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Condições de produção e gêneros de textos apresentados para leitura

2 Relações com a leitura e a escrita

4.1 Heterogeneidade, gênero e escrita

4.1.1 Condições de produção e gêneros de textos apresentados para leitura

No momento da execução da tarefa, os sujeitos receberam um pequeno caderno com as instruções e um conjunto de textos para leitura prévia: o discurso do Presidente Lula, reproduzido pelo jornal O Tempo na edição de 13 de agosto de 2005; um artigo de opinião, assinado por Clóvis Rossi e publicado em 14 de agosto na Folha de S. Paulo; dois conjuntos de frases, um publicado pelo jornal O Tempo também em 13 de agosto, sob o título “Repercussão” (frases de políticos favoráveis e contrários ao discurso de Lula) e outro pelo Jornal do Brasil, edição 13 ago. 2005, sob o título “Reação ao pronunciamento de Lula” (frases de cidadãos comuns e de representantes de entidades de classe, como a Associação Comercial, CUT etc.).

O material compreendia, além da folha de instrução, cerca de três laudas impressas e tinha como tema central o primeiro pronunciamento feito pelo presidente Lula em 12 de agosto de 2005, após a divulgação das denúncias do uso irregular de verbas públicas por ocupantes de cargos públicos e por membros de seu partido, o PT. Nas instruções, especificava-se o título do texto a ser produzido (Devemos acreditar em Lula?), o gênero (artigo de opinião), o suporte em que seria publicado (o mais importante jornal da cidade) e se definia como parte da tarefa inserir no enunciado, sob a forma de discurso relatado, citado ou glosado, pelo menos um dos pronunciamentos constantes dos textos apresentados para leitura. Buscou-se evitar o uso de termos técnicos nas instruções de produção (as expressões discurso citado ou discurso relatado, por exemplo, foram explicadas por meio de paráfrases) e facilitar a compreensão da tarefa, fazendo a leitura coletiva das instruções, acompanhada de explicações orais complementares (ver, no anexo 3, a reprodução do material apresentado aos sujeitos). Junto com o caderno de instruções, foram entregues duas folhas pautadas, uma para o rascunho e outra para a versão final, tendo sido solicitado aos sujeitos que não usassem borracha nem encobrissem as correções, mas reescrevessem as modificações acima, nas margens ou no verso do papel. A razão desta última solicitação relacionava-se à tentativa de identificar as operações realizadas pelos sujeitos durante ou imediatamente após a escrita do texto.

Além do bom desempenho em leitura, a tarefa exigia a interpretação da ação de linguagem requerida pela situação, o domínio das características do gênero e a habilidade de inserir, sob

a forma de citação ou de discurso relatado, pelo menos um dos pontos de vista presentes nos textos lidos. Na época, as controvérsias sobre o envolvimento do presidente nos episódios de desvio de verbas públicas estavam circulando amplamente nos meios de comunicação. Era de se esperar, pois, que os produtores tivessem conhecimentos prévios sobre a questão e estivessem mobilizados para posicionar-se frente a ela. O texto de Clóvis Rossi, um artigo de opinião, poderia ser tomado pelos sujeitos como referência para a produção do gênero de texto solicitado.

Um dos textos apresentados para leitura foi o discurso do presidente Lula, que, transmitido ao vivo pelas redes de televisão e reproduzido pelo jornal O Tempo no dia seguinte ao pronunciamento, tinha como destinatários não só os ministros de Estado que compunham o auditório imediato do presidente, mas toda a nação. Texto escrito para ser falado e compreendido por uma ampla audiência, seus enunciados trazem marcas das condições orais de produção no estilo e na dependência em relação à situação enunciativa: vocativos (meus amigos, minhas amigas), pronomes de primeira e segunda pessoa (Eu não

mudei; Quero dizer a vocês...), uso do imperativo (não percam a esperança.), expressões

nominais determinadas por possessivos e dêiticos temporais relativos ao momento da enunciação (nos últimos cinco anos, até o final do ano, hoje).

Ao mesmo tempo em que busca o apoio e a simpatia dos telespectadores, o discurso de Lula pretende alcançar o valor de verdade, não pela exposição de idéias ou pelo debate político, mas por seu estatuto pragmático e pela apresentação de dados estatísticos. Como assinala Maingueneau, embora oral, um discurso político transmitido pela televisão em cadeia nacional, além de comprometer o enunciador com o que diz, torna estável a fala, permitindo que “seja repetida quantas vezes se quiser e difundida quase instantaneamente no mundo inteiro” (MAINGUENEAU, 2004: 75).

Os outros gêneros de textos apresentados — um artigo de opinião e dois conjuntos de frases — caracterizam-se como espaços de circulação de discursos, nos quais os sujeitos de enunciação trabalham explicitamente com o já-dito. Tinham, pois, de ser lidos em função do discurso do Presidente e de outros discursos e acontecimentos emergentes na época.

Com relação ao que estamos chamando de gênero frase, vejamos como o caracteriza resumidamente Pedrosa em seu artigo “Frase”: caracterização do gênero e aplicação pedagógica:

Em resumo, ele [o gênero frase] é veiculado geralmente em revistas e jornais; apresenta uma estrutura composicional formada da ‘fala’ do locutor/autor mais o contexto do editor; os contextos

recuperados podem ser classificados (objetivo, atrelado e interpretativo); seu objetivo principal é o humor; é considerado como leitura de lazer; quanto ao aspecto temporal, as “Frases” podem ser situadas ou eternas; há uma preferência por locutores conhecidos e adultos; e é formado a partir de eventos comunicativos mais amplos.

PEDROSA, 2005: 162. Aplicam-se às frases apresentadas para leitura as características acima apontadas: a referência ao suporte de publicação (os jornais O Tempo e Folha de S. Paulo), a estrutura composicional formada pela fala dos locutores-autores mais o contexto criado, não diretamente pelo editor, mas reproduzido na montagem feita pela pesquisadora. Nos dois conjuntos de frases enunciadas, todas situadas temporalmente em relação a um evento comunicativo particular, o objetivo era oferecer ao leitor uma visão global das reações ao discurso do Presidente Lula, tanto por parte de figuras de destaque na cena política quanto de cidadãos comuns.

Destinado a circular no espaço público de comunicação da imprensa escrita, o gênero artigo de opinião tem como objeto de sentido um tema de interesse social, e como propósito responder a uma questão controversa, que condicionará, em grande parte, a mobilização dos conhecimentos de mundo a serem ativados na enunciação e na co-enunciação. O locutor, porta-voz do autor, tem o intuito de influenciar o pensamento dos destinatários previstos por meio da apresentação de argumentos convincentes. Como enuncia o texto de um lugar social (classe, instituição, grupo), identifica-se nominalmente e, em geral, apõe à sua assinatura marcas de sua identidade profissional e social. Apesar de aparentemente monologal ― no artigo de opinião, alguém se representa como locutor e fixa a outro(s) como destinatário(s), não havendo possibilidade de uma troca, pelo menos imediata, de papéis ―, o artigo de opinião é um gênero essencialmente dialógico: seu acabamento depende da habilidade do locutor de marcar, no seu dizer, tanto seu posicionamento frente à questão em debate, quanto em responder a posições diferentes da sua, representadas por refutações proferidas de fato ou passíveis de serem proferidas. Exige, pois, como marcas explícitas de acabamento a articulação de argumentos e conclusões, a contextualização e a definição do ponto de vista de enunciação. Os articuladores e marcadores (de justificação, refutação, concessão, ênfase, etc.) usados pelo locutor-autor na argumentação são índices textuais do dialogismo próprio do gênero e apontam para a intenção de fazer calar os discursos discordantes. São pistas de que o produtor toma o objeto em discussão como controverso e considera que há destinatários que não compartilham de suas opiniões.

Tradicionalmente, distinguem-se os gêneros notícia e artigo de opinião pelo objetivo comunicativo, pela posição do locutor frente ao que diz e pelo tipo textual predominante. A notícia busca fazer saber, respondendo às questões o quê? quem? quando? onde?, o que determina o predomínio do relato (tipo textual narrativo), o emprego de verbos no passado e em terceira pessoa. Em notícias mais desenvolvidas e em reportagens, gêneros de caráter mais explicativo, outras perguntas também são respondidas (como? por quê? e as conseqüências?). Já o artigo de opinião, que busca fazer valer a convicção de um enunciador, situa-se como um gênero de comentário, em que predomina a representação do locutor ou por meio do paradigma de primeira pessoa ou de marcas de modalização. Em artigo sobre o tema, para caracterizar o dialogismo nos dois gêneros, Dóris da Cunha retoma Moirand para quem “enquanto é característica do gênero notícia a busca de objetividade, razão pela qual o dialogismo é mostrado por meios lingüísticos e tipográficos, é característica do artigo de opinião construir-se como um discurso aparentemente monofônico, que traz implícita a polêmica com outros pontos de vista” (MOIRAND apud CUNHA, 2005: 170). A distinção acima é útil, com a ressalva de que consideremos que todo discurso, ainda que pretensamente neutro, é constitutivamente argumentativo. Não existe, de fato, neutralidade, mas busca de um efeito de sentido de neutralidade.