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2 Relações com a leitura e a escrita

2.4 Homogeneidades e heterogeneidades

2.4.3 Retrato do grupo

Diante da necessidade de identificar coerências, sem ignorar diferenças e variações, encontramos nos conceitos de apetência, disposição e competência, propostos pelo sociólogo Bernard Lahire, em Retratos sociológicos (2004), sugestões de como abordar a questão, contemplando as constâncias e variações inter-individuais, bem como as intra-individuais.

O autor define disposição como o conjunto de inclinações recorrentes no indivíduo, as quais podem apresentar variações contextuais e gradações. Por exemplo, uma pessoa pode mostrar disposição ao ascetismo e à disciplina em relação ao trabalho, mas não em relação à

alimentação; ser comunicativo na vida social, mas fechada e reservada nas relações íntimas. A variação da disposição em grau ou força de fixação dependeria, em parte, da recorrência de sua atualização, face a necessidades e pressões externas (incentivo à ativação ou repressão da disposição). Como as disposições são pré-reflexivas, o autor enfatiza a importância de se observarem, nos estudos de caso, os aspectos da vida presente e passada do entrevistado, “que não entram no campo de consciência e interesse deste” (LAHIRE, 2004: 214).

Distinguindo disposição e competência, Lahire relaciona esta última a saberes circunscritos (saber redigir uma dissertação ou saber dançar tango, por exemplo), que podem manifestar-se de forma específica em contextos particulares ou impregnar grandes extensões da vida do indivíduo, tornando-se uma disposição mais geral. O autor esclarece a diferença, fazendo referência ao indivíduo que não só sabe dançar tango, mas faz da dança em geral sua forma de viver, que vive a dança em todos os momentos e vê o mundo como um grande espaço coreográfico.

O terceiro conceito discutido por Lahire, a apetência, define-se como a apreciação afetivo-valorativa do sujeito em relação à sua disposição para agir de determinado modo, apreciação que pode ir do sentimento de repulsa e desgosto à indiferença ou à paixão, grau mais intenso de apetência.

A distinção feita pelo autor entre apetência, disposição e competência, e a descrição das múltiplas formas com que podem combinar-se nos indivíduos, permite compreender e aceitar, sem constrangimento, que um mesmo sujeito — JU, por exemplo — seja responsável com as tarefas domésticas, mas não com as escolares; ou que tenha afirmado não gostar de dar a própria opinião, mas ter produzido um artigo de opinião, segundo ela, “no seu estilo”, dizendo de forma direta o que pensa, em um único parágrafo, como se verá no capítulo 5. Se abandonarmos a tendência a querer encontrar um único princípio de coerência, que explique a totalidade dos comportamentos de um indivíduo, poderemos até compreender por que, na última frase do texto, depois de ter dado sua opinião, JU hesite e faça o que, na entrevista individual, disse não gostar de fazer — “ficar em cima do muro”.

Para posicionar os sujeitos no retrato do grupo, apresentado no final deste capítulo, foram considerados não apenas os comentários constantes nas seções anteriores e os demais dados coletados durante o trabalho de campo, mas também meu conhecimento pessoal sobre alguns deles, advindo de sua participação em programas anteriores da Instituição (Instituto de Adolescentes Voluntários). No caso de F, por exemplo, antes do início das oficinas de escrita, eu já tivera oportunidade de observar sua resistência a assistir a filmes legendados, a

tendência a assumir uma liderança diretiva nos grupos, a dificuldade em aceitar ajuda e em admitir falhas, a propensão a fazer críticas agressivas à escola. Considerando esse conjunto de indícios, a desistência de F não deve ser atribuída somente ao fato alegado por ele em entrevista individual (ter começado a trabalhar, pois se tratava de trabalho esporádico, de um “bico”), mas a todo um conjunto de fatores dos quais ele mesmo possivelmente não teria consciência clara ou não poderia admitir para si mesmo. Por outro lado, M destacou-se dos demais por circunstâncias que não são facilmente explicáveis: seu caso possivelmente exemplifique o que Lahire (2004: 323-324).descreve como “deslocamentos discretos na socialização familiar e em inclinações pessoais”, cuja origem é difícil identificar, especialmente no âmbito deste trabalho.

Os conceitos de apetência, disposição e competência aparecem no retrato do grupo como categorias. Optamos, porém, por substituir o termo competência por desempenho, para indicar que a apreciação sobre cada sujeito se restringe aos objetivos do trabalho, aos dados disponíveis e, especificamente, aos textos analisados no âmbito desta pesquisa. No quarto capítulo, no momento em que forem analisados os artigos de opinião produzidos pelos sujeitos, será discutido mais amplamente o significado dos indicadores desta última categoria (desempenho) e as bases em que foram elaborados: no quinto, será retomada a questão da consciência metalingüística manifestada pelos participantes nas entrevistas individuais e nas tarefas de refacção de textos.

Os sinais de mais (+), (±) e (-) apresentados no quadro correspondem aos graus estabelecidos para os indicadores; a ausência de sinal indica falta de dados para a avaliação do item. O sinal (±) foi usado nos casos em que o sujeito expressou algum tipo de restrição ao comportamento referido pelo indicador. Por exemplo, no caso da leitura, afirmou que só gostava de ler textos de determinado gênero.

Na categoria apetência, a autorização para tomar a palavra está sendo empregada para indicar que o sujeito considera que tem o direito de se pronunciar, tanto oralmente quanto por escrito, sobre o tema que é objeto de seu discurso.

Os indicadores visão ampliada da leitura e visão ampliada da escrita aplicam-se às relações que o sujeito estabelece com a leitura (concepções, práticas), tendo-se considerado reducionista, não-ampliada (assinalada com o sinal (-), no quadro) a redução da leitura apenas a obrigação escolar ou a meio de ascensão social (arranjar emprego, por exemplo). À

visão ampliada corresponde a inserção da leitura e da escrita na vida cotidiana como atividades que têm valores e sentidos para o sujeito.

Na categoria disposição, o indicador disposição para examinar pontos de vista foi elaborado, tendo em vista que a linguagem é essencialmente dialógica e que, portanto, sua compreensão e uso proficiente para ouvir, falar, ler ou escrever exige o desenvolvimento de uma atitude interativa e flexível para com o outro e o mundo. Atitude necessária, aliás, para que qualquer pessoa possa desenvolver a autonomia de aprendizagem.

Retrato do grupo

Sujeitos F JJ AD AC J D JU B MG P R M

Autorização para tomar a palavra

+ + + + + + − − + ± ± ±

Gosto pela leitura + + + ± + − − ± − − +

Apetência

Gosto pela escrita + + ± ± − − − − − ± Visão ampliada da leitura + + + + + − − + − − + Visão ampliada da escrita + + + ± − − − − − + Disposição para examinar

pontos de vista

+ + + + ± − − − + + + Assiduidade + ± ± + − ± + + +

D

isposição

Realização das tarefas + ± ± + − + + + Acabamento do objeto de sentido ± ± ± ± + ± ± − − ± + Forma composicional − ± − + − − − − ± + Autoria e endereçamento ± ± ± ± + ± − ± + Desempe n ho Consciência metalingüística ± + + + − − ± − ± +

Nada surgiria miraculosamente do campo se partíssemos sem um problema a resolver, mas estes não encontrariam soluções sem o contato com a realidade. Vemos, então, o quanto a separação da teoria e da empiria revela-se puramente formal e a que ponto o “problema” da relação teoria/empiria é tipicamente um falso problema.

Bernard Lahire