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DAS ROTAS DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO PARA OS LIVROS DE BANGUÊ

4.2 O BANGUÊ COMO FONTE DE PESQUISA

Um dos primeiros trabalhos que usou os livros de banguê como fonte de pesquisa foi o estudo realizado pelo antropólogo Carlos Ott sobre “a história étnica e cultural da cidade”. Existiam à época da sua pesquisa vinte livros de banguê que abarcavam os anos de 1741 até o de 1858. Nesse trabalho, o autor teve como objetivo estudar a formação étnica da cidade, fazendo referência obrigatória ao índio, africano e o português, não só nos aspectos concernentes à sua origem étnica como também as suas contribuições culturais415. Para o século XVIII, o autor resolveu comparar os dados obtidos por uma pesquisa quantitativa por ele realizada nos inventários post-mortem dos senhores de escravos, residentes em Salvador entre 1702 e 1799, encontrados no Arquivo do Estado da Bahia, com aqueles obtidos nos livros de banguê. Ott concluiu, ao analisar os inventários, que durante o século XVIII, havia “uma acentuada inferioridade numérica” dos africanos “bantus” (centro-ocidentais) em detrimento aos “sudanenes” (da região ocidental). Entretanto, a partir do resultado obtido pela análise dos livros de banguê, consultados ,na Misericórdia, no período de 1741 a 1799, o quantitativo se inverte. Ou seja, o número de centro-ocidentais verificado é superior ao de escravos africanos ocidentais.

Embora estudos anteriores, cujas bases antropológicas se destacam, tenham chegado a um resultado contrário ao encontrado pelo autor nos livros de banguê e, considerando a necessidade de se reinterpretar suas conclusões, a importância desse trabalho é inquestionável. Além da possibilidade de se trabalhar com a mesma fonte documental, até então pouco

primeiramente, as autoridades coloniais e, posteriormente, a população da província como um todo, se acirrou ao longo da primeira metade do XIX até alcançar o seu ápice com a cemiterada. Sobre o assunto ver o excelente trabalho de REIS, João J. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, São Paulo: Cia. das Letras, 1991.

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Publicado pela prefeitura de Salvador em comemoração ao quarto centenário da independência da Bahia (1955). O autor de A formação e evolução cultural da cidade do Salvador fez pesquisa de campo e de arquivos, consultou fontes publicadas e bibliografias disponíveis. Vasculhou os arquivos públicos, do Estado e da Prefeitura Municipal, da Santa Casa de Misericórdia, do Convento do Carmo, nos arquivos das igrejas do (Bonfim, da Ordem Terceira do Carmo, do Passo, do Rosário dos Pretos e da Palma) como os do Arcebispado. Ainda consultou documentos inéditos no Arquivo Nacional e da Secção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio. OTT, Carlos., A formação e evolução cultural da cidade do Salvador (o folclore bahiano), Vols. 1-2, Salvador: Tipografia Manú ed., 1955.

explorada, é indubitável a riqueza de informações e as diversas probabilidades de análises que se oferecem.

Nesta perspectiva, dois outros estudos, já referendados nesta pesquisa, também usaram as mesmas fontes com objetivos diferentes: o clássico trabalho de Russell-Wood, sobre a Santa Casa de Salvador e as dissertação de mestrado de Daniele Souza. O primeiro autor empreende um levantamento demográfico do contingente de escravos africanos enterrados na cidade da Bahia como parte dos estudos sobre os funerais realizados pela Misericórdia, enquanto Enquanto Daniele Souza dispõe das mesmas fontes usadas por Ott (inventários e livros de banguês) para demonstrar a origem da comunidade escrava em Salvador empregada no trabalho urbano da cidade, durante a primeira metade do século XVIII.

Outro importante trabalho sobre escravidão setecentista e diáspora africana, de autoria de Carlos Francisco da Silva Junior, também faz uso dos livros de banguê como fonte de pesquisa. Neste trabalho, Carlos Silva Junior utilizando-se, também, de outras fontes, como os inventários post-mortem e os assentos batismais de africanos, não só consegue identificar as principais nações africanas, como os estereótipos criados em torno delas. Avança, ainda, nesta análise ao demonstrar como essas identificações foram constituídas, na Bahia e no outro lado do Atlântico durante a primeira metade do século XVIII416.

Nesta pesquisa, só foi possível utilizar três dos quatro livros de banguê que estavam sob a guarda da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Dos vinte livros que existiam à época de Ott, apenas onze permanecem catalogados na Misericórdia. Desses, só seis apresentaram condição de manuseio. Diante das más condições e do estado precário de conservação em que se encontravam, já denunciado por Russel-Wood ainda na década de 1970, várias partes dos três livros pesquisados tiveram que ter sua consulta restringida, pois se encontravam sem condição de manuseio e de leitura.

A classificação adotada para a catalogação dos livros foi feita de duas formas que terminam por se complementar: a primeira, numera os livros em 06, 08, 09 e 10 e a segunda, os reclassifica por “maços”. Ambas delimitadas pela temporalidade: Livro 06, nº 1261 (1764-1772), Livro 08, nº 1263, (1780-1792), Livro 09, nº 1264 (1792-1815) e Livro 10, nº 1265 (1815-1825). Neste trabalho, foram consideradas as duas classificações. Dentre esses quatros livros, foram selecionados três para análise, sendo que o último atingiu apenas o ano de 1808, limite temporal da pesquisa.

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SILVA JUNIOR, Carlos F. da, Identidade afro-atlânticas: Salvador, século XVIII (1700-1750), Salvador, 2011, 251 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.

Não foi possível ter um quadro completo e fidedigno do quantitativo dos registros compilados nos livros de banguê, pois os livros não cobrem todo o período e existem muitas lacunas deixadas pelo grau de deterioração da documentação. Por isso, optou-se quantificar apenas o livro 06. Entretanto, estes registros fornecem um outro panorama sobre a presença desse contingente de centro-ocidentais na Bahia da segunda metade do século XVIII. Com isso, optou-se por trabalhar os dados obtidos de forma qualitativa, priorizando a riqueza de informações presentes nestas fontes, como demonstrado anteriormente. Acredita-se poder aprofundar a interpretação desses dados através do cruzamento com outras fontes, tais como o

TSTD, inventários post-mortem e procurações diversas encontradas nos livros de notas,

depositados no Arquivo do Estado da Bahia. A partir daí, será possível evidenciar, não só a existência de redes mercantis entre a cidade da Bahia e os portos de Benguela e Luanda, assim como demonstrar que essas redes constituídas nas rotas do comércio de escravos, estabeleceram conexões para além desses espaços e das relações econômicas que envolvem a atividade mercantil. Dessa forma, o livro de banguê, também, permitiu conhecer melhor a dinâmica sociocultural do comércio, notadamente, de escravos, bem como os agentes envolvidos nestas redes comerciais, ajudando na identificação de comerciantes estabelecidos na Bahia e África, até então desconhecidos pela historiografia.

Retomando a análise dos resultados alcançados nas pesquisas que utilizaram os livros de banguê como fonte, uma avaliação preliminar dos números encontrados por Ott, por Souza e Silva Junior no banguê em relação à origem dos africanos enterrados nas diversas freguesias da Cidade do Salvador, durante o século XVIII, lança algumas luzes ao problema do número de africanos centro-ocidentais que entraram pelo porto de Salvador.

Ao todo, nos oito livros de banguê consultados pelo antropólogo, no período de (1741 a 1799), foram listados 26.003 escravos sepultados pela Misericórdia. Esse montante foi organizado e distribuído pelo autor da seguinte forma: 10.817 (41,6%) bantus (angolas, benguelas, cabindas, congos, muxicongo, gabão, moçambique, São Tomé e mbunda); 8.484 (32,6%) sudaneses (gêge, nagô, minas, gentio da costa, gentio da guiné, aussá, arda, benin, calabar, Cabo Verde, fulani, tapa e Ilha do Príncipe); 16 (0,1%) classificados como de origem duvidosa (carabari, sabaru, coda, barba, cotocori, cora, saletino, cabaré, alada e mancangana); 949 (3,6%) mestiços (crioulos, cabras, pardos e mulatos); e 5.737 (22,1%) dos “nascidos na Bahia” (por não constar a origem nos documentos)417. A maioria dos cativos presentes nos

417 A classificação de Ott tem erros de fácil identificação na distribuição das nações africanas segundo suas

banguês inumados pela Santa Casa era de origem africana (74,3%), enquanto 25,7% foram identificados pelo autor como “mestiços” e “nascidos na Bahia”.

Para a primeira metade do século XVIII, que incluíam apenas dois livros (1741-1743 e 1749-1753), jovem historiadora, compilou um total de 2.186 escravos sepultados pelo banguê até o ano de 1750. Segundo Souza, 2.055 dos escravos listados (94%) eram de origem africana, “sendo que 19% do total de inumados eram africanos boçais, ou seja, recém- chegados da África”418. Para o referido período 1.418 cativos puderam ter sua origem étnica catalogada a partir das informações contidas nos banguês e foram organizados da seguinte forma: 556 (39,2%) África Ocidental (mina, jeje, cabo-verde, São Tomé, cabrari- calabari/calabar, Ilha do Príncipe, coirano); 739 (52,2%) África Centro-Ocidental (angola, benguela, congo, bamba, mungola, muxicongo); 20 (1,4%) África Oriental; 36 (2,6%) Origem indeterminada (preto, gentio da costa, “pardo de Angola” e “Nação do gentio”); 67 (4,6%) Brasil (crioulo, cabras, mestiço, mulato e pardo). Corrobora, portanto, com as estimativas feitas por Carlos Ott que identificou no seu estudo uma significativa maioria de africanos centro-ocidentais sendo sepultados pelo banguê.

Alguns detalhes dos resultados obtidos na pesquisa de Souza merecem destaque. Entre os 406 cativos tidos como recém desembarcados, 267 (66%) eram Angolas, 71 (17,5%) da Costa da Mina e 38 (9,5%) Benguelas. A maioria, portanto, dos escravos “novos” enterrados pela Santa Casa, na metade do século XVIII, embarcou pelos portos de Luanda e Benguela, superando, inclusive, os recém chegados dos portos da Costa da Mina (17,5%).

Na pesquisa de Carlos da Silva Junior, a ampliação no uso de outras fontes, para além dos livros de banguê, possibilitou comparações que provocaram alguns questionamentos. O historiador constatou que os resultados obtidos com os banguês contradizem aqueles encontrados nos inventários post mortem e nos assentos de batismo pesquisados, aspecto também investigado pelo antropólogo Carlos Ott. Silva Junior observou que, nos registros de batismos de algumas freguesias de Salvador (Conceição da Praia, Sé, Santo Antonio Além do Carmo e Paripe), a proporção de africanos ocidentais recém-chegados, sendo batizados, ultrapassava os 90%, enquanto os centro-ocidentais quase desapareceram419. Quanto aos inventários post mortem, outra fonte trabalhada tanto pelo historiador quanto por Ott, a tendência se manteve, entretanto, com uma significativa alteração em relação ao percentual de autor, pelas distorções demográficas existentes não são relevantes, visto que não é esse o objeto do estudo em questão. Sobre a temática, vide nota anterior. OTT, Carlos B., Op. Cit., Tomo I, pp. 60-1 e Tomo II, p. 91.

418 SOUZA, Daniele S., Op. Cit., p.55.

419 Silva Junior identificou para cada freguesia uma alternância de predominância de nações nas seguintes

proporções: Conceição, 96,8% mina; Sé, 55,5% jeje; Santo Antonio, 89% mina; Paripe, 75,9% mina. SILVA JUNIOR, Carlos F. Op. Cit., Cap. 4.

africanos centro-ocidentais, que somaram 31,7% de presença nos inventários dos senhores pesquisados, mas a predominância de africanos ocidentais ainda era superior.

Essas fontes confirmam o predomínio dos ocidentais na Cidade da Bahia, e a nação mina era a de maior representatividade, na maioria das principais freguesias, ocorrendo o mesmo com os assentos de batismo420. No que tange aos banguês, para o período de cinquenta anos (1700-1750), Carlos da Silva Junior examinou os registros de um único livro421, identificando a mesma predominância de africanos centro-ocidentais em detrimento aos ocidentais, apontada por Ott e Souza. Dos 1.158 africanos inumados pela Misericórdia, entre 1741 e 1743, o autor chegou aos seguintes resultados: 620 (53,5%) centro-ocidentais; 519 (44,8%), ocidentais (mina, cabo-verde, calabar, São Tomé, jeje). Os 19 (1,6%) moçambiques aparecem como única etnia da África Oriental. Ficou evidente, também, na pesquisa de Silva Junior, a elevada presença de centro-ocidentais que morreram Salvador, durante a primeira metade do século XVIII, superando, inclusive, a de africanos ocidentais.

Diante dos números apresentados, pode-se afirmar que a proporção de africanos centro-ocidentais enterrados em Salvador, pelo menos na primeira metade do século XVIII, é maior do que a de africanos ocidentais. Ainda que sejam considerados os limites de interpretação na análise dos dados de Ott e a lacuna de cinquenta e cinco anos que separam a primeira pesquisa das outras duas, Ott, Souza e Silva Junior chegaram à conclusão que, durante o século XVIII, o número de africanos centro-ocidentais (e dentre estes, os “angolas”) traficados para Salvador era superior aos que chegavam da Costa da Mina.

Considerando os dados resultantes dessas pesquisas, emergem questões que merecem reflexão e análise. Como explicar a inversão dos números de africanos centro-ocidentais em detrimento aos ocidentais, diferindo do registro de outras fontes? O que dizer da constatação de que os banguês registraram uma maior predominância numérica de centro-ocidentais, dentre eles os angolas, ao invés dos mina (africanos ocidentais), num período em que as estatísticas do tráfico apontam um maior fluxo de africanos desta região para Bahia? Por que os banguês registram essa diferença? Será que morrem mais centro-ocidentais do que ocidentais, ou chegam mais centro-ocidentais do que ocidentais e por isso morrem mais? Onde foram parar os que sobreviveram? Estas perguntas não poderão ser respondidas integralmente por esta pesquisa. Outras investigações se fazem necessárias e, provavelmente,

420 (angola, benguela, congo, muxicongo, bixicongo, monjolo e bamba) (angola, benguela, congo, muxicongo,

bixicongo, monjolo e bamba)

421 ACMS, Livro de Banguê, 1741-1743, Livro 1257. Apesar de existirem dois livros que cobrem a primeira

metade do século XVIII, somente este livro pode ser pesquisado pelo historiador. O outro foi interditado para pesquisa devido ao alto grau de deterioração em que se encontrava.

poderão ajudar a responder a essas questões. Entretanto, os dados obtidos e as análises aqui elaboradas, sobre aspectos relevantes das relações comerciais entre Angola e Bahia, podem contribuir para ampliar a compreensão dessas questões ainda sem respostas.