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Jacqueline Laranja Leal Marcelino

Segundo Chevalier e Gheerbrandt (1991), a importância simbólica da encruzilhada é universal. Através dos tempos, este vocábulo tem sido empregado com forte conotação simbólica seja na mitologia grega, no paga- nismo romano, nos cultos afro-brasileiros ou nas tradições indígenas ame- ricanas. É recorrente o uso do termo como “um lugar sagrado”, espaço onde certos deuses residem na intersecção de dois mundos, um entrelugar onde não se pode ficar para sempre. Os mencionados autores acrescentam que encruzilhada pode ter ainda a conotação de local de encontro com o desti- no, citando o mito de que foi em uma encruzilhada que Édipo encontrou e matou seu pai, Laio, dando início à sua tragédia.

Grimal (1997) descreve a encruzilhada como lugar propício à magia e cita Hécate como a feiticeira que preside esse espaço. Menciona ainda que, na Antiguidade, havia a tradição de se erguer nas encruzilhadas uma estátua em homenagem a essa divindade, sob a forma de uma mulher com três corpos ou então com três cabeças, olhando em três direções como se estivesse dividida sobre qual caminho escolher. Junto a essas estátuas se colocavam oferendas.

Cascudo (1972) indica que uma encruzilhada é onde os caminhos se cruzam, mas privilegia o sentido de local dos demônios e dos deuses noturnos, sinistros e misteriosos, invocados por súplicas insistentes, pre- ces ou magia. Este autor menciona que, na literatura, uma encruzilhada é frequentemente apresentada como local de encontro com forças ocultas ou com o próprio demônio, sem mencionar exemplos. Para ilustrar o sentido de encruzilhada descrito por Cascudo, destacamos, em Grande sertão: veredas, o momento em que o jagunço João Bugre relata como seria o ritual de fazer o pacto com o diabo, tema recorrente na obra.

Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma encruzilhada, e chama forte- mente o Cujo – e espera. Se sendo, há-de que vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. [...] E o dito – o Coxo – toma espécie, se forma! Carece de se conservar coragem. Se assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito mais depois (ROSA, 1994, p. 61).

Podemos constatar que o local de invocação é obrigatoriamente uma encruzilhada. Além deste exemplo, na mesma obra, destacamos que o per-

sonagem Riobaldo também se refere às encruzilhadas como lugares temi- dos: “No meio do cerrado, ah, no meio do cerrado, para a gente dividir de lá ir, por uma ou por outra, se via uma encruzilhada. Agouro? Eu creio no temor de certos pontos” (ROSA, 1994, p. 572). Riobaldo admite o medo em certos pontos e considera a encruzilhada como um lugar temido por implicar escolhas e consequências.

A concepção das encruzilhadas como lugares temidos também está presente na obra Dangerous Crossroads [Encruzilhada Perigosa] de George Lipsitz (1994). O autor destaca o álbum e música homônimos Kalfou Dan-

jere [Encruzilhada perigosa], com letra em dialeto francês do Haiti, lança-

dos pela banda haitiana Boukman Eksperyans. A letra foi pensada como instrumento de transformação social a partir da ressignificação do termo encruzilhada, que, na música “Kalfou Danjere”,

invocava espíritos ancestrais, forças naturais, divindades menores e o Ser Supremo para agourar um perigoso futuro para aqueles que abu- sassem do povo haitiano. Ao prever perigo na encruzilhada, a música destacava um lugar de crucial importância no folclore africano e na arte vodu caribenha. Colisões ocorrem nas encruzilhadas, decisões têm que ser tomadas lá. Mas a encruzilhada pode proporcionar uma perspectiva única, um ponto privilegiado onde se pode ver mais do que em apenas uma direção (LIPSITZ, 1994, p. 7, tradução nossa).

A música destacada foi censurada pelo governo haitiano e proibida de ser tocada nas rádios, mas mesmo assim a banda Boukman Eksperyans e o movimento insurgente por ela inspirado ressignificaram a arte vodu. Ela deixou de ser vista como instrumento de repressão do Estado e passou a ser considerada como arma de poder popular, comprovando-se a mudança na forma como elementos culturais podem ser apropriados em perspectivas diferentes a partir de um mesmo ponto de intersecção.

A concepção de encruzilhada como intersecção múltipla também é utilizada para descrever complexos entrelaçamentos na terra ou no mar e pontos de cruzamento entre diversas rotas marítimas. Peter Hulme (1986), por exemplo, comenta o trajeto da viagem marítima de Robinson Crusoé, enfatizando que Crusoé desejava chegar ao Caribe, ponto da América onde passam os navios vindos da Europa para o Brasil. Segundo Hulme,

Crusoé revive assim um percurso de exploração central do colonialismo, já que o Caribe é “a encruzilhada das rotas comerciais coloniais” (1986, p. 185, tradução nossa).

A escritora chicana Gloria Anzaldúa (2005) também ressignifica e privilegia o aspecto positivo da encruzilhada. Partindo desse termo, ela descreve a expansão da consciência mestiça na história do feminismo: “La

mestiza deixou de ser o bode expiatório para se tornar a sacerdotisa de maior

respeito nas encruzilhadas.” Anzaldúa reconhece que a circunstância de conviver com as contradições e ambiguidades levou a nova mestiça a desen- volver habilidades de tolerância, o que a fez aprender a ser índia na cultura mexicana e a ser mexicana do ponto de vista anglo-americano, conseguindo equilibrar as culturas com que convive. Por apresentar uma personalidade plural, é capaz e hábil para lidar com o bom e o ruim e nada é posto de lado, além de sustentar contradições e ser flexível para tomar a ambivalência como caminho entre culturas.

Anzaldúa (2005) propôs essa noção de “consciência mestiça” relacio- nando-a ao conceito de fronteira a partir da questão geográfica, e expandin- do para fronteiras metafóricas como as de raça, classe, gênero, entre outras. Para essa autora, ao transgredir tais fronteiras chegaremos a um entrelugar ou terceira margem. Nessa perspectiva, Anzaldúa desconstrói o conceito de fronteira como limite fixo e estático e o toma como lugar de fluidez, fluxos e trânsito, ressignificando-o como uma encruzilhada para quem nela habita. Nessa fronteira/encruzilhada vive a nova mestiça, atenta às suas múltiplas identidades e possibilidades de autofragmentação para sobreviver e se impor nas diferentes circunstâncias.

Indo além do plano terreno, Berns (1995) acrescenta que, na concep- ção de Stout, a encruzilhada significa um lugar metafórico de intersecção entre a terra dos vivos e a terra dos mortos. Berns ilustra essa interpreta- ção referindo-se ao famoso cantor e guitarrista de blues: “reza a lenda que Robert Johnson conquistou sua genialidade musical em uma encruzilhada” (1995, p. 36). A autora reconhece que esse conceito de encruzilhada é o tema norteador do projeto da artista plástica afro-americana na composição da instalação que recebeu como título a frase “Dear Robert, I’ll see you at the

crossroads” (“Querido Robert, vejo você na encruzilhada”). Esta promessa

pode ser lida no final da carta ficcional escrita por Renée Stout a Robert Johnson, incluída na mostra. Stout com frequência recorria à narrativa na

composição de sua arte. Robert Johnson (1911-1938) é considerado o maior cantor de blues de todos os tempos e, devido a seu estilo diferente e ao reco- nhecimento dos companheiros músicos, surgiu a lenda de que ele teria feito um pacto com o diabo em troca de sua habilidade excepcional de cantar e tocar blues. Berns acrescenta:

Existem outras estórias similares de músicos que vão até uma encruzi- lhada ao soar meia-noite, para que suas guitarras sejam afinadas pelo demônio (ou por um grande homem negro) a fim de melhorar suas ha- bilidades e poderes. Este demônio, que frequentemente é mencionado nestes encontros, deve ser Exu Elegba (BERNS, 1995, p. 36).

Lipsitz (2009) esclarece que o trapaceiro na encruzilhada, geralmen- te interpretado como demônio na tradição romântica, é realmente Exu, uma divindade imprevisível que tem o poder de fazer as coisas acontecerem. Se, por um lado, é mais coerente achar que a maestria em tocar guitarra se deu através da prática, Lipsitz adverte que a metáfora da encruzilhada não pode ser desprezada, uma vez que ela representa a forma como os afro-america- nos (parentes, amigos e fãs de Robert Johnson) interpretaram a fama do seu ídolo a partir de suas experiências e crenças de matriz africana.

A encruzilhada, portanto, pode apresentar sentidos complementa- res ou antagônicos. Pode definir um lugar privilegiado, sagrado e desejado, como pode indicar um local fatídico e temido. Pode ser um espaço de invo- cação de deuses sinistros ou de tomadas de decisões. Um entrelugar que su- gere fluidez, onde não se pode permanecer para sempre e que, pelo fluxo das vias que se cruzam, promove o convívio com a diversidade. A interpretação dessa interseção múltipla sempre vai depender da perspectiva de quem nela se encontra, de quem está à sua procura, ou de quem a descreve.

REFERÊNCIAS

ANZALDÚA, Gloria. La conciencia de la mestiza/rumo a uma nova cons- ciência. Tradução de A. C. Acioli Lima; revisão de S. Bornéo Funck. Re- vista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 3, p. 704-719, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S- 0104-026X2005000300015&lng =en&nrm=iso>. Acesso em: 28 abr. 2013.

BERNS, Marla C. “Dear Robert, I’ll see you at the crossroads”: a project by Renée Stout. Santa Barbara: University of California Art Museum, 1995. ENCRUZILHADA. In: CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 3. ed. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972. p. 353.

ENCRUZILHADA. In: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 5. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1991. p. 367- 370.

HÉCATE. Encruzilhada. In: GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 193. HULME, Peter. Colonial encounters: Europe and the native Caribbean, 1492-1797. London: Methuen, 1986.

LIPSITZ, George. Dangerous crossroads: popular music, postmodernism and the poetics of place. London: Verso, 1994.

LIPSITZ, George. The possessive investment in whiteness: how white people profit from identity politics. Philadelphia: Temple University Press, 2009.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

ENTRELUGAR, LIMINARIDADE,