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Diáspora é um conceito de uso frequente no âmbito das ciências sociais. Pode ser visto como um problema teológico, quando associado ao tema bíblico da perda da origem e do desejo permanente de retorno do povo hebreu (KENNY, 2013). Também se constitui em problema histórico, ge- opolítico, antropológico, sociológico, cultural, sendo, inclusive, para Stuart Hall (2003) e Paul Gilroy (1994), uma questão de poética.

Historicamente o conceito foi associado ao êxodo do povo judaico e a seus sucessivos processos migratórios, à dispersão grega e armênia e, mais tarde, à migração forçada africana em séculos de tráfico negreiro e escravi- dão. Hoje o conceito se torna mais abrangente. Como explica Tölölyan, as diásporas são expressivas do momento transnacional atual:

o termo que uma vez descreveu a dispersão judaica, grega e armênia tem agora significados com um domínio semântico maior, que inclui palavras como imigrante, expatriado, refugiado, trabalhador itineran- te, comunidade exilada, comunidade estrangeira, comunidade étnica (TÖLÖLYAN, 1991, apud CLIFFORD, 1999, p. 300).

Etimologicamente, a palavra diáspora remete à dispersão ou espa- lhamento de povos, pois deriva do termo grego diaspeirein. O prefixo dia significa “através de”, “ao longo de”, “durante”, “por meio de”, “por causa de”, revestindo as acepções de dissociação, dispersão, movimento, passagem; e

speirein refere-se a “semente”, “germe”, “grão”, e consequentemente pode ser

associado com as ações de “plantar” e “semear”. Mas essa etimologia tenden- te a associar a dispersão com fertilização viu-se afetada nos séculos seguin- tes pela ideia de dispersão como perda e sofrimento. Como explica Robin Cohen (1995), entre os anos 800 e 600 a.C., durante a colonização grega da Ásia Menor e do Mediterrâneo, a diáspora grega possuía uma conotação positiva. Somente depois de uma leitura cristã da diáspora do povo hebreu é que a Babilônia, espaço de exílio, se torna uma metáfora da perda: perda de identidade, de uma terra, de um lar.

Esse sentido da diáspora como perda, sofrimento e necessidade de restaurar uma origem tem sido muito problematizado na contemporaneida- de. O enfoque transnacional da cultura que domina os estudos contemporâ- neos interpreta as diásporas no contexto de redes ampliadas de intercâmbio econômico, político e cultural, descartando aquela imagem convencional da

diáspora como despojos culturais, como vitimização do sujeito diaspórico, ou como absorção total da comunidade diaspórica pela sociedade anfitriã.

James Clifford é um dos estudiosos da cultura que com maior insis- tência tem criticado as teorias essencialistas da diáspora, geralmente ancora- das nas teleologias da origem e do retorno. Em seu livro Itinerarios transcul-

turales (1999)1, Clifford coloca em questão a definição de diáspora oferecida

por William Safran (1991), para quem as diásporas devem cumprir certas regularidades: serem comunidades minoritárias expatriadas que se dispersa- ram de um centro originário, que conservam uma memória ou mito coletivo sobre a terra de origem, que experimentam a alienação no país que as recebe, que consideram um lar ancestral como lugar de retorno final e que estão comprometidas com a restauração da terra natal, assim como com uma iden- tidade coletiva definida por essa relação com a origem. De acordo com essa definição, para Safran existiria um paradigma de diáspora, um padrão ide- al: “podemos falar legitimamente das diásporas armênias, magrebina, turca, palestina, cubana e talvez a chinesa na atualidade, e da diáspora polonesa no passado, mas nenhuma delas se ajusta plenamente ao tipo ideal da diáspora judaica” (SAFRAN, 1991, p. 83-84, apud CLIFFORD, 1999, p. 303).

Essa visão centrada da diáspora desconsidera, segundo Clifford, co- munidades como as afro-americanas, caribenhas e britânicas, que entrariam em uma categoria diferente por terem somente algumas das características preceituadas por Safran. Também se estaria desconsiderando a diáspora sul -asiática, que não se dirige a um lugar específico nem reproduz o desejo de retorno, pois seu interesse é recriar a cultura em diversas localizações. Crí- tico profundo das oposições binárias, James Clifford trata com cuidado esse conceito de “diáspora ideal” de Safran, considerando que até as formas mais “puras” são sempre ambivalentes e conflituosas. Assim, ele afirma:

Deveríamos ter a atitude de reconhecer a forte implicação da história judaica no discurso da diáspora, sem converter essa história em um modelo definiti- vo. As diásporas judaicas (assim como a armênia e a grega) podem ser con- sideradas pontos de partida não normativos para um discurso que viaja ou

1 Título original: Routes: travel and translation in the late twentieth century (Harvard University Press, 1997). Cito pela edição hispânica, referida na bibliografia, com tradução minha das citações para o presente verbete.

se torna híbrido em novas condições globais. O discurso da diáspora, para o bem ou para o mal, é objeto de ampla apropriação. Anda livre pelo mundo devido a razões que se relacionam com a descolonização, a imigração cres- cente, as comunicações globais e o desenvolvimento do transporte: toda uma variedade de fenômenos que estimulam os apegos multilocais, a residência e a viagem dentro das nações e através delas (CLIFFORD, 1999, p. 305). Tentando uma caracterização da diáspora, Clifford explica que esta somente pode ser pensada fora do território normativo do Estado-Nação e, consequentemente, fora de qualquer nacionalismo. As diásporas se expan- dem em redes transnacionais, construídas através de múltiplas conexões, codificando práticas de acomodação e de resistência às culturas de adoção. Nesse sentido, sua ideia de translocalidade situa a cultura em uma vasta rede de relações, complexas, móveis e, sobretudo, multidirecionais, quando ele argumenta que

as identidades diaspóricas tendem a unir idiomas, tradições, imaginá- rios, sempre de maneira criativa, articulando pátrias em combate, forças da memória, estilos de transgressão, em ambígua relação com as estrutu- ras nacionais e transnacionais (CLIFFORD, 1999, p. 21).

As diásporas, para Clifford, não precisam articular-se de maneira li- near ao problema da origem. As conexões laterais e descentradas são também importantes. Uma história compartilhada de deslocamento, adaptação e resis- tência pode ser tão relevante como a projeção de uma origem específica. Nesse sentido, os discursos da diáspora expressam o sentimento de fazer parte de uma rede transnacional, que inclui a terra natal não como algo deixado atrás, mas como um lugar de apego em uma modernidade de contrapontos.

Uma ideia central na caracterização da diáspora em Clifford é que esta não é temporária, como acontece com as viagens e outras formas do deslocamento. O discurso da diáspora articula rotas, mas também raízes. Comunidades diaspóricas aprendem a construir lares longe do lar, provocan- do mudanças significativas no sentido de pertencimento e gerando formas muito criativas da memória. Assim, para Clifford, a diáspora não somente significa transnacionalidade e movimento, mas expressa também as lutas po- líticas para definir um local, modos de pertencer e de ser diferente, ao mesmo

tempo. Seu exemplo da diáspora negra na Grã-Bretanha pós-colonial é mui- to ilustrativo: uma comunidade preocupada em ser britânica, mas também em ser outra coisa, que tem a ver com a África ou com a América.

Esse tema é desenvolvido de maneira central por Paul Gilroy, em seu já clássico livro O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciên-

cia (2001)2. Gilroy fala do Atlântico Negro para se referir às estruturas

transnacionais que se desenvolveram e se articularam em um sistema de comunicação global constituído por fluxos de pessoas, imagens, ideias e símbolos negros em diversos pontos do mundo. A formação dessa rede possibilitou que as populações africanas negras na diáspora formassem uma cultura que não pode ser identificada exclusivamente como caribe- nha, norte-americana ou britânica, mas todas elas ao mesmo tempo. Tam- bém não é um desdobramento frio da cultura africana. Trata-se de uma cultura construída num processo dinâmico de trocas culturais que, pelo seu caráter híbrido, não se encontra circunscrita a fronteiras étnicas ou nacionais. Uma cultura que criou uma topografia à margem das estruturas e pressupostos do Estado-Nação.

Gilroy explora em seu livro as relações entre raça, nação, naciona- lidade e etnia, colocando em xeque o mito da identidade étnica e da uni- dade nacional. No centro de sua análise encontra-se a noção de diáspora, que para ele não pode ser identificada com dispersão traumática e aniqui- ladora da cultura, mas com um processo riquíssimo de trocas culturais e redefinição permanente do sentido de pertencimento. A concepção de diáspora de Gilroy quebra qualquer ideia de identidade atrelada à noção de território e de cultura enraizada, sobretudo quando o enraizamento é entendido como condição natural das culturas, anterior aos desloca- mentos. Seu modelo de Atlântico Negro é oposto à ideia de uma cultura territorial fechada e codificada no corpo negro. A grande contribuição da teoria do Atlântico Negro a uma teorização da diáspora seria exatamente essa, pensar o diaspórico como um processo dinâmico e fecundante, que garante os sentidos de rede, de multiplicidade, de interação, desafiando as soberanias territoriais e as identidades absolutas. Essa concepção de diáspora de alguma maneira prenuncia a utopia de uma cultura planetária fluida e cosmopolita.

Outra perspectiva de necessária referência neste rastreio do conceito de diáspora que venho fazendo é a que oferece Avtar Brah em seu livro Cartografias

da diáspora (2011)3. Brah parte de um pressuposto fundamental que é distin-

guir a diáspora como conceito teórico das práticas discursivas diaspóricas e das experiências históricas de diásporas. Argumenta de maneira pontual que não é possível qualquer teorização sobre a diáspora a partir de uma experiência his- tórica concreta, mas sim de múltiplas experiências, arraigadas em mapas e em histórias singulares, que fazem do diaspórico um conceito plural e abrangente.

Cada diáspora deve ser estudada na sua singularidade histórica, na sua trajetória e contexto particulares; elas são historicamente concretas, ao mesmo tempo que também precisam ser lidas de forma relacional. Para Brah, cada diás- pora é um cruzamento de múltiplas viagens, um texto de narrações convergentes, ou talvez díspares. As viagens diaspóricas são vividas e revividas de múltiplas ma- neiras segundo raça, gênero, religião, língua, geração. Ou seja, Brah defende que as diásporas são espaços diferenciados, heterogêneos e em permanente tensão.

Existe uma tendência muito grande a associar diáspora com “deslo- calização”, poucas vezes com “relocalização”. Porém o conceito de diáspora de Brah coloca os discursos do lar e da dispersão em tensão criativa (2011, p. 224). Na sua caracterização da diáspora contemporânea, Brah observa que nem sempre o regresso ao país natal é um horizonte para o sujeito diaspórico, nem o desejo de lar equivale exatamente ao desejo de voltar para o lugar da partida. Nesse sentido, o lar é repensado e reorganizado nas novas circuns- tâncias de relocalização. Interessa o lugar da partida, mas também o lugar de enraizamento. Assim, diáspora também significa esperança e novo começo.

Particularmente valioso é o conceito que a autora desenvolve de “es- paço diaspórico”. Para Brah este é um espaço habitado não só por quem migrou, mas também pelo autóctone. Assim, afirma: “o conceito de espaço diaspórico, frente ao conceito de diáspora, contém genealogias de dispersão enredadas com aquelas dos que optam por ficar onde estão” (2011, p. 241). Colateralmente, desenvolve também o conceito de “consciência diaspórica” para designar um espaço de questionamentos das identidades nacionais em face da multiplicidade transnacional. “A consciência diaspórica representa o 3 Título original: Cartographies of diaspora: contesting identities (London: Routledge, 1996). Cito pela edição hispânica, referida na bibliografia, com tradução minha das citações para o presente verbete.

espaço no qual as múltiplas posições do sujeito são justapostas, contestadas, aclamadas ou desautorizadas” (2011, p. 212).

Finalmente quero resgatar o pensamento de Stuart Hall (2003), que também põe em xeque uma concepção de diáspora fincada nas teleologias da origem e numa concepção essencialista e binária da diferença. Hall duvida da possibilidade de localizar uma origem “homogênea e autêntica”, sobre- tudo para as Américas, que é um espaço constituído de rotas impuras e camadas de diásporas. No sentido derrideano do termo, propõe a différance para pensar a diferença. Essa perspectiva lhe permite pensar o sujeito dias- pórico não como o outro do enraizamento, mas como uma forma a mais de manifestação das culturas.

Para Hall, as estéticas diaspóricas têm seu centro em lugares instá- veis, reutilizam matérias-primas, recodificam linguagens e interagem com as culturas de adoção, alimentando-se e alimentando-as. São estéticas da disseminação e da fertilização. Coincidentemente com Paul Gilroy, para quem uma política e uma poética da diáspora são termos indissociáveis (1994, p. 211), Stuart Hall estuda a cultura caribenha como uma cultura “essencialmente impelida por uma estética diaspórica” (2003, p. 34). Na perspectiva de ambos os autores, a produção artística das diásporas contem- porâneas instaura um campo discursivo que pode ser reconhecido, carac- terizado e estudado nas variadas formas estéticas do sincretismo, da trans- culturação, da tradução, da crioulização, da hibridação, do dialogismo, da heteroglosia, das formas impuras e heterogêneas.

Tal como Avtar Brah, que desenvolve noções compósitas como “es- paço diaspórico” e “consciência diaspórica”, Hall sistematiza uma conceptu- alização em torno da figura do “intelectual diaspórico”, aliás muito próxima da que encontramos no pensamento de Edward Said (2005). Se para Said o intelectual é por natureza um permanente deslocado, um dissonante, um náufrago, um hóspede temporário (2005, p. 67), para Hall o intelectual diaspórico tem ainda um privilégio maior, o privilégio real de estar sem- pre “fora de lugar”. Por sua dinâmica descentrada, o intelectual diaspórico constitui uma figura entre domínios, entre formas, entre lares e entre lin- guagens, perspectiva pela qual essa figura se torna tão original no mundo de hoje. Esse território que instaura o intelectual diaspórico aponta para um novo espaço, uma nova consciência, uma renovada maneira de pensar a literatura e a arte no século XXI.

REFERÊNCIAS

BRAH, Avtar. Cartografías de la diáspora: identidades en cuestión. Ma- drid: Traficante de Sueños, 2011.

CLIFFORD, James. Itinerários transculturales. Barcelona: Gedisa, 1999. COHEN, Robin. Rethinking Babylon: iconoclastic conceptions of the diasporic experience. New Community, v. 21, n. 1, p. 5-18, 1995.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organi- zação de Liv Sovik. Tradução de A. La Guardia Resende et al. Belo Hori- zonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003. KENNY, Kevin. Diaspora: a very short introduction. New York: Oxford University Press, 2013.

SAFRAN, William. Diasporas in modern societies: myths of homeland and return. Diaspora, v. 1, n. 1, p. 83-99, Spring 1991.

SAID, Edward. Representações do intelectual: as conferências Reith de 1993. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.

TÖLÖLIAN, Khachig. The Nation-State and its others: in lieu of a prefa- ce. Diaspora, v. 1, p. 3-7, 1991.