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VER : Des-re-territorialização · Estado-Nação · Fronteira · Globalização · Lugar · Nômade · Pós-Colonialismo · Zona de Contato.

* A origem desse verbete está no artigo intitulado “Entre-lugar”, publicado em Conceitos de literatura e cultura, obra organizada por Eurídice Figueiredo em 2005, reeditada em 2013.

Désormais le temps de l’ailleurs, de l’entre trois langues, de l’entre-deux alphabets, de l’entre-deux mers, de l’entre-deux mondes, l’entre deux logiques, l’entre deux nostalgies1.

Régine Robin, La québécoite (1993, p. 69)

Falar em entrelugar, liminaridade, terceiro espaço, entre outras va- riantes terminológicas, para designar as “zonas” criadas pelos descentra- mentos e pela debilitação dos esquemas cristalizados de unidade, pureza e autenticidade, é deslocar referências, sobretudo as atribuídas à cultura euro- peia, e testemunhar a heterogeneidade das culturas nacionais, notadamente no contexto das Américas.

Há cada vez menos fronteiras no mundo; não existe mais diferença nem mesmo entre o universo real e o virtual. Este espaço novo, intersticial, provê e promove estratégias de resistência e desenvolvimento, que se des- tacam no âmbito da literatura e da cultura, para apontar para uma estética textual híbrida, podendo comportar a autobiografia, a ficção, entre outros gêneros que se imbricam, concretizando o também denominado hors lieu: lugar de encontro entre o real e o imaginário, espaço intervalar favorável a todas as experimentações.

Para Walter Mignolo, nesses espaços in between, surgidos com a co- lonização, é que aparecem e se desenvolvem novas formas de pensamento, cuja vitalidade reside na aptidão em transformar e criticar o que as duas heranças, a ocidental e a ameríndia, têm de pretensamente autêntico (apud GRUZINSKI, 1999, p. 43). Ao se tentar referenciar e categorizar essas no- vas “zonas”, vem à imaginação a ideia de um terreno movediço de trocas e mudanças, nunca fixo, ideia que tem por objetivo abalar ou ultrapassar as oposições binárias insinuadas nos “‘sistemas de pensamento’ e nos ‘pensa- mentos de sistema’” (BERND, 1998, p. 193).

Silviano Santiago, no ensaio “O entre-lugar do discurso latino-ame- ricano”, bem definiu, nos anos 1970, quando vivia nos Estados Unidos, esse espaço intermediário e paradoxal. O ensaísta, poeta e romancista discute 1 “De agora em diante o tempo do alhures, do entre três línguas, do entre-dois alfabetos, do en- tre-dois mares, do entre-dois mundos, entre duas lógicas, entre duas nostalgias” (tradução nossa).

nesse texto seminal o lugar que ocupa o discurso literário brasileiro e ame- ricano em confronto com o europeu, questiona o que é produzir cultura e literatura em província ultramarina, para, por fim, analisar as relações entre as duas civilizações, estranhas uma à outra, cujos primeiros encontros situ- aram-se no nível da ignorância mútua. Para S. Santiago, é no renascimento colonialista que se encontra a origem de uma nova sociedade, mestiça, cuja principal característica é a reviravolta que sofre a noção de unidade e pureza, contaminada em favor de uma mistura sutil e complexa que ocorre entre o elemento europeu e o autóctone, mistura associada à infiltração progressiva efetuada pelo pensamento selvagem, que leva à abertura do único caminho possível para a descolonização (SANTIAGO, 2000, p. 15).

A situação de liminaridade, de estar betwixt and between, também é explorada por Roberto DaMatta em Universo do carnaval: imagens e reflexões (1981). O antropólogo invoca o momento especial do carnaval demarcado pela festa que faculta “entrar” em um bloco, escola ou cordão com o propó- sito de relativizar velhas e rotineiras relações e experimentar novas iden- tidades propiciadoras de leituras inovadoras do mundo. Esse universo do carnaval permite ainda adquirir – tal qual acontece com os sábios, anacore- tas, xamãs, feiticeiros – conhecimento novo e diferenciado da sociedade e de si próprio. DaMatta pergunta-se como tomar o limiar e o paradoxal como negativos em sistemas relacionais, a exemplo do Brasil, sociedade composta por espaços múltiplos, onde uma verdadeira “institucionalização do inter- mediário” – modo fundamental e ainda incompreendido de sociabilidade – é fato social corriqueiro. Pergunta-se ele ainda:

Como ter horror ao intermediário e ao misturado, se pontos críticos de nossa sociabilidade são constituídos por tipos liminares como o mulato, o cafuzo e o mameluco (no nosso sistema de classificação racial); o des- pachante (no sistema burocrático); a(o) amante (no sistema amoroso); o(a) santo(a), o orixá, o “espírito” e o purgatório (no sistema religioso); a reza, o pedido, a cantada, a música popular, a serenata (no sistema de mediação que permeia o cotidiano); a varanda, o quintal, a praça, o adro e a praia (no sistema espacial); o “jeitinho”, o “sabe com quem está falando?” e o “pistolão” (nos modos de lidar com o conflito engendrado pelo encontro de leis impessoais com o prestígio e o poder pessoal); a fei- joada, a peixada e o cozido, comidas rigorosamente intermediárias (entre

o sólido e o líquido) no sistema culinário; a bolina e a “sacanagem” (no sistema sexual). Isso para não falar das celebridades inter, trans, homo ou pansexuais, que, entre nós, não são objeto de horror ou abominação (como ocorre nos Estados Unidos), mas de desejo, curiosidade, fascina- ção e admiração (DAMATTA, 2000, p. 14).

Isso levou o antropólogo e nos leva a repensar o ambíguo enquanto estado axiomaticamente negativo. A liminaridade é usada nesse caso para distinguir situações fronteiriças ou limítrofes. Ela torna o “estranho” fami- liar, e vice-versa, mas revela, sobretudo, o que são o “estranhável” e o “fami- liarizável”, isto é, revela a norma. E é nas margens que a norma é ilustrada, visibilizada. Nelas, os hábitos são esclarecidos e o próprio inconsciente é posto em questão: daí surgirem símbolos desse “efeito de borda”, em notável proliferação, levando-nos a comprovar quão prolíficas são as margens!

Assim como outras disciplinas em suas práticas transdisciplinares, a literatura reúne igualmente, por sua vez, forças prolíficas e opostas para fun- cionar como território-rede, formado de lugares contíguos, espacialmente descontínuos, mas conectados e articulados entre si. A literatura opera a partir da articulação complexa com distintos territórios-zona, os quais re- fletem tradições teórico-metodológicas não só diversas, mas multifacetadas e/ou concorrentes, tanto no campo epistemológico quanto no institucional acadêmico (SIGNORINI, 2004, p. 108). Isso significa conceber a literatura enquanto território da fluidez dos movimentos por entre diferentes domí- nios disciplinares.

Para o antropólogo argentino García Canclini, em Culturas híbridas:

estratégias para entrar e sair da modernidade (2008), a oposição abrupta entre

o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo não funciona mais. Abole-se a concepção de que o mundo da cultura é dividido em camadas, a fim de averiguar se a hibridação dessas categorias pode ser compreendida com as ferramentas das disciplinas que as estudam isoladamente.

Em um mundo que diminui cada vez mais, intelectuais como García Canclini, Silviano Santiago, Roberto DaMatta, Homi K. Bhabha, Édouard Glissant, Mary Louise Pratt, Alberto Moreiras, Zilá Bernd, Sandra Pesa- vento, Walter Mignolo e Serge Gruzinski exploram essas escalas ou zonas criadas pelos descentramentos cosmopolitas, empregando denominações variadas e fecundas para remeter à ideia de fronteiras porosas e moventes,

“desenquadradas” e livres de pertenças, diferentes das fronteiras de ordem legal, que não participam do literário.

Em tempo de fragilização das singularidades locais, não se trata de escolher uma via ou outra, mas de reconhecer uma multiplicidade de percepções: entrelugar (Santiago), liminaridade (DaMatta), tercer espacio (Moreiras), espaço intersticial (Bhabha), lugar intervalar (Glissant), zona de contato (Pratt), caminho do meio (Bernd), fronteira (Pesavento), in-between (Mignolo e Gruzinski), ou the thirdspace (revista Chora), o que, para Régine Robin, representa o entre-deux e/ou o hors-lieu a testemunhar a heterogenei- dade das acepções.

Em Escrituras híbridas, Z. Bernd postula que “um texto do terceiro es- paço relaciona-se, de certa maneira, à articulação hegeliana (tese, antítese, sín- tese)” (1998, p. 268). Tal disposição, no entanto, é desconstruída frente à glo- balização e ao contínuo processo de migrações, por meio de diversas práticas, entre elas o deslocamento de personagens, as estratégias de desvio, que contri- buem para solapar o fundamento das polaridades. Na oralidade e na escrita, a literatura projeta-se em direção à ocupação da terceira margem, poetizada por Guimarães Rosa no conto “A terceira margem do rio”, do “entrelugar”, propos- to por Silviano Santiago, ou de um espaço intersticial, liminar, “no além” ou terceiro espaço, sugeridos por Roberto

DaMatta ou

Homi K. Bhabha.

Entretanto, a questão menos relevante talvez seja a da nominação. As classificações, afirmam os classificadores, são fulcrais para a ciência porque são pré-requisito para se descobrir uma ordem no universo. Considerando e relativizando tal premissa e o desejo de releitura dos tradicionais espaços de enunciação – desafiados pelos discursos pós-colonialistas e pela posição singular da crítica ante a dependência cultural –, foram criados e nomeados novos espaços, que, misturados às virtualidades globais e às regionalidades enunciativas, atendem ao apelo de instâncias subjetivas dos discursos em circulação. Nessa perspectiva, seguindo agora Dominique Maingueneau, é possível dizer ainda que o escritor, ou o artista de modo geral, é “alguém cuja enunciação se constitui através da própria impossibilidade de se desig- nar um lugar verdadeiro” (2001, p. 27).

Na direção do até aqui apresentado, à afirmação de G. Cavalcanti (2004) de que, ao se atravessar fronteiras disciplinares, existe todo um está- gio de apreciação, discussão ou modificação, pode-se acrescentar a ideia de que o atravessamento de fronteiras não pode prescindir de uma consciência

crítica que abarque também as estruturas de poder subjacentes aos constru- tos que não se deixam desterritorializar, ou não podem ser hibridizados.

O entrelugar, a liminaridade, o terceiro espaço e suas variantes tor- nam-se assim particularmente fecundos para reconfigurar os limites difusos entre centro e periferia, cópia e simulacro, autoria e processos de textuali- zação, literatura e uma multiplicidade de vertentes culturais que circulam na contemporaneidade e ultrapassam fronteiras, fazendo do mundo uma formação de entrelugares.

REFERÊNCIAS

BERND, Zilá (Org.). Escrituras híbridas: estudos em literatura compara- da. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Elia- na Reis, Gláucia Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. CAVALCANTI, M. C. (Org.). Linguística aplicada e transdisciplinari- dade: questões e perspectivas. Campinas: Mercado de Letras, 2004.   DAMATTA, Roberto. Individualidade e liminaridade: considerações so- bre os ritos de passagem e a modernidade. Mana, v. 6, n. 1, p. 7-29, 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/mana/v6n1/1969.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2014.

FIGUEIREDO, Eurídice (Org.). Conceitos de literatura e cultura. Ni- terói: Eduff; Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: Edusp, 2008.

GLISSANT, Édouard. Le discours antillais. Paris: Seuil, 1981. GRUZINSKI, Serge. La pensée métisse. Paris: Fayard, 1999.

MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

MIGNOLO, Walter D. Local histories/Global designs. Princeton Uni- versity Press, 2000.

MOREIRAS, Alberto. Tercer espacio: duelo y literatura en América Lati- na. Santiago: Arcis/Lom, 1999.

PESAVENTO, Sandra (Org.). Fronteiras do milênio. Porto Alegre: Edi- tora da Universidade, 2001.

PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e trans- culturação. Tradução de Jézio Hernani Bonfim Guerra. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999.

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ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: ______. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 79-85.

SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: ______. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 9-26. SIGNORINI, I. Do residual ao múltiplo e ao complexo: o objeto da pesqui- sa em Linguística Aplicada. In: SIGNORINI, I.; CAVALCANTI, M. C. (Org.). Linguística aplicada e transdisciplinaridade: questões e perspecti- vas. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 99-110.

ESPAÇO

Sandra Regina Goulart Almeida

VER : Estado-Nação · Fronteira · Globalização · Habitar · Lugar · Não Lugar · Pós-Colonialismo, Colonialidade · Pertencimento · Pós-Nacional · Transnacional.

O espaço tornou-se, na atualidade, uma categoria epistemológica proeminente na área das Ciências Humanas e Sociais e, em especial, no cam- po dos estudos culturais e estudos literários. De fato, pode-se argumentar que não há, hoje, nenhum outro termo que se desloque tão confortavelmente entre as várias esferas de ação e conhecimento. A atualidade e a capilaridade do termo, como observa Jody Berland, “nos convidam a refletir sobre seu poderoso efeito e a reconhecer o espaço como uma força dinâmica no desafio contemporâneo por significação, pertencimento e poder” (2008, p. 334).

Os vários significados atribuídos ao termo revelam não apenas sua complexidade e envergadura, como também sua relevância como campo teórico e categoria epistemológica. No entanto, questões políticas, sociais e econômicas, entre outras, moldam as concepções que uma determinada sociedade ou cultura tem sobre a noção de espaço, fazendo com que se cons- truam distintas histórias do conceito nos vários campos de estudo (WER- THEIM, 1999). De abordagens mais empíricas como o conceito de um espaço absoluto de Isaac Newton ao de espaço relativo e dinâmico de Al- bert Einstein; de reflexões mais filosóficas no campo das ciências humanas, como a ontologia dos espaços de Martin Heidegger e a fenomenologia da poética do espaço de Gaston Bachelard, às incursões mais contemporâneas como a geografia pós-moderna de Edward W. Soja, o espaço tem transita- do por vários modelos e paradigmas teóricos, fazendo deste um expressivo conceito crítico e metodológico.

Michel Foucault já havia mencionado, em 1967, quando profere a pa- lestra “De espaces autres”, publicada postumamente em 1984, que “a ansie- dade de nossa época tem a ver fundamentalmente com o espaço, muito mais do que com o tempo” (2008, p. 331). Na verdade, tanto o tempo quanto o espaço são “fenômenos físicos, práticas sociais e ideias simbólicas” (p. 331). Mesmo que o espaço esteja inegavelmente atrelado ao tempo e que a noção de espaço tenha um longo e significativo histórico na experiência do Oci- dente, Foucault argumenta que o presente momento é marcado, principal- mente, mais do que todos os outros, pelo espaço, um elemento fundamental ao se considerar a vida em comunidade e as várias formas de poder.

Esse espaço, no entanto, longe de ser entendido em uma perspec- tiva tradicional e estática, ou como mero pano de fundo de uma realidade exterior, seria caracterizado pela relação com outros lugares, pela hetero- geneidade, pela simultaneidade, pela justaposição e pela dispersão, “como

uma rede que vai ligando pontos e se intersecta com sua própria meada” (FOUCAULT, 2001, p. 1.571). Esses espaços diferentes, esses lugares-ou- tros são denominados, na teorização do filósofo francês, “heterotopias”, ter- mo cunhado a partir da palavra grego héteros, que significa outro, diferente, e topos, lugar (2001, p. 1.573). Para Foucault, as utopias são espaços irreais, enquanto as heterotopias seriam os espaços reais e, por isso mesmo, outros, relacionais, múltiplos e heterogêneos.

Hoje a categoria do espaço tem sido teorizada sob várias perspectivas e correntes teóricas, e colocada em relevo principalmente em função da con- figuração contemporânea de uma era marcada por movimentos globais em massa e pela mobilidade virtual. É precisamente essa perspectiva multifa- cetada e transdisciplinar que tem perpassado grande parte da reflexão con- temporânea sobre o espaço, marcando o que muitos críticos têm caracteri- zado como uma “virada espacial” no campo epistemológico que, como diria Luis Alberto Brandão, “abarca não somente as transformações de natureza propriamente teórica relativas ao termo, mas também aquelas vinculadas à vivência do espaço como categoria empírica, socialmente determinada e determinante” (2013, p. 49).

Traçando as constelações do espaço, já na década de 90, Marc Augé observa como a voga do termo, usado em vários contextos, comprova como o conceito povoa o imaginário coletivo, pois surge em destaque não somen- te nas Ciências Sociais e Humanas, mas também com referência a outros contextos geográficos da vida cotidiana, nomeando salas de espetáculo e de encontros, jardins, assentos de avião ou automóveis, entre outros. Augé en- fatiza que a “supermodernidade” – termo utilizado pelo autor para se referir ao atual momento histórico e geopolítico – surge marcada por paradigmas do excesso em três dimensões específicas fortemente imbricadas: do tempo, do espaço e da individualização (1994, p. 32-39). Além da ênfase no exces- so, o espaço contemporâneo acaba por se tornar um não lugar formado por lugares transitórios e por espaços de tensão solitários e de anonimato.

Como nos lembra o geógrafo brasileiro Milton Santos, em Meta-

morfoses do espaço habitado (2008), é, pois, a perspectiva humana de um

espaço habitado, muitas vezes esquecida, que o torna uma categoria com- plexa e multifária. Esse espaço é, ainda, como vários outros críticos ponde- ram, inerentemente relacional, interacional e, sobretudo, plural, mas é, ao mesmo tempo, cerceante e excludente. Como Zygmunt Bauman destaca,

uma das características do processo de globalização atual é “a progressiva segregação espacial, a progressiva separação e exclusão” (1999, p. 9). Essa intrínseca dualidade entre excesso/exclusão, pluralidade/individualidade está no cerne das discussões sobre a natureza do espaço contemporâneo, um espaço inerentemente dicotômico e contraditório. Entretanto, tanto no contexto da produção de múltiplas relacionalidades como na expressão dos processos de exclusão, a categoria do espaço impera destacadamente nas expressões da contemporaneidade.

Dessa forma, na acepção contemporânea e altamente produtiva do termo, o espaço deve ser hoje repensado e rediscutido diante de um cenário intricado que envolve, em especial, as recorrentes mobilidades geopolíticas e culturais; a reflexão sobre o global e suas interações com o local; as questões de desigualdades espaciais e regionais; as novas diásporas e as novas formas de imigração; a complexidade das cidades cosmopolitas; as abordagens es- pacializantes das novas geografias da raiva e do medo; os espaços ocupados por corpos subjetivados; os espaços de adesão emotiva; e os novos espaços enunciativos e discursivos, entre outros.

Massey observa que a forma como imaginamos os espaços e as ques- tões contemporâneas da espacialidade produz efeitos diversos que podem interferir na história dos povos e das nações. A teórica trabalha com três as- pectos relevantes com relação ao espaço que permeiam sobremaneira nossa percepção contemporânea: a) o espaço como o produto de inter-relações e, dessa forma, avesso a estruturas essencialistas; b) o espaço como a esfera da possibilidade de existência da multiplicidade, com ênfase na diferença e na heterogeneidade; e c) o espaço como um processo e não como um sistema fe- chado, enfatizando, assim, a pluralidade de trajetórias (2005, p. 1-20). Para a autora, imaginar o espaço como constituído de diferença e inter-relações fomenta o reconhecimento político da possibilidade de trajetórias alterna- tivas e, portanto, a concepção de novas políticas do espaço (1999, p. 285). Como uma categoria relacional, o espaço é, assim, “a dimensão da existência contemporânea,” argumenta Massey (2007, p. 23).

Nesse sentido, Homi Bhabha, crítico indiano radicado nos Estados Unidos, ressalta como, “neste fin de siècle, encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão” (2007, p. 27). Nossa existência é irremediavelmente marcada

por aquilo que o autor observa como sendo a contínua sensação “de viver nas fronteiras do ‘presente’”, apropriadamente evocada em seu uso do termo

além, que mapeia uma distância espacial, mas também marca o presente e o

futuro, “um espaço de intervenção no aqui e no agora” (2007, p. 27). O espaço e as várias cartografias contemporâneas marcam, assim, o cenário sociocultural da contemporaneidade, mapeando um fluxo cada vez maior de sujeitos moventes que fazem parte de uma significativa rede simbólica, delineando de forma contundente os movimentos de trânsito e mobilidade e o legado histórico de sujeitos coloniais e pós-coloniais. Esse espaço contemporâneo, como observa Arjun Appadurai em Modernity at

Large (1996), se caracteriza, assim, por ser não somente transnacional, no

sentido de um atravessamento contínuo de fronteiras, mas frequentemente “pós-nacional” em face da crise atual do modelo de nação tradicional e da possibilidade crescente de constituição de formas sociais pós-nacionais e de construção de cidadanias alternativas. São muitos os sujeitos que integram esse contingente de atores da contemporaneidade que experimentaram as possibilidades ou enfrentaram os percalços da movência transcultural e es- pacial ou a carregam como herança familiar, expressando uma mescla de afiliações nacionais e subjetivas das mais variadas.

Cabe, pois, à crítica contemporânea desconstruir e reconstruir esses novos espaços de pertencimento e habitabilidade, promovendo a contesta- ção e a renegociação do significado dos espaços tradicionais – que, na visão de Massey, seria um sistema fechado e excludente –, promovendo novas espacialidades interacionais e multifacetadas. Massey destaca a possibili- dade de se criar, a partir dessas reflexões críticas, “geografias de adesão”, ou seja, novos espaços marcados por uma ligação profundamente interpessoal, crítica e seletiva (2007, p. 149).

Assim, o espaço tradicionalmente constitutivo pode ser desestabili- zado por meio de múltiplas posicionalidades do sujeito contemporâneo, de uma política do espaço questionadora e de uma teorização sobre as várias localidades do conhecimento atual. Essa visão inovada do espaço abarca não somente a múltipla e complexa construção da identidade dos sujeitos, uma vez que espaço, identidades e subjetividades estão intimamente interconec- tados, mas principalmente a reconfiguração e construção de espaços mais fluidos, variáveis e multifários nos quais se possa construir posicionamentos