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CONTEXTOS SOCIOHISTÓRICO E SITUACIONAL

COMERCIANTES NO COMÉRCIO BAHIA-ANGOLA

3.2 CONTEXTOS SOCIOHISTÓRICO E SITUACIONAL

Convém lembrar que o espaço de interlocução autor e leitor é tenso, reúnem-se no tempo-espaço, de forma simbólica, unindo-se e separando-se, numa relação impregnada de contradições, antagonismos e até mesmo cumplicidade. Nessa perspectiva, é importante conhecer quem era Caldas, de que lugar social produz o seu discurso e para quem, qual o contexto histórico no momento da produção do texto e sua relação com o poder político e intelectual. Em primeiro lugar, serão feitas algumas considerações sobre a vida de Caldas.

Nasceu em Salvador, (c.1725), filho legítimo de Pedro da Silva Caldas e de D. Maria da Natividade Cavalcante, natural da cidade de Salvador310, o engenheiro José Antonio Caldas foi um exemplo do segmento de homens que “ascendeu socialmente por intermédio da sua qualificação profissional”. Seu pai exerceu a ocupação de calafate, foi oficial escrevente e requerente de “papéis”. Seu avô materno viera de Recife e, em Salvador, foi prateiro com “tenda aberta”311. Ingressou como aluno na “Aula da Bahia”312

e nela foi “lente”313 por dezessete anos, iniciando como “discípulo partidista”314 do Coronel Manoel Cardoso de Saldanha315, seu grande incentivador, responsável por sua formação e indicação na participação de várias missões a serviço da Coroa Portuguesa316, tornando-se seu sucessor após sua morte.

José Antonio Caldas iniciou sua vida profissional, em 26/03/1745, assentando praça de soldado, na companhia do primeiro regimento da guarnição de infantaria, onde permaneceu pelo período de quase cinco anos. Alcançou o posto de Cabo de Esquadra da Companhia, em 1750, com aprovação do então Vice Rei – o Conde de Athouguia (1749-1754) e neste posto atuou por dez anos317. Em paralelo, tornou-se “discípulo partidista de Aula da Bahia”, onde permaneceu de 1752 até o ano de 1754. A partir de 1755, sob o governo do Conde dos Arcos, surgiu sua grande oportunidade profissional, quando teve seu nome indicado por Cardoso de Saldanha, para acompanhar o governador das Ilhas de São Tomé e Príncipe, para “ver e

310 ASCM, Livro 4º de Admissão de Irmão, fl. 235v. 311 KANTOR, Op. Cit., p.142.

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A “Aula da Bahia” foi criada pelo Rei D.Pedro II, por Carta Régia de 11/01/1699 e fazia parte de um projeto maior de Portugal, iniciado no século XVII, para tentar resolver o problema da escassez de Arquitetos e Engenheiros Militares nos seus domínios colônias na Ásia, África e América. Salvador sediou uma das primeiras Escolas Superiores de Arquitetura e Engenharia, outras duas também foram fundadas em Recife e no Rio de Janeiro. Seu principal objetivo era a preparação de recursos humanos habilitados ao projeto e execução de obras de Arquitetura Militar (fortificações) e, também, o exercício da Arquitetura Civil (pontes, chafarizes, edifícios públicos e particulares, estradas), além de trabalhos de levantamento cartográfico. UFBA–CEAB., Op. Cit., p. 129-30.

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Lente de “Aula da Bahia” era o cargo equivalente a mestre professor, encarregado de ensinar a, no máximo, três alunos a profissão de engenheiro militar.

314 “Discípulos de partido” eram estudantes de “partido”, ou partidista. Equivale aos bolsistas de hoje. Estes

alunos deveriam ter a idade mínima de dezoito anos, soldados ou não, que, em caso de ser soldado, receberiam o soldo, além de uma quantia de meio tostão ao dia como “bolsa”, pagos pela Coroa Portuguesa, para aprenderem a profissão de “engenheiros”. Apud UFBA–CEAB. Evolução física de Salvador, Edição Especial, Salvador: Pallotti, 1998, pp. 129-130.

315 Proficiente profissional, o engenheiro militar Manoel Cardoso de Saldanha, chegou á Bahia em 1749.

Juntamente com Nicolau de Abreu e Carvalho, também Engenheiro militar vindo de Portugal em 1723, recomendado pelo Engenheiro-mor e formador do ensino de Arquitetura Militar em Portugal, Manoel de Azevedo Fortes, tornou-se um dos mais importantes professores da “Aula da Bahia” no século XVIII que veio a substituir Abreu de Carvalho. Morre na Bahia em 1767 e seu aluno e discípulo José Antonio Caldas passa a substituí-lo nas funções de engenheiro de Arquitetura Militar, assim como professor da “Aula da Bahia”. Idem, p.133.

316 OLIVEIRA, Mário Mendonça., “Sargento-Mor José Antonio Caldas, um professor”, in Anais do IV

Congresso de Historia da Bahia, Salvador: IHGB, 2002, pp.535-47.

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desenhar a Fortificação a ser feita por planta”318

. Esta missão aufere a Caldas prestígio e garante-lhe, ao retornar, autorização do Conselho Ultramarino para seguir para Lisboa, a fim de aperfeiçoar seus estudos de engenharia (1759), além da nomeação de Capitão Engenheiro, posto no qual sentou praça em 20/06/1761, com patente de S. M. José I de 03/04/1761, função que desempenhou por mais de sete anos319. Um ano mais tarde foi admitido como Irmão maior na Santa Casa de Misericórdia e dela se tornou mordomo maior320.

Apesar das inúmeras missões desempenhadas a serviço do Senado da Câmara, do Governo Geral e a S.M.R, Caldas enfrentou muitas “dificuldades ao requerer a habilitação da Ordem de Cristo, tendo sido obrigado a recorrer diversas vezes para conseguir as dispensas de impedimentos apontados nas provanças”, mercê que só alcançou, finalmente, em 1768321

. Mesmo tendo servido aos interesses da administração real por trinta e dois anos, período que atuou como soldado, cabo, capitão e sargento mor de infantaria, inspetor de obras públicas da Fazenda Real e lente da Aula Militar, faleceu em 1782, com a idade de 52 anos, sem ter alcançado o reconhecimento que esperava por parte da Coroa, já que durante quatro anos aguardou a patente e nomeação de Tenente Coronel de Infantaria requerida em 1778322.

Este relato, em síntese, sobre a vida de Caldas, evidencia o lugar social de que fala, legitimado não só por sua competência profissional, como engenheiro e professor, como pelas funções e missões desempenhadas à serviço do Império Português. Elabora seu texto como conhecedor das práticas políticas e sociais, especialmente, de uma classe particular, a dos comerciantes, associadas às condições de existência e de seu modo de organização. O segundo aspecto a ser abordado refere-se a sua obra Notícia Geral de toda esta Capitania da

Bahia323, concluída em 1759. Enquadra-se no gênero “memórias históricas” compreendendo “descrições geográficas, inventários administrativos (civil e eclesiástico), mapas de populações e rendimentos da Fazenda Real, catálogos de autoridades (bispos, governadores, capitães-mores), coleção de tratados e cópias da legislação vigente”324. Estão também incluídos aspectos econômicos relacionados à produção agrícola colonial, exploração das minas, extração de madeira e os lucros obtidos pela metrópole com o comércio português nas Conquistas, comprovados pelos mapas comerciais dos negócios e gêneros comercializados,

318

OLIVEIRA, Mário Mendonça., Op. Cit., pp. 540-41.

319 Idem, Ibidem.

320 ASCM, Livro 4º de Admissão de Irmão, fl. 235v. 321

KANTOR, Op. Cit., pp.142-3.

322 AHU-CA, Bahia, Doc.#10911a #10918 Cx.#57, #CD 08, 15/06/1778.

323 CALDAS, José Antonio., Noticia geral de toda esta capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o

presente ano de 1759, in Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, nº 57, Bahia: Seção da Escola de Artífices da Bahia, 1931.

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durante os anos de 1756 e 1759, entre a Capitania e as diversas Colônias sob domínio português.

Esta obra, escrita por incumbência da Academia dos Renascidos325, dedicada ao então Vice-Rei D. Marcos Noronha e Brito (1755-1760)326, contrariava a ideia inicialmente proposta dos Acadêmicos de dedicar as memórias de governo ao Rei. O programa de estudos, proposto pelos acadêmicos, insere-se no contexto das reformas pombalinas que visavam, através de uma intervenção estatal, transformar “a economia colonial, promovendo desenvolvimento das manufaturas, agricultura, comércio e a interligação metrópole e colônia”. Para que esta obra atendesse às exigências da Academia, seria imprescindível reunir informações sobre os territórios metropolitano e colonial luso, por meio da produção de um “inventário das conquistas”, considerados “cartas, diários, participações, derrotas, memórias e mapas” que passam a ter “relevância no império e transformam-se definitivamente em serviço ao rei”327

.

Nesse contexto, Caldas deveria atender às especificidades estabelecidas pela Academia, no que tange à elaboração de “um mapa geral da América, mapas particulares das „capitanias‟ e „bispados‟ e plantas de fortificações”328

. Esta obra figura como uma importante fonte documental para o estudo do contexto colonial da Bahia de meados do século XVIII por ter gerado uma “memória do comércio ativo e passivo”329

, além de apontar diversos nomes de negociantes que, também, eram acadêmicos. Nas últimas páginas da Notícia Geral, constava o “apendis” onde foram anexadas as cinco relações com os nomes “de todos os homens de negócio com a distinção que serve [nesta Capitania]”, que, conforme dito anteriormente, constituíram a base da lista elaborada nesta pesquisa.

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Fundada pelo recém nomeado Conselheiro do Ultramar na Bahia José Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho de Melo, em 1759, durou apenas cinco meses. Sua composição advinha das elites coloniais e metropolitanas. Visavam à escrita de uma história geral e à potencialização do conhecimento e exploração da América Portuguesa como parte da proposta pombalina de transformar os rumos da economia portuguesa. A Academia dos Renascidos tinha nas obras escritas pelos “renascidos” uma convergência de interesses com as elites metropolitanas, ajudava a assegurar o controle Português nos territórios ameaçados em terras da América Portuguesa e atenderia aos seus membros no que diz respeito à flexibilização nas negociações dos interesses individuais e coletivos desses grupos. Para conhecer mais sobre o tema ver KANTOR, Íris., Esquecidos e Renascidos: Historiografia Acadêmica Luso-Americana, 1724-1759, São Paulo: Hucitec, Salvador: Centro de Estudos Baiano/UFBA, 2004 e PESSOTI, Bruno C., Ajuntar Manuscritos, e Convocar Escritores: O discurso histórico institucional no setecentos luso-brasileiro, Salvador: Dissertação de Mestrado/UFBA, 2009.

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Dom Marcos José de Noronha e Brito – Conde dos Arcos – fidalgo português, figura como o sexto Conde dos Arcos e o primeiro a administrar a Capitania. Ocupou o 42º lugar na lista dos Governadores-Gerais e 7º Vice-Rei do Estado do Brasil, no período de 23/12/1755 até 09/01/1760. Enviado à América Portuguesa para assumir o governo da Capitania de Pernambuco, aí permanece quando é enviado pelo Rei para a Capitania das Minas de Goiases.

327 Grifo nosso. RAMINELLI, Ronald., Viagens Ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distancia, São

Paulo:Alameda, 2008, pp.59-63.

328 KANTOR, Op. Cit., p.141. 329

Considerando o contexto histórico no momento da produção de seu discurso, pode-se observar que a escrita de uma história geral convergia para os interesses das elites coloniais e metropolitanas com o objetivo de ampliar o conhecimento e exploração da América Portuguesa, como parte da reforma pombalina, que pretendia mudar os rumos da economia. Ao ser escolhido pela Academia, esta confere-lhe prestigio e autoridade, atribuindo-lhe o papel de poder elaborar a escrita desta história e o direito de construí-la, provocando aproximações, afastamentos e silenciamentos de fatos/acontecimentos que não atendessem aos interesses das elites e ao controle do Império Português.

A seguir, será apresentada a análise da obra de Caldas, elaborada no processo de interação entre contexto e texto.