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2 Relações com a leitura e a escrita

3.3 Algumas reflexões provisórias

Na introdução deste trabalho, explicitamos que, ao abordar a escrita, focalizaríamos também o desempenho oral dos sujeitos e sua capacidade de operar com uma imagem de escrita suficientemente elaborada para evitar a transposição direta de estratégias textuais típicas de gêneros orais primários para gêneros escritos secundários, formas mais complexas e exteriorizadas de expressão verbal porque destinadas a uma recepção disjunta (pelos menos aqueles gêneros de textos nascidos como escritos e que se destinam à leitura), em que os interlocutores estão em espaços e tempos distintos.

As reflexões esboçadas neste capítulo visam, por um lado, a buscar novos caminhos para a abordagem de determinadas ocorrências observadas nos textos escritos, que não se explicam facilmente pela transposição direta de características da oralidade para a escrita. Por outro, buscam contribuir para responder à questão de como usar a oralidade na pedagogia da escrita.

A análise dos relatos produzidos por dois sujeitos do grupo de pesquisa revelou diferenças significativas entre eles, tanto no desempenho oral quanto no escrito. Uma das adolescentes, AD, mostrou-se capaz de fazer um relato oral com ancoragem enunciativa e temática3 3 adequada ao gênero e praticamente sem marcas sintático-discursivas que possam ser atribuídas à interferência da fala interior no enunciado. Seu relato escrito revela um produtor com uma representação enunciativa e discursiva adequada do gênero “relato escrito” e com boa capacidade de textualização, ainda que o enunciado mostre a transposição de um traço da sintaxe oral, o uso repetido da coordenação aditiva, e umas poucas inadequações nas instruções sintático-semânticas marcadas pelos sinais de pontuação. O discurso escrito de AD não apresentou nenhum traço atribuível à fala interior. A se considerar o caso desse sujeito, pode-se afirmar que a uma maior articulação sintática e discursiva do texto oral de determinado gênero e, portanto, a uma menor interferência da fala interior, corresponde um

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A ancoragem é uma operação de gestão textual por meio da qual o locutor-autor institui uma “base de orientação” definidora de sua relação com a situação material de enunciação (tempo e lugar material da enunciação), com as figuras da enunciação (enunciador, co-enunciador, finalidades e lugares sociais da enunciação) e com conteúdo textual global.

desempenho escrito mais adequado no mesmo gênero. O outro sujeito, JJ, fez um relato oral marcado por hesitações, lacunas e fragmentações sintático-discursivas, com ancoragem enunciativa e temática insuficiente à compreensão do interlocutor. Embora tenha mostrado no desempenho oral indícios de forte interferência da fala interior, não transportou para a sintaxe do relato escrito, nem quantitativa nem qualitativamente esses traços, assim como soube também apagar a maior parte dos “andaimes” do texto oral. Entretanto, a composição do enunciado exibe indícios de um produtor com dificuldade de se expressar em gêneros que exijam capacidade de articular diferentes planos enunciativos. Trata-se, ao que parece, de uma dificuldade de transposição do pensamento para a linguagem.

Ainda que os dois casos analisados sugiram que a um desempenho oral lacunar corresponda um discurso escrito também lacunar, tal conclusão precisaria ser mais extensa e profundamente investigada.

No contexto deste trabalho, o interesse por investigar a presença de traços da oralidade e da fala interior na escrita dos sujeitos foi motivado pelo desejo de verificar a interferência desses dois aspectos na produção de gêneros escritos complexos, que exigem a projeção de um destinatário ausente, ancoragem enunciativa e temática criada a partir de recursos internos ao enunciado e uso de recursos lingüísticos de textualização mais elaborados. Subjaz a esse interesse o pressuposto de que a participação efetiva na cultura da escrita demanda a capacidade de pensar e usar a escrita como uma dimensão da linguagem com características próprias, a qual não se reduz nem à reprodução do discurso oral exteriorizado nem da fala interior.

No capítulo 4, serão novamente investigados os traços de oralidade e de fala interior no discurso escrito dos sujeitos, mas em um contexto de produção em que não se partiu do oral para o escrito, mas do escrito para o escrito. No capítulo 5, serão investigadas as relações entre a expressão escrita e a capacidade de reflexão metalingüística. A possibilidade de lidar com “relatos de relatos de relatos” e de distinguir as diferentes dimensões enunciativas e realidades representadas seria indício de que o produtor não lida com a linguagem escrita como se ela fosse um instrumento transparente capaz de refletir o seu querer dizer, mas como um instrumento simbólico complexo, a ser apreendido e usado conscientemente, ainda que ― ou talvez exatamente porque ― nos interstícios dos discursos continue a se insinuar sempre o não-dito.

As observações feitas no percurso da investigação e a análise dos textos produzidos pelos sujeitos (não apenas os que foram comentados neste capítulo, mas outros que não constam deste relato) permitem a elaboração de algumas conclusões, ainda que provisórias.

A primeira diz respeito à necessidade de trabalhar a expressão oral como ação de linguagem em que o sujeito assuma a própria voz diante do outro. A segunda aponta a importância de transformar a sala de aula em um espaço de interação oral coletiva multidirecional entre pares, e não apenas de interação professor-aluno. As observações feitas no capítulo anterior mostram que muitos adolescentes não conseguem sequer se expressar no grupo e que a maioria não consegue construir e sustentar um diálogo coletivo articulado. A evolução das interações entre os sujeitos ao longo das oficinas de escrita mostram que essas capacidades podem ser aprendidas, desde que consideradas “objetos ensináveis” e, sobretudo, dignos de ser ensinados.

A segunda conclusão se refere à necessidade de levar o aluno a construir uma imagem da escrita como uma dimensão da linguagem que, embora mantendo pontos de contato com a oralidade, dela se distingue por ser uma representação de outra natureza e não uma reprodução desta. Não se trata apenas de ensinar o aluno a apagar os traços de oralidade na superfície do enunciado (embora esse aspecto também seja importante), os dois sujeitos, como se observou, foram capazes fazer várias transformações dessa natureza), mas de descobrir estratégias para a compreensão e o uso dos gêneros secundários como instrumentos de representação de outra ordem. Os textos analisados neste capítulo e no próximo mostram que a proficiência na produção escrita em gêneros mais complexos exige um salto qualitativo no uso da linguagem.

A terceira conclusão, que na verdade é uma das respostas possíveis à questão levantada na segunda conclusão, remete para a importância de trabalhar o desempenho lingüístico dos alunos em gêneros orais monitorados, como a exposição oral formal ou o gênero que Schneuwly (2004) identifica como debate público. A expressão oral em gêneros de caráter público favoreceria a tomada de posição como sujeito de enunciação e o domínio cognitivo de estratégias discursivas que podem facilitar o trânsito dos aprendizes no contínuo oral-escrito, bem como estilo informal-formal.

Na relação criadora com a língua não existem palavras sem voz, palavras de ninguém. Em cada palavra há vozes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais (...) quase imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente.

Bakhtin