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DAS ROTAS DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO PARA OS LIVROS DE BANGUÊ

4.1 UM BANGUÊ DE POSSIBILIDADES

Inicialmente, faz-se a abordagem de uma das principais fontes pesquisadas para a construção deste capítulo, os livros de banguê. Neles registravam-se as taxas pagas pelos enterros de escravos, de pessoas pobres e de indigentes, realizados numa esquife denominada na Bahia de banguê. Esses serviços “do dever e obra”, feitos pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, “no particullar de dar a sepultura a todos os escravos”, “[...]visto ser obra de tanto merecimento a deus”, passaram a ser oferecidos pela irmandade, a partir de outubro de 1693, para que os senhores pudessem fazer as exéquias de seus cativos397. Ao custo inicial de dois cruzados398, o serviço prestado, exclusivamente, pela Irmandade da Misericórdia incluía a despesa do esquife399, propriamente dito, dos negros para transladar o corpo, dos “vestidos,

396 ASCMB, Livro 06 do Banguê, nº 1261 (1764-1772), fl. 147v, 22/04/1768. 397

ASCM, “Termo de acordão que a mesa tomou sobre o novo esquiffe” Livro de Acórdãos, nº14 (1681-1745), fl.31v.

398 O valor de dois cruzados definido no referido termo de acórdão prevaleceu pela maior parte dos séculos

XVIII e início do XIX. Em meados do século XVIII, equivalia a $800 (oitocentos) réis por cada exéquias realizada.

399 O esquife usado para o enterro dos escravos era uma espécie de liteira (rede) amarrada em uma vara e

carregada por dois escravos, um de cada lado. Russel-Wood declara que os “esquifes [bangüê] eram pouco mais do que simples tábuas”. Para o século XVII e XVIII, não foram encontrados registros gráficos desses esquifes, entretanto, no inicio do século XIX, Debret e Rugendas registraram imagens que podem representar o bangüê

capella e mais paramentos” despendidos pela irmandade por cada enterro realizado (ver Anexo 8.6, p.243)

Cabia aos “padres capelães do esquife” de cada freguesia recolher e repassar, mensalmente, as quantias pagas pelos senhores ou responsáveis, por cada morto, à secretaria da Santa Casa de Misericordia. Ao final de cada trimestre, o padre capelão recebia da irmandade o pagamento por todos os “enterros do banguê” realizados naquele período. Por cada um, a Santa Casa pagava ao padre capelão, em torno de $240rs (duzentos e quarenta réis). Os registros do livro 06 do banguê corroboram estas afirmações. Em 30/06/1766, o Reverendo Padre Sacristão de Nossa Senhora da Conceição da Praia, Máximo Pereira da Silva, recebeu 32$400rs (trinta e dois mil e quatrocentos réis) referentes a 135 enterros do banguê, “que foram ao Adro da dita Sua freguesia”. Já o Padre Sacristão, Manoel Barbuda de Figueredo, da freguesia de São Pedro, em 06/07/1766, recebeu a importância de 6$480, “por 27 enterros, que foram ao Adro da dita Sua Freguesia, nos meses de abril, maio e junho”. Em 27/08/1765, “Antonio Feliz de A[R]omarim Barboza, Sacristão atual da freguesia de Santo Antonio, além do Carmo” recebeu 2$400rs (dois mil e quatrocentos réis) por “dez enterros que foram a sepultar ao Adro da dita sua freguesia desde 27 de agosto a novembro de 1766”400

.

Note-se que a freguesia da Conceição da Praia, a segunda mais povoada, era o lugar onde se localizavam os ancoradouros e trapiches utilizados pelas diversas embarcações provenientes dos mais diferentes portos e regiões que aportavam na cidade da Bahia. Esta freguesia era o endereço dos armazéns, “casas” comerciais e das inúmeras “lojas de porta aberta” para onde eram levadas as mercadorias recém desembarcadas, inclusive os escravos novos chegados dos diversos portos africanos. Era também o principal endereço das residências dos negociantes estabelecidos na cidade e dos mercadores, pilotos, marítimos, homens do mar e escravos que pelo local circulavam, razão pela qual se registrou o significativo total de 135 enterros realizados, contra os 27 feitos na freguesia de São Pedro e apenas 10 da freguesia de Santo Antonio, além do Carmo401.

usado na Bahia. Vide (Anexo 8.6) RUSSELL-WOOD, A.J.R., Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755, Brasília: Ed. UNB, 1981, pp.175. Vide ANEXOS.

400ASCMB, Livro 06 do Banguê, nº 1261 (1764-1772), fls. 77v e 94v, 30/06, 06/07/1766 e 27/08/1766,

respectivamente.

401 Em meados do sáculo XVIII (1759), Salvador contava com uma população estimada em 56.346 habitantes,

distribuídos por nove freguesias urbanas e dez freguesias suburbanas. Estes números pouco foram alterados durante os cinquenta anos seguintes. A segunda freguesia mais populosa, a Conceição da Praia, contava com 8.017 almas, a de Santo Antonio, além do Carmo, 3.000 e a de São Pedro Velho, 6.680 almas residentes. Sobre os censos demográficos no período colonial ver: AZEVEDO, Thales de., Op. Cit., p.181-200.

Cada defunto sepultado tinha registrado num “bilhete”, quando possível, dados como nome do defunto e do responsável financeiro pelo enterro, endereço da residência e/ou do falecimento, além das marcas características que trazia pelo corpo. Tudo era repassado ao escrivão da Secretaria da Santa Casa Misericórdia que transcrevia essas informações no livro do banguê. Por exemplo, a (Figura 9) apresentada a seguir, demonstra o que foi afirmado.

No dia 12/06/1768 foi registrado pelo escrivão da Misericórdia:

FIGURA 9

Nota: “faleceu João Angola escravo digo marcado com a [marca] de fora, que mandou Sepultar Manoel Lourenço da Costa, morador na Praya; declarou que ainda que diz marcado com a de fora, não trouxe no bilhete marca alguma, e pagou $800rs [oitocentos reis]”.

Fonte: ASCMB, Livro 06 do Banguê, nº 1261 (1764-1772), fl. 156v, 12/06/1768.

Como pode ser observado, as notas indicavam as informações contidas nos bilhetes que acompanhavam as prestações de contas feitas pelos “padres sacristãos dos esquifes”. À margem direita, ao término do registro, anotava-se a quantia paga pelo senhor ou responsável pelo morto e logo acima vinha indicada a freguesia onde o defunto fora enterrado. Do lado esquerdo, escrevia-se o nome e, quando era o caso, reproduzia-se a marca identificada no corpo do defunto. Ao que parece, Matheus Pereira dos Santos Cavalcante, o escrivão do livro 06 do banguê, não “poupava tinta” e registrava, tal e qual, o bilhete recebido dos “padres sacristãos dos esquifes”.

Na (Figura 9, p. 174), acompanhada da nota transcrita, apresentada a seguir, fica evidente o quanto Cavalcante era atento e meticuloso nas suas anotações. Muito cuidadoso com os detalhes registrados nos bilhetes que recebia dos párocos, transcrevia, inclusive, informações que, aparentemente, não seriam necessárias para o controle contábil da Santa Casa. Graças ao trabalho meticuloso do escrivão, as informações registradas possibilitaram conhecer detalhes relevantes das redes comerciais que envolviam comerciantes, agentes do tráfico e escravos traficados nos dois lados do atlântico.

FIGURA 10

Nota: “Em 19 do dito [janeiro de 1765] faleceu João, natural da Costa da Mina, Língua geral, em Casa do capitão Domingos Ribeiro, e disse Ser escravo do Reverendo Padre Alexandre, que morreu, na Costa da Mina; e era o dito casado em Lisboa com uma preta, escrava do Capitão José Correa; e pagou-se o bangüê $800rs.Conceição”.

Fonte: ASCMB, Livro 06 do Banguê, nº 1261 (1764-1772), fl. 23v, 19/06/1765.

A partir das informações contidas na nota da (Figura 10, p.175) e apesar da falta de outros documentos que possam ajudar a confirmar as suposições suscitadas pela nota do banguê, é possível conhecer um pouco mais sobre os circuitos que envolviam as rotas de comércio entre portos africanos, europeus e brasileiros.

João Mina, escravo do Reverendo Padre Alexandre, tinha como ofício ser “língua geral” e, provavelmente, vivia embarcado, com seu senhor, nos navios que faziam a rota Salvador-Costa da Mina-Salvador402. Casado com uma “preta”, também escrava do capitão português José Correa, morador em Lisboa, João, circulava pelo atlântico, a serviço de seu senhor. Não por acaso havia contraído núpcias, em Lisboa, com a escrava do Capitão José Correa, provavelmente, uma pessoa que fazia parte da rede de relações do Padre Alexandre. Ao que parece, numa dessas viagens à Costa da Mina, o Reverendo padre morreu e João regressou a Salvador para comunicar sua morte ao Capitão Domingos Ribeiro, pessoa com

402

Havia uma preocupação constante por parte da Coroa portuguesa em batizar os escravos trazidos da África. O Livro V das Ordenações Filipinas era bem claro quanto a essa questão: “Mandamos que qualquer pessoa, de qualquer estado e condição que seja que escravos de Guiné tiver, os faça batizar e fazer cristão, do dia que a seu poder vierem até seis meses, sob pena de os perder para quem os demandar”. Entretanto, constantemente, a Coroa encaminhava reiteradas ordens ao arcebispo da Bahia cobrando o cumprimento das recomendações Régias. Uma provisão datada de 23/08/1718, enviada por D. João V, chama a atenção na obrigação do batismo, como critica e responsabiliza o Arcebispo pelo descumprimento dessa lei, haja vista a quantidade de escravos que eram transportados para as Minas, sem ser batizado. Dizia a provisão: “vem muitos escravos de Angola por batizar e que o mesmo sucede até dos que se trazem na Costa da Mina, o que é um gravíssimo desserviço de Deus e bem das almas dos ditos escravos [...]”. Daí a obrigação de existir um Capelão à bordo dos navios que faziam as rotas do comercio de escravos para realizar o sacramento do batismo. Entretanto, o que ocorria é que essa ordem não era cumprida totalmente pelos armadores e senhorios das embarcações. Quando havia sacerdote na embarcação, via de regra, eles recebiam o pagamento pelos serviços sacerdotais em mercadorias – escravos. Isso explicaria o Padre Alexandre, possuir ligações comerciais com “interessados” residentes em diversos portos. Sobre a legislação vide: LARA, Silvia Hunold (org), Ordenações Filipinas: LivroV, São paulo: Cia. da letras, 1999, p.308-9; _______., “Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa”, Fundactión Histórica Tavera, 2000, p.248.

quem o Padre Alexandre possivelmente mantinha ligações comerciais e, talvez, de amizade. Ao chegar a Salvador, João, por uma obra do acaso, também veio a falecer em casa do Capitão Ribeiro, que, por ser morador na Rua da Praia, tratou logo de providenciar o enterramento de João no adro da Igreja da Conceição, localizada na freguesia de mesmo nome.

Um outro exemplo selecionado do livro de banguê confirma a ideia de que o escrivão da Santa Casa da Misericórdia, Matheus Cavalcante, era cuidadoso na execução do seu oficio e extrapolava suas funções. A (Figura 11, p.176), retirada de um outro livro de banguê, com data posterior, à nota da (Figura 10, p.175), pode ajudar a compreender o quanto as informações detalhadas contidas nesta fonte ajudaram a entender as ligações entre as redes de comerciantes nos dois lados do atlântico. O Livro de Banguê nº.09 trazia as informações efetuadas pelo então escrivão, Clemente Álvares de Aguiar, entre outubro de 1792 e 1815. A nota contida na (Figura 11, p.176) e reproduzida a seguir é datada de 1800. Ao comparar as notas contidas na (Figura 10, p.175) e na (Figura 11), logo se percebem as diferenças.

FIGURA 11

Nota: Em 6 [de maio de 1800], [faleceu em casa de] Adriano de Adriano de Araújo Braga 1 negro ladino Manoel digo um moleque de Nazario// $800.

Em 6 [de maio de 1800], [faleceu em casa de] Adriano de Adriano de Araújo Braga 2 negros de sua conta 1 marcado//1$600.

Fonte: ASCMB, Livro 09 do Banguê, nº 1264 (1792-1815), fl. 244v, 06/05/1800.

As principais informações, para o controle da Santa Casa, tais como valores pagos, reprodução das marcas e nome dos responsáveis pelo enterro foram mantidas. Entretanto, a riqueza de detalhes, marca registrada de Cavalcante, raramente fazia parte das anotações de Aguiar. É possível afirmar que esse escrivão era um homem de “poucas palavras”, talvez, até “dado a impulsos repentinos”, já que num momento anotava, com um pouco mais de cuidado e, em outro, simplesmente, registrava o mínimo necessário. As (Figuras 11, p.176 e 12, p.177) confirmam as suposições sobre Aguiar, até aqui levantadas.

FIGURA 12

Nota: Em 9 [de maio de 1800], [faleceu em casa de] Antonio José de Caldas uma negrinha Angola as conta de Queiros e Regahadas morador em Angola vinda na corveta Flor do Sul, e um moleque Mina do Sul, digo de conta do Governador das Ilhas de São Tomé e Príncipe João batista e Silva na corveta Dianna// 1$600.

Fonte: Idem, Ibidem, fl. 245v, 09/05/1800.

FIGURA 13

Nota: Em 4 [de setembro de 1805], [faleceu em casa de] José Machado Pinto um escravo pertencente a negociação do Bergantim Constancia marcado// $800.

Em 6 [de novembro de 1800], [faleceu em casa de] Adriano de Adriano de Araújo Braga 2 negros de sua conta 1 marcado//1$600.

Fonte: Idem, Ibidem, fl. 279v, 04/09/1805.

Verifica-se que na (Figura 12, p.177), também datada de maio de 1800, constavam informações mais detalhadas sobre alguns aspectos, como os portos de embarque e o lugar onde os escravos faleceram, além do nome e do local de residência dos proprietários dos africanos inumados. Contudo, ainda estão ausentes as informações sobre o endereço da “casa” em que se encontravam e a freguesia onde se deu o sepultamento dos africanos. Do mesmo modo, o nome do morto, posicionado, normalmente, do lado esquerdo bem acima da imagem da marca, não foi informado. Comparando-se à nota da (Figura 13, p.177), datada de 1805 e de autoria do mesmo escrivão, percebe-se que menos ainda foi informado. Nesta imagem, só é possível identificar a data, o nome da pessoa que pagou o enterro e o proprietário dos escravos inumados.

Uma outra hipótese de leitura no que se refere às mudanças nos registros dos livros de bangüê, quanto ao decréscimo de informações, é a ausência delas nos bilhetes que acompanhavam a prestação de contas, feitas pelos párocos e enviadas aos escrivães da

secretaria da Misericórdia. É conhecido dos pesquisadores que o século XIX trouxe mudanças na escrita da documentação regular e cartorial. A presença de um maior número de pessoas letradas, aptas a assumirem a função antes exercida, principalmente, pelos párocos, aumentou consideravelmente, favorecendo uma maior oferta e rotatividade entre os indivíduos que ocupavam esses cargos. É possível que por estas razões tenha ocorrido certa negligência por aqueles que exerciam a função quanto à forma de registro dessas notas. Acredita-se que ambas as hipóteses podem ser consideradas. Entretanto, diante do que foi anotado por Cavalcante na (Figura 10, p.175) e por Aguiar na (Figura 13, p.177) há evidências de mudança na maneira de registrar nesses livros.

FIGURA 14

Nota: “Em 10 dito [junho de 1768] faleceu um negro Angola, marcado no ombro esquerdo com a de fora que mandou Sepultar o Capitão Francisco Borges dos Santos, e declarou pertencer ao Contrato Real daquele Reino [de Angola], e pagou $800rs. Conceição.

Fonte: Idem, Ibidem, fl.156v, 10/06/1768.

Note-se que os registros contidos no Livro de Banguê nº 06, correspondentes aos anos de 1764 a 1772, auxiliaram a conhecer melhor as práticas dos enterramentos e o grau de inserção que a Santa Casa de Misericórdia desempenhava na sociedade baiana colonial. Verificou-se que, entre os dias 05 e 07 de maio de 1764, cinco sepultamentos foram realizados, perfazendo um total de 4$000rs (quatro mil réis). Esse valor só foi repassado à Santa Casa, nos primeiros dias de junho de 1764. Os africanos boçais, vindos de Benguela, pertencentes ao “Capitão José Caetano Araujo, morador à Preguiça o qual declarou ser da conta da carregação da galera N.S. do Socorro”403 e os dois outros “hum negro escravo de Antonio Cardoso dos Santos, morador do Trapiche Grande” e mais um “negro novo do gentio da Costa da Mina, escravo de Manoel do O´Freire, morador no caes do Dourado”404

, dois conhecidos homens de negócio, foram sepultados na Conceição, bairro da Praia, mesma freguesia e próximo aos locais de residência dos seus senhores. Entretanto, os africanos

403 ASCMB, Livro 06 do Banguê, nº 1261 (1764-1772), fl. 04v, 01/06/1764. 404

ladinos, João Angola e Josefa Gege, de propriedade do “Reverendo Cônego Jorge Correa Lisboa, morador na rua direita do Colégio”, e o do “padre Jeronymo Freitas e Souza, morador à Rua do Bangala”, respectivamente freguesias da Sé e de Santana, foram sepultados no cemitério.

Em toda a cidade, existia somente um cemitério – o do Campo da Pólvora – pertencente à Misericórdia. Uma postura editada pela Câmara no início do século XVIII (1710) já indicava a existência deste cemitério. Para lá, segundo a Câmara, deveriam ser levados os “negros pagãos” ou boçais, abandonados por seus senhores, e também os indigentes405. No entanto, como visto anteriormente, nos anos de 1764, escravos boçais e ladinos, enterrados às custas dos seus senhores pelo banguê da Santa Casa, foram sepultados em locais próximos ao domícilio de seus proprietários. Como os escravos eram sepultados nos espaços localizados à frente ou ao redor das igrejas – o adro – é lógico supor que os escravos do Capitão José Caetano Araujo, Antonio Cardoso dos Santos e Manoel do O´Freire, mesmo sendo boçais e, portanto, “negros pagãos”, foram sepultados no adro da igreja de Nossa Senhora da Conceição, pelo prestígio dos seus senhores, reconhecidos homens de negócio da praça baiana. Ao passo que, João Angola e Josefa Gege, apesar de serem batizados, afinal pertenciam a dois religiosos, foram inumados no Campo da Pólvora. Assim, nesta época, o que definia o local de sepultamento era a proximidade da moradia e o prestígio social exercido pelos proprietários de escravos. Talvez o aumento do volume de enterramentos tenha levado a Misericórdia a ampliar a utilização do cemitério do Campo da Pólvora a todas as pessoas enterradas pelo banguê que residissem nas freguesias próximas ao cemitério, como era o caso de João Angola e Josefa Gege.

Segundo Russell-Wood, na Bahia colonial não havia leis que tratassem sobre a responsabilidade em oferecer serviços funerários à população. “A Misericórdia era a única irmandade baiana que proporcionava serviços fúnebres às pessoas que não eram membros de nenhuma irmandade”. Era comum aos cristãos-católicos terem seus mortos enterrados nas igrejas, ao lado de Deus e dos santos de sua devoção, excetuando-se os pagãos e os que tinham cometido suicídio. Nesta sociedade, a posição social e racial do individuo definia o lugar onde seria sepultado dentro das igrejas. Quanto mais próximo do altar, maior posição ocupava na hierarquia social. Aos escravos batizados, membro de irmandades ou não, restava o terreno à frente ou ao redor das igrejas localizadas nas freguesias onde faleciam. Entretanto,

405 ASCMB, Livro de postura 119.3, doc 144, fl.19v., apud, SOUZA, Daniele S., Entre o “serviço da casa” e o

“ganho”: escravidão em Salvador na primeira metade do século XVIII, Dissertação (Mestrado em Historia), Salvador: UFBA/FFCH, 2010, p.54.

era muito comum o abandono de corpos nas portas ou escadarias das igrejas na calada da noite ou seu lançamento ao mar406. Contudo, ao que parece, pelo menos a partir dos anos 1764, ou até mesmo antes disso, os enterros feitos pelo banguê da Santa Casa, não seguiam à risca a postura da Câmara.

Como foi sinalizado anteriormente, todo serviço fúnebre era monopolizado pela Santa Casa de Misericórdia, mas não era somente por ela executado. Em muitos casos os serviços eram concedidos (através da cobrança de aluguel de essas407) às diversas irmandades existentes na Capitania, que atendiam aos seus irmãos dependendo dos grupos sociais aos quais pertenciam. A Misericórdia realizava exéquias para uso geral pela comunidade. Ela cuidava do enterro dos irmãos e de suas famílias. Como já referenciado, desde 1693, passou a se ocupar, também, das inumações de pessoas livres ou escravas e dos indigentes que fossem pobres demais para poder pagar um enterro decente408.

O serviço de banguê, apesar de ser utilizado, sobretudo, para o enterro de africanos, pagos pelos seus senhores, também servia à população pobre da cidade e até mesmo aos que estavam de passagem. Os moradores de outras praças que aqui residiam, presos da cadeia pública, os muito pobres, não pertencentes a nenhuma irmandade, e indigentes tinham seus enterros garantidos com o mínimo de dignidade. Essas pessoas, independente da cor, quando encontradas mortas pela cidade ou nas escadarias das Igrejas, tinham seus sepultamentos pagos “por caridade”. Dentre os muitos exemplos, foram selecionados dois. José Ferreira, um índio que faleceu preso na cadeia, em 11/10/1792, “o qual se deu mortalha e foi o Banguê por caridade”409, e um indigente que faleceu, em 21/01/1793, “e foi o Banguê buscar o falecido de uma facada que se achava na rua, por caridade”410

.

O banguê, também, poderia ser pago com “esmolas” doadas por alguma alma caridosa, porque se compadecia, ou porque conhecia o defunto e achava por bem arcar com as despesas do enterramento. Nestes casos, o valor pago dependia da quantia que o pagador dispusesse para doação. Em 11/04/1793, dois defuntos “pelos os quais tirou o Capitão José Meneses Bandeira de esmola” a quantia de 1$440rs (um mil, quatrocentos e quarenta réis)”411

. Considerando que o serviço de banguê nessa época custava $800rs (oitocentos réis) por pessoa, a Misericórdia teve que “desembolsar” $160rs (cento e sessenta réis).O problema do abandono de corpos nas vias públicas, escadarias das Igrejas e nas praias, ultrapassou as

406

RUSSELL-WOOD, A.J.R., Op. Cit, pp.176-7.

407 Essas eram os estrados onde se colocavam o caixão do cadáver durante as cerimônias fúnebres, estrado. 408 RUSSELL-WOOD, A.J.R., Op. cit., pp.184-5.

409 ASCMB, Livro 09 do Banguê, nº 1264 (1792-1815), fl. s/n, 11/10/1792. 410 Idem, Ibidem, fl. 18, 21/01/1793.

411

instâncias da questão de “salubridade pública” e tornou-se parte das “vicissitudes urbanas”,