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Análise de relatos escritos produzidos a partir de relatos orais

2 Relações com a leitura e a escrita

3.2 Indícios da fala interior em relatos de caso

3.2.2 Análise de relatos escritos produzidos a partir de relatos orais

Como já assinalamos, cada participante da dupla produziu um relato escrito a partir do que tinha ouvido do colega, sem que fosse especificado o gênero de texto. Havia apenas a demanda de que o relato fosse compreensível e refletisse o que fora dito pelo colega, tendo sido permitida a leitura do texto para e pelo parceiro, para que esse considerasse a fidelidade do registro escrito ao que dissera oralmente, embora essa leitura não tivesse sido exigida na instrução inicial.

Nesta seção, serão apresentados e comentados os textos escritos produzidos por JJ e AD com o propósito de verificar eventuais traços de oralidade e indícios da fala interior presentes nos textos escritos.

3.2.2.1 Relato escrito 1: AD

O fato que eu ouvi ocorreu em Raízes município de Jequitibá. Raízes pelo que eu ouvi, tinha fama por ser uma cidade cheia de mistério e acontecimentos sobrenaturais. O JJ que me contou essa história, residia nesta cidade com seus 5 anos e afirmou ter presenciado com sua família tais acontecimentos, como ouvir passos ao redor da casa e não avistar ninguém e ver vultos que desaparecem de repente. E também me foi relatado o que aconteceu com seu pai e que todos na cidade contam. Ele me contou que seu pai estava cavalgando embriagado e se deparou com um lençol que pairava no ar e seu pai desceu do cavalo com o objetivo de chicotear a tal assombração só não sei nem o JJ sabe se seu pai teve sucesso.

A locutora se representa no texto como um eu que vai reproduzir um caso ouvido de terceiro, ou seja, faz um relato de relato, assumindo uma posição de distanciamento em relação ao objeto do discurso, posição condizente com sua aparente incredulidade ao ouvir o caso. Inicia o enunciado localizando os fatos no espaço e caracterizando o cenário de forma suficiente para orientar o leitor quanto à natureza do que vai ser dito. Mostra habilidade de sumarização, bom desempenho no uso do discurso relatado, de palavras e estruturas próprias ao estilo escrito monitorado (ocorreu, presenciado, deparou; e de uso da voz passiva ― E

também me foi relatado o que aconteceu com seu pai...).

Deixando de lado pequenos problemas de seleção lexical (por exemplo: não se ouvem

fatos, mas casos, relatos) e de sintaxe (a falta de concordância entre os tempos das formas

verbais afirmou e desaparecem, por exemplo), as marcas de oralidade que se manifestam são basicamente duas: o uso repetido do articulador coordenativo e; e a dificuldade de delimitar por maiúscula e ponto o que no estilo escrito monitorado se configura como frase. A abreviação e a redução das frases ao predicado, que seriam indícios da fala interior, estão ausentes do texto. AD deu ao relato do colega um acabamento que não existia no texto que este produziu oralmente. Por sinal, um acabamento que, sem desfazer o tom de mistério próprio do caso de assombração, modaliza sua própria dúvida em relação à veracidade do fato relatado: ... só não sei nem o José sabe se seu pai teve sucesso. Trata-se de um produtor com domínio da forma de composição do gênero relato e com capacidade de monitorar a própria escrita.

3.2.2.2 Relato escrito 2: JJ

Em nova serrana um homem tinha muito ciúmes da mulher, um ciúme doentio, teve um dia que a mulher falou que ia a igreja ele não queria que ela fosse mas ela acabou indo.

Quando ela voltou e dormiu ele a inforcou com uma corrente e a matou, depois pegou a filha dela e a colocou para mamar, quando a polícia chegou e as outras pessoas também todos se emocionaram e o homem foi preso.

O locutor faz o relato em terceira pessoa, mantendo-se distanciado do objeto de seu discurso. Apenas, em uma passagem, quando usa a expressão um ciúme doentio, deixa entrever sua apreciação subjetiva sobre o que diz.

Diferentemente do que se observa no texto de AD, anteriormente analisado, o narrador não cria um cenário enunciativo e faz pouco uso do discurso relatado. Utiliza este último recurso apenas uma vez, como relato segundo da fala de um ator da ação (... a mulher falou

que ia à igreja) e, no segmento seguinte, quando deveria prosseguir na mesma direção,

retoma logo a posição de um narrador que não dá a palavra a intermediários. Faz o relato de um só jato, usando sucessivas coordenações e marcadores textuais típicos do estilo oral não- monitorado.

Tomando como referência o relato oral de JJ anteriormente analisado, verifica-se que, no texto escrito por ele produzido, não emergem, nem quantitativa nem qualitativamente os traços da sintaxe oral: interrupções com mudanças de direção e fragmentação da estrutura sintática, marcadores conversacionais voltados para o interlocutor (sabe? né?). Observe-se que o locutor usa o pronome objetivo na estrutura “ele a enforcou”, o que não é típico do estilo oral não-monitorado. Ao transpor o relado ouvido, o produtor fez transformações que demonstram certa consciência das diferenças entre as duas situações comunicativas. Predomina, porém, em seu texto escrito, a estruturação sintático-discursiva típica do relato oral: o uso de sucessivas coordenações justapostas, sem uso de conector, ou articuladas pelo aditivo e, bem como marcadores textuais como teve um dia, depois. Além disso, faltam ao texto os sinais de pontuação necessários à articulação e à segmentação das unidades de sentido.

Não se observa no texto a omissão de agentes de ações ou de argumentos importantes para a compreensão do enunciado, exceto em uma passagem, quando o locutor deixa de mencionar que a filha fora colocada para mamar no peito da mãe morta, informação que tinha sido marcada pela colega como a mais incrível e chocante. Apesar de não haver omissões sintáticas que impeçam a interpretação, o texto, no todo, se apresenta como um relato abreviado, com os acontecimentos colocados no mesmo plano, sem contraste entre fundo e forma, sem destaque para os fatos principais. A falta de instruções sintáticas e discursivas

suficientes para articular e contrastar unidades sintagmáticas e planos narrativos pode ser considerada como indício da interferência da fala interior no discurso escrito do sujeito.