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O tema relativo à imagem do flâneur e da flânerie tem sido comu- mente visitado tanto pela literatura quanto pela filosofia (e, por vezes, pela história). Walter Benjamin (2000), em seus ensaios sobre Charles Baude- laire, trouxe à tona diversos tipos que ganhavam as ruas da Paris do século XIX, tais como o folhetinista, o trapeiro, o dândi, a prostituta e, com mais força que os outros, a figura-chave de “Paris do Segundo Império”. Nas palavras de Bernardo B. C. de Oliveira:

Trata-se da famosa figura do flâneur, cujas nuances ocupam a maior par- cela do ensaio. “O Flâneur”: este nome identifica um tipo, ou antes, uma prática, que esteve em moda no Séc. XIX, a de flanar pelas ruas, teste- munhando o fascínio exercido por uma nova experiência: a de olhar para tudo e para todos com minuciosa curiosidade (OLIVEIRA, 2006, p. 58). Buscando exemplificar com imagens que autores erigiram em torno do flâneur, Benjamin reproduz as seguintes palavras do poeta francês:

Para o perfeito flâneur... é um prazer imenso decidir morar na massa, no ondulante... Estar fora de casa; e, no entanto, se sentir em casa em toda parte; ver o mundo, estar no centro do mundo e ficar escondido no mundo, tais são alguns dos menores prazeres desses espíritos inde- pendentes, apaixonados, imparciais (!) que a língua só pode definir ina- bilmente. O observador é um príncipe que, por toda parte, usufrui de seu incógnito... O amoroso da vida universal entra na multidão como se em um imenso reservatório de eletricidade (BAUDELAIRE, apud BENJAMIN, 2000, p. 221).

Em seu trajeto pelos ensaios benjaminianos, o flâneur vai assumindo variados contornos. Apesar do conhecido gosto por andanças pela cidade, o pensador alemão ressalta a diferença do transeunte, que se imiscui em meio à multidão, em relação ao flâneur, que é aquele que necessita do espaço livre e não quer perder a privacidade (BENJAMIN, 2000, p. 50). Uma das contradições dessa figura, segundo as palavras de Benjamin, forma-se desta maneira: “Dialética da flânerie: por um lado, o homem se sente olhado por tudo e por todos, simplesmente o suspeito; por outro, o totalmente insondá- vel, o escondido” (2000, p. 190).

Logo no início de seu ensaio “O Flâneur”, Benjamin comenta sobre uma certa direção que pode ser tomada por esse tipo:

A rua conduz o flanador a um tempo desaparecido. Para ele, todas são íngremes. Conduzem para baixo, se não para as mães, para um passa- do que pode ser tanto mais enfeitiçante na medida em que não é o seu próprio, o particular. Contudo, este permanece sempre o tempo de uma infância (BENJAMIN, 2000, p. 185).

Benjamin destacou como o desenvolvimento de Paris deixou marcas sobre o poeta Baudelaire e sua obra, em especial devido aos choques por que passava o indivíduo nas galerias da cidade, uma vez que ele – o indivíduo parisiense – encontra “cruzamentos perigosos, inervações fazem-no estre- mecer em rápidas sequências, como descargas de uma bateria” (2000, p. 124)1. Com o passar do tempo, tornou-se comum aproximar a imagem do

detetive à do flâneur, conforme aponta Benjamin:

Em tempos de terror, quando cada qual tem em si algo do conspirador, o papel do detetive pode também ser desempenhado. Para tal a flânerie oferece as melhores perspectivas. [...] Desse modo, se o flâneur se torna sem querer detetive, socialmente a transformação lhe assenta muito bem, pois justifica a sua ociosidade. Sua indolência é apenas aparente. Nela se esconde a vigilância de um observador que não perde de vista o malfeitor (BENJAMIN, 2000, p. 38).

Entretanto, com o decorrer da história da literatura – e principal- mente com as mudanças que veio sofrendo o romance policial como gênero –, emergiu a figura do flâneur-criminoso, como se pode destacar, por exem- plo, na obra de Rubem Fonseca, conforme explana Fabíola Padilha:

Gestado a partir de uma longa filiação que inclui as mais diversas categorias de personagens cujo cenário é a metrópole efervescente, o flâneur transmu- 1 Vale mencionar que, não muito distante geograficamente, na Inglaterra, que também passou por profundas transformações sociais e econômicas desde o século XVIII – e em es- pecial no XIX –, já havia um exemplar do flâneur parisiense representado pelo personagem londrino de “O homem da multidão” (1844), do norte-americano Edgar Allan Poe.

ta-se em nuances variadas, atestadas desde Baudelaire e Poe, passando por João do Rio e Lima Barreto, [...] até encontrar sua feição mais recente em Rubem Fonseca, desdobrada no conto “O Cobrador”, surgindo como uma forma híbrida de andarilho e criminoso (PADILHA, 2007, p. 115-116). O prosseguimento do movimento progressista, sensível na história moderna, ocasionou o declínio das sensações individuais, além de proporcio- nar o ocaso da flânerie, cujo lugar foi ocupado pelo basbaque2. No entanto, al-

guns artistas, cientes de sua individualidade, atravessam “a cidade distraídos, perdidos em pensamentos ou preocupações”. E é destes, como salienta Ben- jamin, que vêm as “descrições reveladoras da cidade grande” (2000, p. 69).

Na contemporaneidade, após intensos movimentos de globalização, de mídia e de desenvolvimento de mercado, que alteraram radicalmente a relação entre consumidor e produto, o que eram as galerias para o flâneur parisiense tornam-se os largos e labirínticos corredores dos shopping centers, cuja arquitetura – desde os pisos, que são propositalmente lisos para que a caminhada seja mais lenta a fim de que as vitrines sejam observadas, o fechamento à luz natural, que induz as pessoas a perderem a noção do tem- po gasto, e até a complexa rede para o entretenimento familiar – pretende manter o consumidor por maior período vagando por suas dependências.

Entretanto, não é possível colocar ingenuamente, lado a lado, o flâ-

neur da Paris do século XIX com o sujeito do século XXI. Como lembra

García Canclini, as situações são distintas: “Já não é possível a experiência da ordem que o flâneur esperava estabelecer ao passear pela metrópole do início do século. Agora a cidade é como um videoclip: montagem eferves- cente de imagens descontínuas” (1999, p. 155). Nesse sentido, o percurso pela cidade do século XXI – seja dentro, seja fora de um shopping center – se dá em meio a um imenso fluxo de interações com objetos e produtos – e não apenas com outras pessoas – que massificam e rotulam como potencial con- sumidor o sujeito que caminha, adestrando-o e tornando-o apenas mais um elemento na complexa cadeia que alimenta o mercado capitalista.

2 “Não se deve confundir o flâneur com o basbaque; existe aí uma nuance a se considerar... O simples flâneur está sempre em plena posse de sua individualidade; a do basbaque, ao contrário, desaparece. Foi absorvida pelo mundo exterior...; este o inebria até o esquecimento de si mesmo. Sob a influência do espetáculo que se oferece a ele, o basbaque se torna um ser impessoal; já não é um ser humano; é o público, é a multidão” (FOURNEL, apud BENJAMIN, 2000, p. 69).

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalis- mo. Tradução de José Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2000. (Obras escolhidas III).

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos: conflitos mul- ticulturais da globalização. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. OLIVEIRA, Bernardo Barros Coelho de. Olhar e narrativa: leituras ben- jaminianas. Vitória: Edufes, 2006.

PADILHA, Fabíola. A cidade tomada e a ficção em dobras na obra de Rubem Fonseca. Vitória: Flor&Cultura, 2007.

FRONTEIRA