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Algumas palavras sobre a heterogeneidade dos textos analisados

2 Relações com a leitura e a escrita

4.4 Conclusões, ainda que provisórias

4.4.1. Algumas palavras sobre a heterogeneidade dos textos analisados

A comparação entre os textos produzidos pelos dois grupos leva, de início, a duas constatações. A primeira diz respeito à diferença de desempenho já no ponto de partida: os que se engajaram de fato no trabalho mostraram, como já assinalamos, um nível médio

superior de desempenho, a começar pela extensão dos textos — uma média de 235 palavras no primeiro grupo, contra 177, no segundo. Há também nítida diferença qualitativa entre as produções, como se pode constatar pelos textos 5 e 6, apresentados na seção anterior.

A observação acima mostra que os textos analisados, especialmente os quatro primeiros, não podem ser tomados como representativos do desempenho médio da população de origem dos sujeitos: alunos da segunda série do ensino médio de escolas públicas de periferia de uma cidade do interior próxima a Belo Horizonte (apenas uma das adolescentes estava cursando a terceira série na época da pesquisa). Em primeiro lugar, porque não representam uma amostragem quantitativamente suficiente para tal propósito; em segundo, porque parece haver mais heterogeneidades do que homogeneidades entre os desempenhos dos sujeitos. Na verdade, uma das conclusões desta investigação é a de que a escrita tem um caráter idiossincrático e pessoal, tanto no que se refere ao tipo de desempenho quanto ao significado e valor simbólico que cada sujeito lhe atribui. Mesmo em um universo tão restrito quanto o observado, há mais variações do que se poderia supor à primeira vista.

O desempenho inicial de P, por exemplo, uma jovem que declarou não gostar de ler e de escrever, mas foi assídua nas oficinas e ficou até o final do trabalho, era nitidamente inferior ao dos demais, embora ela estivesse cursando a terceira série do ensino médio e os outros, a segunda. Na entrevista individual com a família, fomos informados das dificuldades de aprendizagem de P no início da vida escolar, dos problemas de saúde que teve até os dois anos de vida e do fato de ter usado medicamento para disritmia até a adolescência. Apesar dessas variáveis, P perseverou no trabalho, mostrou disposição para se aplicar com disciplina às tarefas propostas e teve acentuada melhora tanto no desempenho oral quanto na capacidade de se expressar diante do grupo. Devido à limitação de seu desempenho lingüístico-textual inicial, o tempo de trabalho não foi suficiente para que P melhorasse significativamente o desempenho escrito em gêneros secundários, embora tenha avançado na compreensão dos tópicos trabalhados nas oficinas.

Já M, apesar de ter tido problemas com a troca de letras no início da aprendizagem (problema que ainda se mantinha na época do trabalho) e de ter declarado que não gostava muito de escrever, mostrou, já no início do processo, um desempenho sintático-semântico e textual acima da média. Foi assídua, envolveu-se no trabalho, mostrando-se incrivelmente disposta a refazer os textos depois das entrevistas individuais. Revelou também uma grande capacidade de reflexão metalingüística: era capaz, quando não de explicar o efeito de sentido de recursos sintático-semânticos e discursivos usados em seus próprios textos, pelo menos de

compreender rapidamente as explicações que lhe eram apresentadas nas oficinas coletivas e nas entrevistas individuais. No texto que produziu ao final do trabalho, entre outros pontos comentados, declarou: Entendi que devo procurar deixar minhas idéias sempre claras no

papel, lendo o que escrevei como leitor, para ver se as outras pessoas vão entender o que escrevi. Entretanto, logo em seguida acrescentou: Eu só não consigo corrigir minha ortografia, que como deve ter reparado, ainda não estar boa. Por incrível que pareça, o único

erro de ortografia cometido por M nesse texto, que tinha no total 160 palavras, foi esse estar com r final, em lugar de está, tentativa ansiosa de compensar pela hipercorreção seu problema de ortografia que, na verdade já não é grave como ela imagina, mas foi — e continua sendo — fonte de angústia para ela.

Tanto P quanto M têm famílias integradas, que valorizam a cultura escolar e controlam o comportamento dos filhos. Enquanto o pai de P escreve e lê bem ― produziu um texto para publicação no jornal ―, o de M nunca freqüentou a escola e tem apenas rudimentos de escrita e leitura. As duas tiveram problemas no início da aprendizagem, mas reações distintas diante das dificuldades: a primeira desgostou-se da leitura e da escrita; a segunda, possivelmente por ter desenvolvido o gosto pela leitura, encontrou meios e disposição para superar, sozinha, as dificuldades.

JJ, que também foi assíduo e ficou até o final do trabalho, mostrou dificuldades de desempenho sintático-semântico, apesar de ter declarado seu gosto pela leitura e pela escrita (produz espontaneamente textos de “ficção confessional”, muitos deles paráfrases ou paródias de textos que lê) e ter mencionado suas experiências positivas na aprendizagem da leitura e da escrita. Ao que parece, sua competência escrita restringe-se a certos gêneros de textos e, de modo geral, em suas produções, observa-se, por assim dizer, o transbordamento do eixo paradigmático (semântico), sobre o sintagmático (formal). Por sua vez, J, apesar de ter dito que escrevia apenas quando necessário, ficou até o final do trabalho, tendo demonstrado desempenho acima da média tanto na produção escrita (ver texto 8 no anexo 6) quanto na capacidade de reflexão metalingüística.

As observações acima mostram que um conjunto complexo de fatores parece influenciar o desenvolvimento da expressão escrita, o que nos faz retornar às reflexões apresentadas no segundo capítulo. Não há uma relação direta e determinista entre apetência, disposição e

competência. A apetência parece depender do enlace da escrita com desejos e motivações em

grande parte inconscientes; a disposição seria influenciada pelo valor atribuído à cultura escrita (e, por associação, à cultura escolar) pelos sujeitos e suas famílias, assim como por

certo tipo de disciplina para o trabalho intelectual, também formado no contexto familiar e escolar; a competência parece depender tanto do sucesso nas experiências iniciais de aprendizagem, quanto da qualidade da instrução escolar recebida. Entretanto, esses fatores parecem não funcionar isolados, cada um de per si, mas de forma interativa e complementar: a menor incidência de um pode ser compensada pela maior incidência, amplitude ou profundidade de outro ou outros. Assim, tanto o sucesso no desempenho escrito pode alimentar o gosto pela escrita e a disposição em escrever, quanto o gosto e ou a disposição podem sustentar a prática da escrita e, conseqüentemente, levar a um melhor desempenho.

Outra constatação: o que se aplica à leitura não pode ser automaticamente transferido para a escrita: indivíduos com apetência e disposição para a leitura podem não ter a mesma atitude frente à escrita, mesmo que demonstrem facilidade em escrever e bom nível de competência lingüístico-textual. Tal situação pode ser ilustrada pelo caso de AC (ver texto 7 no anexo 6). Quando estava presente nas atividades coletivas (AC faltou várias vezes e abandonou o trabalho perto do final), demonstrava acuidade de leitura, capacidade de elaborar respostas orais e escritas bem articuladas, de distinguir perspectivas de enunciação e de usar a linguagem para falar sobre a linguagem. Mostrou apetência e disposição para a leitura (leu dois romances extensos em prazos curtos durante o período de trabalho). Entretanto, seu artigo de opinião, embora lingüisticamente correto, não atualizou o modelo de composição do gênero e ficou muito aquém do que ela aparentemente poderia ter feito, considerando seu nível de compreensão, capacidade de argumentação e de reflexão metalingüística.