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1.3 A APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA ESCRITA: ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES

1.3.2 Algumas contribuições da Teoria da Psicogênese da Língua Escrita

A partir da década de 1980, as críticas a essa perspectiva predominante de alfabetização, na forma de métodos tradicionais de alfabetização, ganhou realce. No concernente aos materiais didáticos, é evidente a crescente crítica às cartilhas, visto que a língua, nesse ponto de vista, era concebida como um código de transcrição gráfica das unidades sonoras (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999).

Segundo Ferreiro (2012), a alfabetização não deve mais ser entendida como mera transmissão de uma técnica instrumental. E isso implica preservar, na escola, o sentido que a leitura e a escrita têm como práticas sociais, a fim de formar o cidadão da cultura escrita.

A partir daquela década, concepções psicológicas, linguísticas, sociolinguísticas e psicolinguísticas vêm impulsionando revisões didáticas e pedagógicas nas formas de pensar e conceber o ensino de língua nas escolas. Inegavelmente o currículo, também, a partir de então, vem sofrendo transformações.

A Teoria Psicogenética colocou em questão os pressupostos até então vigentes nos currículos oficiais no Brasil, compreendendo que o sujeito que aprende atua ativamente na reconstrução da escrita, elabora hipóteses e as reconstrói, até alcançar uma escrita alfabética e ortográfica. Deu ênfase à competência linguística da criança e às suas capacidades cognoscitivas, ao sujeito que a teoria de Piaget ensinou a descobrir. Um sujeito ativo que compara, exclui, ordena, categoriza, reformula, comprova, formula hipóteses, reorganiza e etc. Explica os processos e as formas mediante as quais as crianças aprendem a ler e a escrever (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999).

Diferentemente do modelo tradicional associacionista da aquisição da linguagem, a Psicogenética reconhece que “a obtenção de conhecimento é um resultado da própria

atividade do sujeito, isto significa que o ponto de partida de toda aprendizagem é o próprio sujeito” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 31).

Assim, “no lugar de uma criança que recebe pouco a pouco uma linguagem inteiramente fabricada por outros, aparece uma criança que reconstrói, por si mesma, a linguagem, tomando seletivamente a informação que lhe provê o meio” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 24). Em outras palavras, ela formula hipóteses, não espera passivamente, procura ativamente compreender a natureza da linguagem.

Constituindo-se não em uma teoria do ensino, mas em contribuição teórica no campo da linguagem, a teoria da Psicogênese da Língua Escrita, idealizada por Ferreiro, Teberosky e colaboradores (1999), desencadeou mudanças significativas no campo da alfabetização. Portanto, a preocupação está em como os sujeitos aprendem. Esse procedimento, segundo as autoras, traduz um processo longo e árduo que se assemelha ao que a humanidade passou para construir a escrita.

A teoria, portanto, deu ênfase à competência linguística da criança e às suas capacidades cognoscitivas, ao enfatizar que a escrita desse sujeito segue uma linha de evolução surpreendentemente regular (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999). Ferreiro (2010) analisa as produções escritas das crianças dentro de três estágios: a) distinção entre o modo de representação icônico e o não icônico; b) utilização de meios mais elaborados de escrever (escritas intrafigurais, escritas interfigurais);e c) a fonetização da escrita.

A fase icônica tem início quando a criança faz rabiscos, tenta imitar a escrita adulta, conhecida como garatuja, indicando transição a caminho da fase pré-silábica, sem saber diferenciar o desenho da escrita. Na fase não icônica, a criança já diferencia o desenho da escrita, começa a utilizar meios mais elaborados para escrever, e tem a preocupação de demonstrar a diferenciação das escritas produzidas, como a utilização de letras diferentes para a escrita de objetos diferentes, explorando eixos quantitativos e qualitativos. No eixo quantitativo, a escrita alcança, no mínimo, três letras para que a palavra seja interpretável; já no qualitativo, a posição das letras é alterada.

Nos dois estágios anteriores, o aprendiz não apresenta preocupação em relacionar letra- som, ou seja, não se atentou, ainda, para os aspectos sonoros da língua. Ambos podem ser compreendidos como o período pré-silábico de escrita. Já a fonetização de escrita inicia no período silábico, passa pelo silábico-alfabético e culmina no período alfabético. Surge com a tentativa de dar valor sonoro a cada uma das letras que compõem a escrita. Nesse caso, cada fase possui especificidades. Isto significa que, na fase silábica de qualidade, a atenção não é para o valor sonoro da letra, mas da sílaba que, em geral, a escrita é representada/notada pelo

som vocálico. Gradativamente, essa hipótese vai sendo refinada com as hipóteses silábico- alfabética e alfabética.

Nessa lógica, para Ferreiro (2010), os sujeitos passam por quatro períodos: o pré-silábico, o silábico, o silábico-alfabético e o alfabético. Em cada um deles os aprendizes têm diferentes hipóteses ou explicações para como a escrita alfabética funciona; portanto, têm diferentes desafios a resolver. De acordo com Morais (2012, p. 49), elas precisam responder a duas questões: “O que as letras representam (notam)? Como as letras criam representações (ou notações)?”.

O estágio pré-silábico é marcado por um longo período; o aprendiz precisa conhecer os significados dos sinais escritos. De acordo com Morais (2012, p. 54), ele “ainda não descobriu que a escrita nota ou registra no papel a pauta sonora, isto é, a sequência de pedaços sonoros das palavras que falamos”.

No silábico, é necessário resolver a hipótese de que a escrita vincula-se com a pronúncia das partes da palavra. Para Morais (2012), esse período é marcado por um grande salto. O aprendiz “passa, finalmente, a interpretar que o que a escrita nota ou registra é a pauta sonora das palavras que falamos” e “concebe que para cada sílaba pronunciada, deve-se colocar uma letra” (MORAIS, 2012, p. 58). É nessa etapa que a criança compreende que a escrita representa/nota o som da fala, isto é, “hipótese silábica é uma construção original da criança que não pode ser atribuída a uma transmissão por parte do adulto” (FERREIRO, 1999, p. 213). É importante frisar que, nesse estágio, o sujeito, inicialmente, compreende que a unidade palavra integra pedaços entendidos, a priori, no eixo da quantidade, ou seja, fase silábica de quantidade; e a posteriori, ocorre o que destacamos anteriormente, ele passa a articular os pedaços à esfera sonora, fase silábica de qualidade (MORAIS, 2012).

No estágio silábico-alfabético o aprendiz já descobriu que uma letra não é suficiente para compor as sílabas e recorre, ao mesmo tempo, às hipóteses silábica e alfabética, isto é, ora utiliza apenas uma letra para notar as sílabas orais das palavras; ora utiliza mais de uma letra, instituindo relação entre fonema e grafema. Isto significa que a criança começa a perceber “que a escrita alfabética nota (a pauta sonora, ou seja, as partes orais das palavras que falamos), em lugar de achar que se escreve colocando uma letra para cada sílaba, descobre que é preciso pôr mais letras” (MORAIS, 2012, p. 62). É um momento conflitante para a criança, onde ela começa a observar a distância entre sua escrita e a escrita do adulto e, ao perceber que o valor sonoro é determinante para o desenvolvimento da escrita, então, passa a acrescentar letras, principalmente na primeira sílaba (FERREIRO, 1999).

No último período, o alfabético, “as crianças resolvem as questões o que e como da forma como o fazemos nós, adultos bem alfabetizados e usuários do português: colocando, na maioria dos casos, uma letra para cada fonema que pronunciamos” (MORAIS, 2012, p. 64). O nível alfabético é o ponto de partida para novos desenvolvimentos, visto que a criança continua a construção desse processo percebendo as regras, coordenando os conhecimentos já construídos e formulando novas hipóteses para compreender o sistema de escrita (FERREIRO, 1999).

Segundo Morais (2012), não podemos confundir a chegada a uma hipótese alfabética com estar alfabetizado. Nessa fase da escrita alfabética, os aprendizes precisam aprender as convenções da língua. São processos evolutivos e, cabe salientar, ainda, que esses períodos/fases não podem ser encarados como caixas, o que sugeriria, inevitavelmente, um processo estanque, fechado. Em outras palavras, são marcos importantes que ajudam na apreensão das hipóteses de escrita e, mais, em como intervir, didaticamente e pedagogicamente, em cada uma delas, conforme sublinha Coutinho (2005).

Como vimos, o processo de apropriação da leitura e da escrita, enquanto objetos de ensino, sofreram alterações no decorrer da história da alfabetização e trouxeram grandes contribuições para o ensino da língua materna. Para Chartier (1998), conforme já realçado, estas mudanças podem ser vistas sob duas categorias: mudança de natureza didática (definições de conteúdos) e mudança de natureza pedagógica (modalidades de organização dos alunos na sala de aula, emprego do tempo, formas de avaliação, etc.).

A orientação construtivista, segundo Morais (2012), pressupõe que a escrita alfabética representa um sistema notacional e não um código, e que, como realçam Ferreiro e Teberosky (1999), seu aprendizado envolve um complexo trabalho conceitual, que é completamente desconsiderado pelos métodos tradicionais de alfabetização. A escrita alfabética, segundo Morais (2012), não é um código que transpõe graficamente as unidades sonoras (fonemas), mas um sistema de representação escrita (notação) dos segmentos sonoros da fala. Nesse caso, conforme sublinhamos, o aprendiz apropria-se desse objeto de conhecimento lançando mão de várias hipóteses, que marcam esse longo e rico processo evolutivo. De acordo com Ferreiro (2010), as crianças precisam compreender que as letras representam ou notam a pauta sonora das palavras que falamos e que, para escrever diferentes palavras, é preciso variar as formas gráficas registradas.

Precisamos entender que os autores não estão defendendo o retorno dos antigos métodos tradicionais, mas a importância de os alfabetizadores terem metodologias de alfabetização

para ajudar as crianças a descobrirem o sistema alfabético e suas propriedades e, assim, dominarem suas convenções.

Para Chartier (2007), os professores necessitam estar conscientes de que, na alfabetização, devemos articular o trabalho de apropriação do sistema alfabético com a compreensão textual, tanto para ler textos como para escrevê-los. Isto implica preservar, na escola, o sentido que a leitura e a escrita têm como práticas sociais, a fim de formar o cidadão da cultura escrita.

Segundo Soares (2003), é necessário reinventar a alfabetização, recuperando a especificidade desse campo. O Brasil viveu, nas últimas décadas, um processo de desinvenção desse campo, o que corroborou para tornar estanques os índices de alfabetização no país. Como consequência do debate e das produções num espectro mais amplo, na sala de aula, houve um distanciamento do ensino que primasse, por exemplo, as relações som-grafia, visto que esse enfoque passou a ser visto como tradicional, por ser conteúdo abordado nas cartilhas e, portanto, refletido nos métodos tradicionais de alfabetização.

Em complementaridade a essa ideia, a autora, em diferentes obras, adverte que é preciso não ter receio do termo método, mas com outro sentido do que vem sendo apregoado nos métodos tradicionais. Nessa direção, a autora defende

[...] método que seja o resultado da determinação clara de objetivos definidores dos conceitos, habilidades, atitudes que caracterizam a pessoa alfabetizada, numa perspectiva psicológica, linguística e também (e talvez, sobretudo) social e política... compreendendo esta como sujeito ativo que constrói o conhecimento, e não ser passivo que responde a estímulos externos; que seja, enfim, o resultado da definição de ações, procedimentos, técnicas compatíveis com esses objetivos e com essa opção teórica (SOARES, 2008, p. 95-96).

Ao se referir a método, a estudiosa atesta que métodos são os caminhos que conduzem a criança alfabetizada. Em outras palavras, assemelha-se ao que Morais e outros atestam como metodologias e/ou procedimentos, variados métodos para favorecer os processos de alfabetização e letramento, ou seja, a apropriação, pela criança, da leitura e da escrita.

Defendemos, neste estudo, ancorados em Morais (2012), que é urgente, no caso da alfabetização, superar os antigos métodos de alfabetização e lançarmos mão, nos currículos, nas práticas de sala de aula, de metodologias de alfabetização que assegurem a consolidação do objeto escrita alfabética nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Isto em articulação com o campo do letramento, na contemporaneidade, letramentos, assumindo a perspectiva de alfabetizar letrando (SOARES, 2004; MORAIS, 2005; 2012) e concordando com programas

de formação docente de alcance nacional como o PNAIC3 (BRASIL, 2012a) e, mais recentemente, o Programa Mais Alfabetização4 (BRASIL, 2018). Contudo, acentuamos que a presente pesquisa não incide diretamente sobre esses Programas como um todo, mas em relação a essa premissa de alfabetizar o estudante nos primeiros dois anos do ciclo de alfabetização.

Recuperando o que Morais (2012) discute acerca das propriedades do sistema de escrita alfabética - SEA, destacamos, a seguir, os princípios que o alfabetizador necessita ter clareza quanto ao ensino e ao aprendizado desse objeto de conhecimento que é a escrita:

1. Escreve-se com letras que não podem ser inventadas, que têm um repertório finito e que são diferentes de números e de outros símbolos. 2. As letras têm formatos fixos e pequenas variações produzem mudanças em sua identidade (p, q, b, d), embora uma letra assuma formatos variados (P, p).

3. A ordem das letras no interior da palavra não pode ser mudada.

4. Uma letra pode repetir-se no interior de uma palavra e em diferentes palavras, ao mesmo tempo em que distintas palavras compartilham as mesmas letras.

5. Nem todas as letras podem ocupar certas posições no interior das palavras e nem todas as letras podem vir juntas de quaisquer outras.

6. As letras notam ou substituem a pauta sonora das palavras que pronunciamos e nunca levam em conta as características físicas ou funcionais dos referentes que substituem.

7. As letras notam segmentos sonoros menores que as sílabas orais que pronunciamos.

8. As letras têm valores sonoros fixos, apesar de muitas terem mais de um valor sonoro e certos sons poderem ser notados com mais de uma letra. 9. Além de letras, na escrita de palavras, usam-se, também, algumas marcas (acentos) que podem modificar a tonicidade ou o som das letras ou sílabas onde aparecem.

10. As sílabas podem variar quanto às combinações entre consoantes e vogais (CV, CCV, CVV, CVC, V, VC, VCC, CCVCC…), mas a estrutura predominante no português é a sílaba CV (consoante – vogal), e todas as sílabas do português contêm, ao menos, uma vogal (MORAIS, 2012, p. 51). As discussões sobre o SEA remetem à reflexão sobre como as crianças se apropriam da língua escrita. Como vimos, elas formulam hipóteses sobre a escrita, precisam refletir sobre a relação estabelecida entre fala e escrita e conhecer o sistema convencional da escrita; portanto, fazem uso da Consciência Fonológica. É esta temática que abordamos a seguir.

3 O PNAIC, instituído pela Portaria nº 867 em 2012, apresentou-se como um compromisso formal assumido

pelos Governos Federal, do Distrito Federal, dos Estados e Municípios de assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até os oito anos de idade, ao final do 3º ano do Ensino Fundamental.

4 O Programa Mais Alfabetização, criado em 2018, cumpre determinação da BNCC, pretende atender estudantes

com a presença de assistentes de alfabetização, que trabalharão em conjunto com os alfabetizadores em turmas de 1º e 2º anos do EF.