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Conceito de ampla significação e variada carga simbólica, refere-se aos mais diversos processos de ruptura e desconstrução territorial. Embora seus prefixos e seu radical apontem para três palavras diferentes, territo- rialização, desterritorialização e reterritorialização, o vocábulo hifenizado – des-re-territorialização – apresenta sentido próprio e único, resultante da relação semântica entre as palavras das quais se originou.

A compreensão do território enquanto código, atividade ou perma- nente tornar-se e desfazer-se e, portanto, como resultado do movimento de des-re-territorialização foi primeiramente apresentada por Gilles Deleuze e Félix Guattari e pensada para conceituar e esclarecer o modo de fun- cionamento da máquina capitalista mundial. É importante destacar que o vocábulo des-re-territorialização não se encontra grafado dessa maneira na bibliografia produzida por Deleuze e Guattari. Ambos os pensadores em- pregam as palavras desterritorialização e reterritorialização separadamente, para melhor enfatizar cada um dos dois mecanismos. Mas, para melhor definir o caráter concomitante de realização dos mesmos – afinal, a reterri- torialização acontece ao mesmo tempo e como consequência da desterrito- rialização –, preferimos reuni-los aqui em um único vocábulo.

Apesar de não estar vinculado a um contexto histórico-cultural es- pecífico, o uso de ambos os conceitos intensificou-se na pós-modernidade devido ao intenso processo de globalização das últimas décadas. Tornou-se importante por possibilitar uma alta capacidade interpretativa dos movi- mentos de deslocamento, ruptura e des-centramento e por apresentar-se como instrumento reflexivo ao mesmo tempo expansivo e aglutinador, ca- paz de conectar e atravessar as mais variadas áreas, tais como a filosofia, a geografia, a história, a economia, a política, a biologia, a sociologia, a antro- pologia e as artes de forma geral.

Estudioso da filosofia de Deleuze e Guattari, o geógrafo Rogério Haesbaert explica que a des-re-territorialização, ainda não com esse invólu- cro verbal, já havia sido pensada por Marx, que entendia o capitalismo como sistema que não para de “expandir seus próprios limites, reencontrando-os sempre numa escala ampliada, porque o limite é o próprio capital” (DE- LEUZE, 1992, p. 212). Apesar de terem sido reconhecidos como processos há algum tempo, os vocábulos – desterritorialização e reterritorialização, que aqui preferimos grafar como des-re-territorialização – ganharam maior visibilidade assim que Deleuze e Guattari publicaram O anti-Édipo e Mil

platôs, obras que promoveram intensa e inusitada análise sobre os atuais me-

canismos de i-mobilização.

A des-re-territorialização refere-se, portanto, a um movimento du- plo: um território é abandonado para imediatamente se refazer em outra dimensão. A ruptura é uma característica inerente a esse processo e pode ser tanto conceitual quanto virtual ou simbólica. O conceito não deve ser en- tendido reduzidamente como sendo estritamente antropocêntrico, em razão da perspectiva cosmológica na qual está fundamentada a filosofia de ambos os pensadores. Além disso, o vocábulo também deve ser pensado enquanto conceito que aglutina não apenas dois tipos de espacialidades – o dester- ritório e o reterritório, resultantes respectivamente da desterritorialização e da reterritorialização –, mas que está também associado a um terceiro tipo de espacialidade, ainda mais fundamental: o território. Portanto, faz-se necessário, antes de tudo, desmembrarmos o vocábulo para entendermos conceitualmente cada um dos três aspectos que o compõem.

Em seu significado mais superficial, um território, uma territorialida- de ou, ainda, um plano pode ser pensado enquanto uma espacialidade que a todo o momento é “atravessada, de um lado a outro, por linhas de fuga que dão prova da presença, nelas, de movimentos de desterritorialização e reter- ritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 71). Um território, “que não é um meio, [...] é de fato um ato, que afeta os meios e seus ritmos, que os ‘territorializa’”; “[...] é primeiramente a distância crítica entre dois seres de mesma espécie: marca suas distâncias. O que é meu é primeiramente minha distância, não possuo senão distâncias” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 120, 127). Em outras palavras, um território ou um plano “pode ser um princípio oculto, que dá a ver aquilo que se vê, a ouvir aquilo que se ouve [...]. Mas ele próprio, o plano, não é dado. Ele é oculto por natureza. Só se pode inferi-lo, induzi-lo, concluí-lo a partir daquilo que ele dá” (1997, p. 54).

A desterritorialização, por sua vez, diz respeito à descodificação, ao deslocamento, à desmontagem ou ao descolamento de determinado elemen- to, ideia ou mecanismo. Conforme explicam Deleuze e Guattari, “temos que pensar a desterritorialização como uma potência perfeitamente positiva, que possui seus graus e seus limiares e que é sempre relativa, tendo um re- verso, uma complementaridade na reterritorialização” (1995, p. 69). Ou seja, um organismo desterritorializado em relação ao exterior se reterritorializa necessariamente nos meios interiores.

O avesso complementar da desterritorialização – a reterritorialização – diz respeito aos movimentos de (re)codificação, (re)alocação, (re)monta- gem e (re)colagem, que transformam e reconfiguram prática e semantica- mente as espacialidades, sejam elas virtuais ou não.

O conceito de des-re-territorialização, portanto, pode variar seman- ticamente e alcançar múltiplas dimensões, de acordo com a área e a pers- pectiva pela qual é abordado. É possível distinguir pelo menos três grandes vertentes a partir das quais a des-re-territorialização é tratada: a econômica, a política e a simbólica ou cultural.

Do ponto de vista econômico, a des-re-territorialização se apresenta como o resultado da globalização econômica, na medida em que se constitui como “um mercado mundial com fluxos comerciais, financeiros e de infor- mações cada vez mais independentes de bases territoriais bem definidas” (HAESBAERT, 2012, p. 173-174). Nesse sentido, des-re-territorialização seria sinônimo de “‘deslocalização’, enfatizando o caráter ‘multilocacional’ das empresas, cada vez mais autônomas em relação às condições locais/ter- ritoriais de instalação” (p. 173-174).

Do ponto de vista político, a des-re-territorialização diz respeito a atividades de inscrição e monitoramento do fluxo civil imposto pelo Estado, que ao mesmo tempo destrói as territorialidades prévias e se apropria das comunidades, integrando-as como peças ou órgãos de produção na nova maquinaria de organização social. Conforme explicam Deleuze e Guattari, criando essa nova maquinaria civil e capturando todos os tipos de fluxos, o Estado tenta “extinguir o nomadismo, controlar as migrações e estabelecer uma zona de direitos sobre todo um exterior” (apud HAESBAERT, 2012, p. 198). Acompanhada, muitas vezes, de uma privatização dos espaços pú- blicos, tal ação política, segundo Haesbaert, “provoca a formação de novos territórios como comunidades do bairro seguro ou guetos voluntários – es- paços formados pela des-re-territorialização na imobilidade” (2012, p. 198). Culturalmente ou simbolicamente, des-re-territorialização diz res- peito à (des)locação, ao (des)centramento, à (des)construção, à fragmentação e à hibridização das identidades e dos significados. Não à toa, várias são as expressões que, a esse respeito, têm sido criadas para reconfigurar o espaço teórico e crítico: desprendimento cultural em relação a lugares específicos, culturas desterritorializadas, hibridismo cultural, não lugares, policentrismo da mancha urbana, comunidades transnacionais, desencantamento moder-

no do mundo, entre outras. Michel Maffesoli, que compreende a mudança com otimismo, acredita que esteja ocorrendo hoje uma espécie de proxemia, ou seja, um “reencantamento do mundo que tem como cimento principal uma emoção ou uma sensibilidade vivida em comum” (1978, p. 42).

De acordo com os criadores dos conceitos, Deleuze e Guattari, a desterritorialização e a reterritorialização não se referem apenas ao aspecto geográfico, temporal, político, econômico ou cultural, mas também, e prin- cipalmente, à maneira e à profundidade com que cada indivíduo se deixa atingir e capturar pelo processo ou à forma com que o utiliza ao criar sua própria linha de fuga e romper com os padrões e valores arcaicos de forma- ção identitária.

A linha de fuga, movimento inseparável da des-re-territorialização, não deve ser pensada enquanto estrutura que fecha um sistema para impedi -lo de funcionar. Pelo contrário, as linhas de fuga podem ser interrompidas, prolongadas ou retomadas, para que possam ativar ou criar novas armas, que serão usadas contra as armas do Estado. “De modo mais frequente, um gru- po, um indivíduo funciona ele mesmo como linha de fuga; ele a cria mais do que a segue, ele mesmo é a arma viva que ele forja, mais do que se apropria dela. As linhas de fuga são realidades” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 79) e “são imanentes ao campo social” (p. 80).

Deleuze e Guattari ressaltam ainda que

uma linha de fuga deve ser preservada para permitir ao animal voltar para seu meio associado quando aparecer o perigo [...] depois, uma se- gunda linha de fuga aparece quando o meio se acha transtornado sob os impactos do exterior, e o animal deve abandoná-lo para associar a si no- vas porções de exterioridade (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 71). As linhas de fuga, portanto, são construções flexíveis e fluxionais, que podem, a qualquer momento, ser reativadas ou abandonadas, através da des-re-territorialização.

Para entendermos o conceito em sua completude dinâmica podemos pensar, por exemplo, no famoso Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, já que nessa obra o protagonista, ao inaugurar um caminhar errante, desterri- torializa os locais por onde passa e as pessoas que encontra ao mesmo tempo que os reterritorializa, deslocando-os para o contexto imaginário das nove-

las de cavalaria. Já no século XX, no romance On the road, de Jack Kerouac, as personagens, especialmente Sal Paradise, vivem um intenso e contínuo movimento de des-re-territorialização, por não se deixarem fixar e por pro- moverem uma transgressão na tradicional ideia espaço-temporal construto- ra de identidades. Podemos citar ainda a obra Não entres tão depressa nesta

noite escura, do português António Lobo Antunes. O autor, ao iniciar seu

“poema”, apresenta-nos um impressionante mecanismo de criação altamente des-re-territorializador, pois inaugura uma escrita em fluxo que se expande em forma de um fragmentado e labiríntico devir, em torno do qual a perso- nagem tenta (re)constituir sua identidade.

Não devemos nos esquecer de Grande sertão: veredas, de João Gui- marães Rosa, e Água viva, de Clarice Lispector. No primeiro, é Riobaldo quem cria uma inusitada linha de fuga ao abandonar simbolicamente o es- paço-tempo de seu nascimento, para empreender uma radical e (re)novadora travessia em sua identidade. No romance de Clarice Lispector, por sua vez, a personagem promove o que, de acordo com a teoria de Deleuze e Guatta- ri, seria o mais alto grau de des-re-territorialização, já que parece alcançar uma total desindividualização. Ou seja, ela se desprende não apenas dos elementos espacial e temporal que a rodeiam, mas também e principalmente desconstrói o aspecto mais pessoal e, portanto, mais subjetivo de si.

Em suma, talvez o aspecto mais inusitado do conceito de des-re- territorialização esteja na compreensão do indivíduo não apenas como aque- le que se ajusta ou se deixa controlar por uma nacionalidade, determinada espacial e temporalmente, mas como aquele que se constitui como corpo territorial, afirmando-se enquanto seu próprio território.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, António Lobo. Não entres tão depressa nesta noite escura. Lisboa: Dom Quixote, 2000.

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. Tradução de Ernani Ssó. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2012.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esqui- zofrenia. V. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esqui- zofrenia. V. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1996.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esqui- zofrenia. V. 4. Tradução de Suely Rolnik: Editora 34, 1997.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e es- quizofrenia. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010. HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos ter- ritórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. KEROUAC, Jack. On the road (Pé na estrada). Tradução, introdução e posfácio de Eduardo Bueno. Porto Alegre: L&PM , 2011.

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-moder- nas. Tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Record, 2001.

ROSA, João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

Claudio Bergstein BELÉM DO PARÁ, 2012

DESVIO