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O termo “estrangeiro”, de saída, diz respeito a uma condição parti- cular do ser humano que se dá em relação às formas históricas de viver em sociedade. As primeiras entradas do buscador Google no Brasil, não por acaso, encenam o estatuto complexo do vocábulo e se dedicam a explicar o termo (wikis) e a defini-lo em função das regras do país: Estrangeiro – Portal da Polícia Federal; Ministério da Justiça. Estrangeiros são, nessa acepção, os que mantêm uma relação específica com uma comunidade, república ou Estado, regulamentada por direitos e deveres nacionais e transnacionais. Há diferentes tipos de estrangeiros: turistas, imigrantes/emigrantes, trabalha- dores, exilados, expatriados, refugiados e deslocados.

No entanto, o termo foi tornando-se conceito e metáfora de uma condição que abrange outras instâncias do sujeito no mundo moderno. O estrangeiro se movimenta entre o cidadão e o homem; entre o eu e o nós e o eles, entre os eus que habitam um nós e um eu; entre o que é familiar e o que é estranho. Por isso, a condição de estrangeiro assume problemas, graus e facetas diferenciadas.

A crítica búlgaro-francesa Julia Kristeva (n. 1941) dedicou-se a essa questão em sua obra Estrangeiros para nós mesmos (Etrangers à nous

-mêmes, 1988). O livro tornou-se um clássico não apenas pelo conteúdo da

revisão histórica sobre o conceito de estrangeiro, mas também por vislum- brar uma nova sensibilidade das modernidades tardias. Essa nova sensibi- lidade diz respeito aos contrapontos entre o pertencer a um lugar e a suas regras sociais e o deslocamento contínuo que diferentes pessoas vivenciam no mundo da aceleração dos tempos e do encurtamento das distâncias produzidos no contexto do esfacelamento da antiga União Soviética, dos processos de descolonização, novos nacionalismos, novas condições de trabalho e ascensão de tecnologias de transporte e comunicação. A pró- pria Kristeva, uma exilada na França, vai apontando a necessidade do ser humano de aprender a lidar com a condição de estrangeiro como uma experiência pela qual todos passam em algum momento. Essa experiência é uma fonte de reflexão sobre como, historicamente, fomos absorvendo a ideia do exterior como exterior a nós mesmos, sem pensarmos essa expe- riência como parte do próprio sujeito moderno. A autora visa uma política e uma ética de hospitalidade e de abertura ao que nos é diferente e inquie- tante, um horizonte para uma política e ética que religuem o homem ao cidadão e vice-versa.

A vida em sociedade desde os tempos de Abraão, dos gregos, dos cosmopolitas helenísticos, dos cosmopolitas iluministas e dos neokantianos até os nossos dias tem estimulado variados tratados, acordos, convenções e leis que interpretam e põem em crise a relação entre os homens e a cidada- nia, hierarquizando, expulsando e dominando aqueles aos quais não são ou- torgados os mesmos direitos dados aos considerados cidadãos. A vida polí- tica, no horizonte da civilização ocidental, tem produzido esse contraponto em diferentes graus, o que configura o grande pêndulo entre exterioridade e interioridade dentro do sujeito moderno.

A partir de meados do século XX e de modo mais acelerado na era da globalização, vai sendo colocada no plano da condição humana a pos- sibilidade de o estrangeiro ter algo a nos ensinar. Exemplo disso seria o incremento de políticas públicas transnacionais que enfatizam a inclusão, a diversidade e a diferença, e que atuam como barreira ideológica para supe- ração dos fundamentalismos. Apesar disso, a presença dos exilados, expa- triados, imigrantes/emigrantes, deslocados e refugiados continua a ser uma questão urgente e que mostra a fragilidade quando se pensa que a problemá- tica cidadão-homem está inscrita diretamente nos regulamentos das formas de produção e de controle da população e da mão de obra.

De lá pra cá, importantes intelectuais têm se dedicado a pensar a força positiva do conceito de estrangeiro. Em sintonia com as teses de Kristeva (1994), importantes contribuições desafiam as dicotomias exterior/interior, tramando lógicas mais amplas e suplementares, ratificando a importância do deslocamento, do estranhamento e da desterritorialização como fatores favoráveis para a consciência crítica. Pense-se, por exemplo, nas circuns- tâncias em que é escrito Mimese, com Auerbach em Istambul – refugiado judeu da Europa nazista –, circunstâncias enfatizadas por Said (2004, p. 16- 30), ele mesmo um deslocado; ou a própria noção de “fora” de Deleuze e Guattari (1995); ou mesmo o conceito de “hospitalidade” em Derrida (2003). Por outro viés, essas políticas intelectuais também dialogam com linhas de pensamento inscritas dentro das variadas formas sociais e culturais das Amé- ricas, propiciando convergências com as metáforas culturais, por exemplo, da antropofagia, dos processos de mescla, de entrelugar e de hibridização.

As relações entre o estrangeiro e o estranho podem ser compreen- didas tanto por aquilo que o outro traz e desperta quanto por aquilo que, posto em evidência, se desfamiliariza, tornando-se diferente. Sigmund

Freud, preocupado com as qualidades do sentir, observa, no seu ensaio “Das Unheimliche” (“O estranho”, 1919), que, no estado de sensibilidade do es- tranho, existe um núcleo especial que o particulariza no que é amedronta- dor, mas também o relaciona ao que é familiar (Heimlich). No seu estudo, explica que o estranho é uma categoria do assustador relacionada ao retorno daquilo que fora reprimido ou suprimido. Nesse sentido, não seria algo tão alheio ao sujeito, mas sim uma inscrição disruptiva da diferença em nós mesmos que, enclausurada no inconsciente por diversos motivos e em de- terminadas circunstâncias, pode vir à tona e causar o estado de estranheza. Aquilo que veio à luz, que forma parte do sujeito de forma inconsciente e o perturba é estudado por Freud a partir da reflexão psicanalítica sobre o conto “O homem de areia” de E. T. A. Hoffman, assim como do fenômeno do “duplo” (e sua relação com os espelhos) no Elixir do diabo, também de Hoffman, entre outros textos literários.

O referido ensaio de Freud, que começou a ser redigido em 1913, dialoga, em nossa leitura, com outro ensaio, A arte como procedimento, do formalista russo Viktor Chklovski, de 1917. Nele, o autor, ao desenvolver a ideia de procedimento (artifício, técnica), estabelece a forma de proce- dimento por antonomásia da arte moderna, a Ostranenie (do russo: estra- nhamento). A arte moderna teria como função a desautomatização, des- familiarização e singularização dos objetos, dos sujeitos e da linguagem, produzindo distanciamento e novas visões do que já é conhecido para fazer mais perceptíveis e críticos os materiais e conteúdos da vida. Esse ensaio de Chklovski (1971) é seminal dentro da crítica de arte, como forma de produ- ção do artista e como mentalidade.

Richard Sennet (1995) argumenta que, quando em 1848 se pro- duzem várias correntes que instauram os nacionalismos culturais, tendo Herder e Vico como os intelectuais mais representativos, o sujeito cosmo- polita – o cidadão universal dos direitos do homem da Revolução Francesa – sofre um grande impacto ao ser interpelado pelo costume, pela língua e outros elementos étnicos, ao serem contrapostas as imagens do nativo e do estrangeiro. Tais imagens eram reinstauradas após um século da construção do que seria o bom e “autêntico” selvagem pelo pensador francês Jean-Ja- cques Rousseau. Sennet observa, por sua vez, a semelhança histórica entre os sucessos de Paris e da Europa Central e os acontecimentos que levaram à queda da URSS no ano de 1989 ao colocarem em cena as dificuldades gera-

das por agendas políticas, nas quais questões de índole cultural e identitária pressionavam as civis e institucionais. É por isso que o historiador cultural vê, a partir dos eventos de 1848, o surgimento da condição do estrangeiro como um sujeito que sofre e que, ao mesmo tempo, se transforma em con- ceito de potência crítica, que permanece sintetizado na figura do espelho, tão cara na cultura ocidental e no trabalho do artista.

A especificidade do olhar de Sennet recai muitas vezes na con- dição do exílio, entendida também de forma metafórica. Edward Said (2003, p. 46), por exemplo, reflete sobre o estrangeiro enquanto exilado, figura na qual se delineiam a angústia, “a fratura incurável” e a originali- dade de uma visão exatamente por estar deslocada. Entre as pátrias pro- visórias e as pátrias que aprisionam, o autor encontra nessa condição de estrangeiridade a inquietação e a vigilância crítica como marcas políticas e históricas do deslocamento.

Sennet (1995) traz para a discussão sobre o estrangeiro algumas pin- turas de Manet, em especial “Um bar no Folies-Bergère” (1881-1882) e suas alterações ópticas, como formas da interpelação social. Kristeva, por sua vez, analisa, entre outras obras, o romance, já clássico do cânone europeu, O

estrangeiro (1942) de Albert Camus, interpretando o lugar do protagonista

Mersault como o do estrangeiro “que não poderia fundar um mundo novo” (KRISTEVA, 1994, p. 36) por não manifestar o desejo de laços sociais e por mostrar uma indiferença anestesiada, que levaria “ao extremo a dis- sociação do desarraigado” (1994, p. 35). Kristeva enfatiza, também, que é a escrita “neutra” do romance, entrelaçada aos atos do protagonista, que perturba o leitor e vai produzir “essa lucidez ‘à parte’ que as comunidades tentam suprimir” (1994, p. 34).

As formas que refletem os espelhos, a questão do duplo, as metáforas do exilado, entre outras, criam um processo de distância crítica, perturba- dora – estranha – e transformadora, do eu e da relação do homem com seus outros “externos”, já, então, vivenciados como internos. Dentro das literaturas do continente, acredito que o primeiro romance de Graciliano Ramos, Cae-

tés (1933), seja exemplar para a compreensão da força de interpelação social

implicada na experiência de se sentir estrangeiro de si mesmo e do mundo. O protagonista e narrador João Valério, para seduzir uma mulher, começa a escrever um livro sobre os caetés – ou seja, sobre “os outros”. No entanto, isso o deixará imerso numa grande crise existencial que o levará a quase gritar:

Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? [...] E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté? [...] Que semelhança não haverá entre mim e eles! Por que procurei os brutos de 1556 para personagens de uma novela que nunca pude acabar? (RAMOS, 1961, p. 266-268) Podemos dizer que, a partir da segunda metade do século XIX, o termo “estrangeiro” começa a formar parte do campo semântico do deslo- camento, enquanto figura crítica, ela mesma perturbadora, que ressignifica constantemente as questões da alteridade, das políticas de pertencimento, mobilidade territorial e identificação. Se depois da Segunda Guerra Mun- dial incrementa-se a reflexão sobre a positividade do estrangeiro enquanto ser humano e cidadão e têm sido fortalecidas as políticas de inclusão, neste novo milênio podemos pensar, com García Canclini, que as novas articu- lações entre o próprio e o alheio estão sendo constantemente redefinidas a partir das tecnologias de comunicação. Essas novas articulações, em parte, estariam gerando inusitadas formas de agir e de imaginar que, sobretudo no que tange às artes, contribuem para repensar a cultura local e, ao mesmo tempo, para refletir sobre a possibilidade de irmos nos “desestrangeirizan- do”, possibilidade que vai sendo construída em função de “conhecimentos, obras e performances a partir de uma variedade de situações em que a pró- pria condição é vivenciada e pensada como parte de circuitos globalizados” (GARCÍA CANCLINI, 2009, p. 8-9).

REFERÊNCIAS

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SAID, Edward. El mundo, el texto y el crítico. Tradução de Ricardo Gar- cía Pérez. Buenos Aires: Debate, 2004.

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SENNETT, Richard. El extranjero. Punto de Vista: Revista de Cultura, Buenos Aires, v. XVIII, n. 51, p. 38- 48, abr. 1995.

Claudio Bergstein ALTIPLANO, BOLÍVIA, 2000

EXÍLIO