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2 Relações com a leitura e a escrita

4.1 Heterogeneidade, gênero e escrita

4.1.2. As vozes no artigo de opinião apresentado para leitura

No artigo de opinião apresentado para leitura (ver texto no anexo 3), Clóvis Rossi se representa duplamente: por meio da assinatura e como locutor que enuncia em primeira pessoa (Refiro-me). A ancoragem enunciativa temporal é feita pela data de publicação do jornal, 14 de agosto de 2005, momento a ser levado em conta, por exemplo, na interpretação do termo sexta-feira. O nome do jornal, Folha de S. Paulo, não só identifica o suporte de circulação do texto, como também remete para o espaço da enunciação do locutor. Utilizando o pronome você, o locutor representa lingüisticamente no texto também o alocutário ou leitor virtual, reafirmando o tom pessoal da ancoragem enunciativa. As marcas lingüísticas (Refiro-

me, você, 14/8/2005, Folha de S. Paulo) que enlaçam o enunciado à situação enunciativa

ajudam a identificar o gênero do texto: trata-se de texto opinativo assinado, produzido por um colunista de um grande jornal do país para os leitores desse jornal, acerca de um tema relevante e polêmico o suficiente para gerar controvérsia.

O título, O elogio da mediocridade, além de iniciar a ancoragem temática do texto, relaciona o discurso do presidente com a obra O elogio da Loucura (1509), de Erasmo de Rotterdam, discurso de sátira aos costumes, em que a Loucura elogia a si mesma, apontando- se como responsável pela alegria dos homens e dos deuses. Como os homens, ingratos que são, não reconhecem na Loucura a fonte da alegria e do prazer de viver, ela mesma o faz, não sem antes assegurar que tudo o que diz é verdade, já que é próprio da loucura não adotar máscaras e disfarces. Apropriando-se de uma expressão do interdiscurso, o título marca a posição de crítica do autor-locutor ao discurso de Lula. Trata-se de um caso de dialogismo mostrado e não-marcado: o discurso do outro foi incorporado de forma que pode ou não ser percebido como tal pelo interlocutor e até pelo próprio locutor.

No primeiro parágrafo, a expressão o discurso de sexta-feira define o texto de Rossi como um ato de fala construído sobre outro ato de fala, referido como de conhecimento do leitor. A posição de crítica, já marcada no título, é reiterada pela caracterização do discurso como

pobre politicamente e como segundo pecado mortal. Com o termo segundo, a categorização

se refere exclusivamente a elogio da mediocridade, mas pressupõe um primeiro pecado, que não é outro senão a pobreza política, marcada pelo operador argumentativo além de. Pobre,

pecado mortal, mediocridade: a seleção lexical modaliza o discurso do locutor-autor,

reiterando seu posicionamento enunciativo de crítica ao discurso de Lula. A expressão auto-

elogio aproxima-o ainda mais do discurso da Loucura, personagem da obra de Erasmo de

Rotterdam.

Para argumentar a favor do ponto de vista de que a realização do governo está aquém das promessas eleitorais, o locutor-autor faz uso da heterogeneidade mostrada e marcada, ou seja, faz saber ao leitor que se trata da representação do discurso de outro. Retoma os dados numéricos citados por Lula em seu discurso, usando-os como argumento para ridicularizar e, conseqüentemente, fragilizar o posicionamento enunciativo do presidente. No último enunciado do segundo parágrafo (Mesmo que os dados estejam corretos e não sejam mais um

caixa dois desse governo cheio de truques, ainda assim é um desempenho medíocre), o

locutor-autor encena uma possível dúvida do leitor (estarão os dados corretos ou serão um

caixa dois desse governo cheio de truques?), insinuando a possibilidade de que os números

citados estejam incorretos. Em seguida, usando os conectores concessivos mesmo que e ainda

assim, responde categoricamente a essa dúvida, afirmando que a mediocridade do governo de

Lula independe da resposta que se dê à questão. O articulador concessivo mesmo que e a forma negativa da segunda proposição apontam para o avesso do que é dito: os dados

numéricos podem estar incorretos e podem ser mais um caixa dois. A recontexualização irônica da expressão caixa dois lembra ao leitor que o discurso de Lula pode estar no campo de outras falsificações produzidas em seu governo.

No início do terceiro parágrafo, o operador argumentativo aliás (O metro para julgar a

mediocridade, aliás, é fornecido pelo próprio Lula, o candidato de 2002) corrige o rumo do

provável raciocínio do leitor, levando-o a considerar não a correção dos dados, mas um outro discurso de Lula, o discurso do candidato. Em suma, o locutor propõe que se comparem os dados numéricos de dois atos de fala de Lula, o do presidente e o do candidato a presidente, para sustentar a conclusão de que o presidente não está atendendo às necessidades que ele mesmo quantificou em suas promessas eleitorais.

Nos parágrafos subseqüentes, com evidente intenção retórica, o autor usa duas estratégias discursivas: a repetição da estrutura se... então e a analogia entre o desempenho de Lula na esfera governamental e o desempenho dos indivíduos em outras esferas de atividade mais próximas dos cidadãos comuns. O você, repetido várias vezes no texto, vai-se transfigurando em representação das diferentes categorias de brasileiros: o torcedor de futebol, o empresário, o estudante, o assalariado. O paralelismo estrutural, a representação do alocutário por meio do pronome você, o acúmulo de argumentos dirigidos a diferentes tipos de leitores e o destaque de cada frase pela paragrafação dão a essa passagem um tom de apelo e persuasão emocional. Nos dois últimos parágrafos, o locutor-autor abandona o paradigma eu—você e passa a falar em terceira pessoa, provocando um efeito de aparente distanciamento em relação ao que diz. Nesse segmento, faz uso novamente do dialogismo mostrado e marcado, ao representar a fala da senadora Heloísa Helena, introduzida pela expressão como diz x. Com esse recurso, assinala, com o aval da palavra de outro, que superar o Fernando Henrique Cardoso não seria critério confiável para se medir o sucesso do governo Lula. Os parênteses sinalizam que o segmento ou mais especificamente com FHC é de responsabilidade do autor do artigo, e não de Heloísa Helena, funcionando como uma correção do locutor ao ponto de vista dela.

O último parágrafo, introduzido pelo mas refutativo, articula dois argumentos antiorientados e introduz um conflito de falas. O segundo argumento (mas o país rejeitou esse

paradigma por dois terços dos votos em 2002) corresponde à proposição com a qual o locutor

se identifica, e representa uma refutação à escolha de Lula (escolha de um paradigma rejeitado por aqueles que o elegeram presidente), refutação justificada pelo enunciado seguinte, Votou pela mudança. Aqui, novo jogo de oposição se instaura entre votar pela

mediocridade. Com o enunciado Ganhou a mediocridade, que poderia ser também

introduzido por conector adversativo explícito, o locutor contrapõe a atitude de Lula à suposta expectativa de seus eleitores. E condena essa atitude com a expressão modalizadora final,

orgulhosa mediocridade, ou seja, mediocridade cega em relação a si mesma, sem consciência

da própria pequenez. Com a volta ao título, dá-se o acabamento do enunciado: percebemos que o locutor-autor disse tudo o que teria a dizer naquela enunciação.