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2 Relações com a leitura e a escrita

2.3 Marcas dos que ficaram

JJ Com 17 anos, JJ gosta de escrever, de fazer desenhos de moda, participar de teatros e apresentações na escola. Durante o trabalho, mostrou facilidade de se manifestar no grupo, foi assíduo e fez as tarefas solicitadas. Quando foi proposta a elaboração de uma reportagem, foi um dos poucos que teve iniciativa de sair a campo: entrevistou pessoas sobre um assunto de interesse local (o aumento das tarifas de ônibus), gravou, transcreveu e reelaborou as respostas, adequando-as ao registro escrito adequado ao gênero.

Indagado sobre o que era para ele um artigo de opinião, mostrou dificuldade em caracterizar o gênero e certa suscetibilidade em relação a impor os próprios pontos de vista ou submeter-se às convicções dos demais. Em várias ocasiões mostrou também certa insegurança na interpretação de perguntas que lhe eram feitas, como se pode observar na interação a seguir:

P — O que que você acha que é importante no começo do texto?

JJ — Acho que no começo é você tá dando sua opinião, mas sem querer que mas sem querer que o leitor assim — na minha opinião, claro — eu acho que assim tem que começar mas sem querer que o leitor vire, querendo que você, que ele ache a mesma coisa que você. Tem gente que acha assim, ele tem que achar isso, isso e isso e num é bem assim não, na minha opinião. Eu acho que a pessoa escreve, a pessoa lê e dá sua crítica também. Foi mais ou menos isso?...

P — Você me respondeu dizendo que num artigo de opinião quem é o autor, que está enunciando aquele texto, que está produzindo aquele texto não tem que impor a sua opinião ao leitor, mas apresentar ...

JJ Isso, tem que apresentar e esperar também o que os outros vão achar, né? E também respeitar principalmente a opinião do texto que você leu. Você não deve colocar no seu texto que você

produziu em cima dele, querer, de uma maneira assim, dizendo que o texto dele é mentiroso, querer mesmo abaixar o texto dele.

Apesar de ter ressaltado a importância de respeitar o discurso do outro, JJ produziu, como se verá no capítulo 4, um texto de crítica agressiva em relação ao discurso de Lula. Outro paradoxo interessante: embora perceba as diferenças ideológicas entre os discursos, JJ mostrou, em várias ocasiões, pouca habilidade em responder a perguntas de caráter metalingüístico. Outro traço interessante, que reflete uma declaração feita na entrevista coletiva: JJ. gosta de apropriar-se das palavras do outro, de criar textos a partir de outros, como ele próprio diz:

JJ — Escrever é criar um texto em cima de outro. Me fugiu a palavra, num sei se é contextualização... Em cima daquele texto, jogar minha idéia nele. Por exemplo, um mesmo que eu fiz da Albertina, que era TPM, Tendência para não matar.

Talvez a apropriação feita por JJ se dê como uma colagem sem muita elaboração responsiva: ele mostra pouca preocupação em fundamentar os pontos de vista em argumentos lógicos, reafirmando a tendência a escrever para si mesmo, sem levar em contra o destinatário previsto. Observe-se que JJ informou, na entrevista coletiva, que gosta de escrever textos ficcionais de desabafo, em que dá a palavra a narradores e personagens tristes e desiludidas, à maneira de Álvares de Azevedo.

JJ — Eu sabia que era um artigo de opinião que poderia ser publicado, né? Só que na hora que eu escrevi eu num preocupei, eu falei assim: eu vou escrever o que eu penso, eu num pensei em colocar lá, assim, que outras pessoas iriam ler. Eu num pensei nisso.

Apesar dessas contradições — ou talvez por causa delas —, JJ produz textos espontaneamente e com freqüência. Observa-se, porém, considerável distância entre sua inclinação para escrever e o desempenho observado nos textos produzidos, no que se refere ao domínio de estruturação lógico-semântica e ao uso da sintaxe da língua, tanto na fala quanto na escrita. Durante as oficinas, tendia a divagar, a fazer digressões, referências a outros temas, discursos e textos lidos.

M M mostrou-se muito tímida, séria e reservada na entrevista coletiva. Quando uma colega pediu que apontasse uma qualidade que via em si mesma, disse que não sabia. Respondeu, porém, à outra pergunta que lhe foi feita: “O que você gosta de fazer no dia-a- dia?”. “Eu gosto de ler”. Essa foi a única frase dita por M na primeira oficina. Na entrevista individual, explicou que gosta de ler livros de suspense e mistério.

Embora tenha afirmado que não gosta muito de escrever, M permaneceu até final do processo, fez todas as tarefas de produção escrita solicitadas e foi quem demonstrou mais determinação em melhorar os textos, refazendo-os depois das entrevistas individuais.

P — Você gosta de escrever.?

M — Mais ou menos. Eu gosto mais de ler. P — O que que você acha difícil na escrita?

M —... palavras... e me vêm outras palavras na cabeça e aí eu fico muito tempo pensando que palavras eu tenho que colocar pra ficar melhor. [alguns segmentos da fala são inaudíveis na gravação]

P — Custa a vir palavras na sua cabeça (...)

Diante da afirmação de que escreve bem e da indagação sobre como aprendera a escrever, afirma que a leitura a ajudou e acrescenta que as explicações gramaticais recebidas na escola ajudaram “pouco, quase nada”. Segundo M, na escola nem sempre está interessada em aprender, as produções de texto não acontecem com freqüência, e os textos produzidos não são comentados. Considerou úteis as explicações que estava recebendo nas oficinas e nas entrevistas individuais, e justificou: “Eu estou interessada em melhorar e, antes, eu nunca tinha pensado em escrever para aprender a escrever”. Revela ainda que, para ela, escrever bem é uma forma de afirmação social.

P — Mas o professor, a professora,(...) manda vocês escreverem e corrige, e comenta? M — Poucas vezes.

P — Poucas vezes. Hum. Agora, neste momento, você está interessada em aprender a escrever por quê?

M — Pra escrever melhor do que eu escrevo. P — E pra que que você quer escrever melhor?

M — Porque quando alguém me pedir para escrever alguma coisa, aí eu escrevo, aí a pessoa vê que está certo e [parte incompreensível].

P — Que nem eu estou aqui... Como que você aprendeu a escrever tão bem?! Gracinha. Você escreve bem, você escreve bem.

M mostrou não só bom desempenho na produção escrita, mas também expressiva capacidade de tomar a língua como objeto de reflexão. Além de compreender facilmente as perguntas de natureza metalingüística, percebeu e corrigiu inadequações sintáticas e discursivas e soube explicar o efeito de sentido de marcas lingüísticas em produções próprias e de terceiros. Revelou-se uma pessoa minuciosa, precisa quanto a detalhes e preocupada em apagar as marcas de enganos. Apesar de lhe ter sido recomendado que deixasse os rascunhos das produções no caderno, arrancou as páginas, como se quisesse eliminar as versões imperfeitas.

A entrevista com os pais torna mais significativa sua persistência em superar-se: no início da aprendizagem, M. trocava letras. Atendendo à solicitação da escola, os pais tentaram levá- la a um especialista, mas não conseguiriam atendimento público, e M acabou superando, sozinha, a dificuldade.

R, pai de M — Todo mundo falava que era necessário, porque senão ela num mudava isso. Mas acabou que mudou. Nós foi até Belo Horizonte e no dia que conseguiu marcar uma entrevista, disseram assim: “Aguarda nas suas casas que vai chegar um telegrama.”. E isso já tem oito anos, até agora num chegou. [rindo]

A mãe de M fez até a quarta-série, e o pai praticamente não freqüentou a escola, mas expressa-se bem oralmente, gosta de contar casos de assombração e dá pistas de que participa da cultura da escrita e a valoriza, assim com à escola. Menciona ainda que o pai dele também aprendera a ler assim como ele, sem ir à escola, e que gostava de ler, sobretudo livros de História, e de falar sobre política. Em outro momento da entrevista, fala com entusiasmo do seu interesse pessoal pela História do Brasil.

P — Agora a Marina já me contou que o senhor é um grande contador de casos de assombração. R — E ela é uma grande mentirosa [rindo]. A única coisa que eu fico entrando muito, que num é minha área, que eu entendo pouco, é porque eu gosto muito é História do Brasil. Aquelas coisas lá me fascinam como se eu estivesse lá na época, então...

P — O senhor gosta de História...

R — Eu gosto de História, Geografia, essas coisas. Alguma coisa eu passei pra elas. Alguma coisa pra essa série aí elas me perguntam e eu costumo ter resposta, sabe?

(...)

P — O senhor fez até que série?

R — Não, quando eu entrei na aula eu saí ainda na primeira, num pude continuar. Um sabia uma coisa, me ensinava; outro sabia outra coisa, me ensinava. Assim, só pra sobreviver. Depois já entrei em aula aí, já entrei em supletivo. Pra entrar lá eu fiz uma prova, né? Aí passei e fui pra lá. Tava saindo até bem. Mas eu durmo demais. Eu trabalhando e estudando de noite, quando era oito horas da noite eu estava dormindo em cima do livro. Tenho vontade de voltar.

P — O senhor trabalha com quê?

R — Construção. Na construção eu faço qualquer coisa. Trabalho por empreitada. (...)

P — O senhor falou que seu pai lia muito? Tinha muito livro?

R — Meu pai lia muito. Era outro sem leitura, mas ele conseguiu praticar. Lia muito a Bíblia, lia livros de História, lia muito mesmo. Era bom em matemática.

P — E o senhor acha que ele aprendeu como, hein?

R — Igual eu comecei. Assim, ele só aprendeu com pessoas, não na escola. Quer dizer que ele num foi uma pessoa assim que... Num dá qualificação. Por exemplo, igual eu tava falando. Eu escrevo qualquer palavra, dá pra qualquer pessoa entender. Mas num é nada difícil — isso eu num vou fazer não, mas é só suposição — num seria nada difícil eu escrever casa com z. Então é essas coisas que eu estou dizendo, sabe?

Pelo contato e pela conversa, percebe-se que se trata de uma família estruturada, com um pai presente, que exige empenho dos filhos na escola, controla-lhes os passos, estabelece limites. Nem M, nem a irmã um ano mais nova, nem o irmão de dez anos têm permissão para ir sozinhos ao centro da cidade: um tem de ser acompanhado pelo outro, pela mãe ou pelo pai, o que explica o fato de M ter pedido permissão para que sua irmã a acompanhasse às oficinas. Explica também sua timidez e reserva, mas não a firmeza em expressar o que pensa, sem desconsiderar os pontos de vista diferentes dos seus.

P Quando passou a participar dos programas da instituição, P era muito tímida, quase não se expressava no grupo. Na época em que começaram as oficinas de escrita, já tinha superado parcialmente essa dificuldade. Entretanto, não se manifestou em relação ao tema na entrevista coletiva inicial. No decorrer dos trabalhos, foi responsável e assídua, tal como ocorrera em outras atividades das quais participara em outras ocasiões. Entretanto, embora fosse a mais velha do grupo (tinha dezoito anos) e a única, dentre os jovens que ficaram, que estava na terceira série do ensino médio, foi a que apresentou o mais baixo desempenho na produção do texto de diagnóstico (o artigo de opinião sobre o discurso do presidente Lula, que será comentado no capítulo 3).

Filha mais velha de uma família com pai e mãe presentes, P tem dois irmãos e é responsável por cuidar da alimentação e da higiene pessoal da avó paterna, que vive praticamente na cama. Muito apegada a ela, nunca permitiu que a mãe a colocasse em uma instituição para idosos.

A mãe de P fez até a quarta série, e o pai, até a oitava. Em entrevista com a família, os pais relataram que P foi uma criança muito doente, que chegou “a ser desenganada” no primeiro ano de vida. Durante a infância, tinha desmaios, que só foram controlados quando passou a fazer uso constante de remédio para disritmia. Na época do trabalho, o problema já fora superado, e P não usava mais nenhum medicamento.

Tanto os pais quanto P falaram de suas dificuldades iniciais na alfabetização, que só foram superadas quando se descobriu que ela não conseguia aprender porque tinha problemas de visão. P começou a usar óculos aos sete anos e, então, segundo os pais, conseguiu “aprender a ler e escrever direito”. Na época do trabalho, P tinha oito graus de miopia.

Ainda que não se tenha manifestado na entrevista coletiva inicial, P falou individualmente de boas lembranças da fase inicial de aprendizagem:

P — ...meu pai sempre me ensinando os deveres de casa, sempre com carinho, às vezes era bravo porque cobrava muito de mim. Mas depois eu vi que era para o meu bem.

Mencionou também com orgulho a observação positiva de sua professora em relação à sua melhora em leitura depois que começara a participar das oficinas de escrita:

P — E você, P, você acha que o trabalho está te ajudando, está servindo para alguma coisa? P — Serviu, pra muito. Teve uma vez que a professora deu um texto na sala — porque eu num gosto de ler muito não, sabe? —, aí a professora pediu para a gente tirar uma unidade do texto. Aí, eu fiz uma bagunçada lá. Aí ela deu de novo, aí eu fiz, eu já estava aqui nas oficinas. Eu melhorei bastante, ela ficou surpreendida, porque ela achou que eu ia errar de novo. Aí ela foi e perguntou o que tinha acontecido, aí eu falei que eu estava participando de um negócio aqui no IAV, de jornalismo. Aí ela falou: “Não, ajudou muito”. Principalmente naquela questão da objetividade e da subjetividade, sabe? Ela deu um texto na sala sobre aquilo também, eu mesmo fiquei surpreendida porque está melhorando.