua viagem” ou comprar “suas mercadorias para levá- las através dos mares, para serem vendidas com lucro”.

“[...] O financiamento retornava a Bahia através das letras de risco, com o principal acrescido de juros previamente acertados entre o financiador e o comerciante. Tinha o nome de „letra de risco‟ porque tanto a mercadoria como a letra sofriam riscos ou perigos do „mar, fogo, corsários, inimigos e falsos amigos‟, os quais deveriam correr tanto por conta do financiador, como do negociante. Se não fosse possível o resgate da letra de risco, por qualquer motivo fortuito, ela era novamente transformada em mercadoria, transportada à Bahia, onde era vendida a dinheiro de contado e pagos desta maneira o financiamento [o principal] e o juros. Para a realização do comércio através das letras de risco, era necessário que houvesse um entendimento prévio, entre financiador na Bahia e aquele que no porto de descarga do navio [procurador], transformaria o dinheiro da venda da mercadoria em letra de risco a ser devolvida à Bahia. Assim o mercadores e financistas deste porto mantinham procuradores em outros portos onde faziam negócios”113.

111 PEDREIRA, Jorge M. Viana., Os Homens de negócios da praça de Lisboa: de Pombal ao vintismo (1755-

1822) – Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social, Dissertação de doutoramento em sociologia, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa-FCSH, 1995, p.351.

112 NASCIMENTO, Anna Amélia V., Op. Cit., p.11.

113 Para a Colônia, entre 1660 e 1730, Anna Amélia Nascimento informa que as taxas normais eram de 6,25%,

podendo chegar a mais, a depender do risco que a viagem representasse. NASCIMENTO, Anna Amélia V., Op. Cit., p.11. Para Portugal, a partir de 1755, Jorge Pedreira informa que a taxa de juros (premio), foi limitada a 5% nas rotas do Brasil e era superior a 30% nas expedições para o Oriente. Esse premio era pago depois que o navio chegasse a salvo ao seu porto de destino decorrido, em geral trinta dias. Ainda, segundo o historiador português, para o mercado luso-brasileiro se cobrava „juros de mora sobre capital e premio‟, ou seja, juros sobre juros. Prática proíbida nas praças mercantis portuguesas. PEDREIRA, Jorge M. Viana., Op. Cit., p.352.

As carregações funcionavam como uma outra modalidade de crédito mercantil. Utilizadas para serem usadas na circulação de mercadorias de um porto a outro,

“descreviam a mercadoria a ser enviada [...] e a ser trocada no porto de descarga [...]. Se não houvesse no porto de descarga as mercadorias exigidas pelas carregações para a troca, poderiam estas, em ultima analise, ser transformadas em letras de risco, para serem entregues no porto onde fora originado o financiamento”114.

Para entender um pouco melhor, a principal diferença entre carregações e letras de risco está na cobrança de prêmio (juros). Enquanto as letras de risco definiam prêmios (juros) previamente acordados entre as partes, as carregações não determinavam taxas de juros, mas registravam o comércio de trocas da colônia, descrevendo as mercadorias enviadas aos portos portugueses, africanos e do oriente e a “outros pontos de comércio, tanto por via marítima como por via terrestre”115

. Note-se que ambas as formas de crédito pressupõem uma segurança inicial e uma associação de interesses comerciais entre os diversos indivíduos. O financista, o carregador e o comerciante encontravam-se em portos distantes, mas se ligavam uns aos outros em vários pontos de um circuito, através de redes comerciais. Do interesse de sucesso dessas associações, revezamentos, cooperações e ligações que se multiplicam é que vive o comércio116.