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Sandra Regina Goulart Almeida

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A noção de deslocamento e suas variáveis semânticas mais frequentes, como a deslocação, a mobilidade, o movimento, a locomoção e o desplaçamen- to1, figuram proeminentemente como um conceito-chave na teoria crítica con-

temporânea, bem como paradigma de análise e operador de leitura de textos – estes entendidos em seu sentido mais amplo – através dos quais são construídos os imaginários culturais. O deslocamento torna-se, assim, elemento constitu- tivo da teoria ao proporcionar uma desestabilização epistemológica desejável e necessária à reflexão crítica. Como bem observa James Clifford, a própria teoria pode ser concebida como “um produto do deslocamento, da comparação, de uma certa distância. Para teorizar é preciso sair de casa” (1989, p. 177), isto é, estar fora de seu local de origem, sentir-se desconfortavelmente desafiado.

Se, em uma análise mais generalista, o termo remete ao senso co- mum em seu sentido de movimento, mudança e locomoção, na física, dis- ciplina que se ocupa especificamente do conceito, o deslocamento que sofre um corpo dentro de uma trajetória determinada é uma grandeza vetorial, ou seja, é definida pela variação de posição desse corpo em um intervalo de tempo específico.

O conceito remete, assim, a uma relação tanto temporal quanto es- pacial. A dimensão espacial, por sua vez, pode ser observada na própria origem latina do vocábulo que remete à noção de local (loco) ao mesmo tem- po que retira deste o sentido de fixidez ou de localização determinada pelo acréscimo do prefixo des, que marca a desestabilização da própria noção de local (PALMERO, 2010, p. 109).

Além da relação espaço-temporal, o conceito está inerentemente li- gado à construção identitária. O termo surge como conceito-chave para a psicanálise, tanto para Freud quanto para Lacan. Para Freud, o deslocamen- to é um mecanismo essencial para a elaboração dos sonhos, sendo também responsável por atos falhos, lapsos, sintomas através dos quais o inconscien- te se faz presente mesmo quando recalcado. Lacan, por outro lado, associa o deslocamento ao processo linguístico da metonímia. O inconsciente opera, assim, por meio da linguagem em constantes associações metonímicas que revelam o trabalho do inconsciente nos elementos psíquicos do sujeito. 1 O termo “desplaçamento” em português, como observa Palmero, embora não se encon- tre ainda dicionarizado, tem surgido com frequência em textos da crítica cultural brasileira (2010, p. 109), principalmente por analogia aos termos correntes em espanhol e inglês, a saber, desplazamiento e displacement, respectivamente.

Por outro lado, a experiência do deslocamento cultural pode ser pensada não apenas como uma condição subjetiva, geopolítica, cultural ou histórico-temporal, mas, sobretudo, como uma realidade intelectual, como observa a crítica Rey Chow, a realidade de ser um intelectual da contempo- raneidade (1993, p. 15). Endossando esse posicionamento, a crítica chilena Nelly Richard argumenta em favor de uma “multilocalização do sujeito e da crítica” que suscite uma mobilidade de deslocamentos “capazes de romper os pactos hegemônicos do uniforme e do conforme” (2002, p. 169).

Não é, pois, surpresa que o conceito de deslocamento esteja presente na proposta de Ricardo Piglia para o novo milênio. Embora concebida para o contexto dos estudos literários, a sexta proposta de Piglia para o século 21 se expande para contemplar a relação intersubjetiva. Para o crítico ar- gentino, essa sexta proposta para o novo milênio, aquela que Calvino não chegou a formular, seria justamente a distância, o deslocamento, a mudança de lugar, o movimento em direção ao outro (2001, p. 1-2) – condições essas que são a marca indelével do nosso momento histórico. Complementando as propostas de Calvino em Seis propostas para o próximo milênio (1990), Piglia concebe a literatura como um lugar através do qual um outro pode falar, o lugar de deslocamento em direção ao outro, o movimento em direção a outra enunciação. Daí, conclui o autor, a importância da distância e do deslocamento para a literatura no novo milênio (2001, p. 3), bem como, eu diria, para a crítica cultural na contemporaneidade. Piglia salienta ainda que imaginar as condições de uma literatura futura pressupõe “inferir a re- alidade que essa literatura postula”, isto é, “imaginar uma vida possível, um mundo alternativo” (2001, p. 1), construído justamente a partir da perspec- tiva de um deslocamento crítico.

Nesse sentido, podemos falar inclusive de uma estética do desloca- mento, segundo Clifford, ou mesmo de uma “estética do trânsito” ou “da diáspora”, como quer Hall, ou uma política e uma poética do trânsito e da diáspora, como argumenta Paul Gilroy. A política e a poética, neste caso, seriam termos inseparáveis e balizadores das manifestações culturais con- temporâneas, que se associam marcadamente à retórica do deslocamento.

Para Marc Augé, em Por uma antropologia da mobilidade, “pensar a mobilidade é pensá-la em diversas escalas para tentar compreender as con- tradições que minam nossa história” (2010, p. 99), pois essas contradições – o que o autor elenca como sendo os cinco paradoxos do mundo contem-

porâneo – estão inerentemente imbricadas nas percepções dos trânsitos contemporâneos. São estes os paradoxos elencados pelo autor: 1) o espaço temporal: o espaço diminui na mesma proporção em que o tempo se ace- lera; 2) a perenidade do presente; 3) o espaço social: a diversidade, mas as enormes desigualdades, principalmente nos enclausuramentos nas cida- des-mundo; 4) a separação econômica entre países numa escala global; 5) a produção e distribuição desigual do conhecimento. Acrescentaria, assim, um sexto paradoxo: as hierarquias ainda predominantes de gênero, classe, etnicidade – o que Augé denomina, em outro contexto, de “a cegueira dos olhares” (p. 47). Todos esses paradoxos estão associados, de maneira decisiva, aos movimentos do trânsito e do deslocamento, embora não se restrinjam a eles.

Há uma conexão intrínseca, como observa Arjun Appadurai, entre os conceitos do trânsito, do deslocamento e da migração e “o trabalho da imaginação como um traço constitutivo da subjetividade moderna”, como uma forma de “interrogar, subverter e transformar outros letramentos con- textuais” (1996, p. 3-4), estabelecendo os princípios para um possível espaço de contestação, formado por paisagens transculturais.

Appadurai, em seu clássico estudo Modernity at large: cultural di-

mensions of globalization (1996), estabelece as paisagens étnicas (ethnoscapes)

como uma das cinco dimensões dos fluxos culturais globais. As demais, que também remetem à ideia de movimento e deslocamento, embora em perspectivas distintas, seriam: as paisagens mediáticas (mediascapes), tecno- lógicas (technoscapes), financeiras (financescapes) e ideológicas (ideoscapes). As paisagens tecnológicas, assim como as mediáticas, se referem à configuração global fluida na qual a tecnologia e a media se movem a uma alta velocidade através de fronteiras. O sufixo -scapes em inglês se refere às “formas fluidas e irregulares dessas paisagens” e aponta para sua construção perspectivista, isto é, “modulada por conceitos históricos, linguísticos e políticos situados com relação a diferente tipos de atores” (1996, p. 33-34).

Inspirado na proposta de Appadurai, mas colocando em relevo justa- mente a concepção do deslocamento contínuo, Walter Moser estabelece três categorias que se relacionam à mobilidade na contemporaneidade e às quais estão expostos os sujeitos: a locomoção, que diz respeito ao deslocamento físico, seja esse voluntário ou forçado, à viagem, à diáspora e à migração; a mediamoção, que se relaciona ao deslocamento virtual proporcionado pelos

eventos midiáticos, quer seja a Internet, a media televisiva ou radiofônica, entre outras; e a artemoção, que se relaciona à experiência estética do mo- vimento de obras de arte e instalações.

Dessa forma, refletir sobre um conceito de deslocamento na con- temporaneidade pressupõe o enfrentamento de vários impulsos críticos e teóricos que marcam de forma indelével nossa era, tais como as noções de lar e pátria, as questões das afiliações nacionais, o exílio e a desterritoria- lização, o conceito de comunidade e cidadania, o lugar do estrangeiro e do outro, os movimentos midiáticos e virtuais, as identidades e subjetividades móveis e fugidias, os novos espaços do afeto, terror e medo, os muitos cos- mopolitismos contemporâneos e, principalmente, a relação entre o espaço transnacional e translocal2 e as representações e construções identitárias.

REFERÊNCIAS

APPADURAI, Arjun. Modernity at large: cultural dimensions of globali- zation. Minneapolis: University of Minnesota Press,1996.

AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Tradução de Bruno César Cavalcanti e Rachel Rocha Barros. Maceió: Edufal, 2010.

CHOW, Rey. Writing diaspora: tactics of intervention in contemporary cultural studies. Indianápolis: Indiana University Press, 1993.

CLIFFORD, James. Notes on theory and travel. Inscription, v. 5, p. 177- 188, 1989.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. GILROY, Paul. Diaspora. Paragraph, v. 17, n. 3, p. 207-212, 1994. 2 O termo translocal, ou translocalidade, tem sido utilizado por críticos de várias áre- as do conhecimento para designar, de um modo geral, um espaço de interação entre várias localidades. Um dos primeiros críticos a fazer uso do conceito, Appadurai observa como as comunidades, além de se constituírem como transnacionais (e mesmo pós-nacionais) por ul- trapassarem os limites da nação, também possuem experiências locais variadas que interagem entre si por meio da mobilidade dos sujeitos que nelas vivem, criando, assim, “a possibilidade de convergências em ações sociais translocais” (1996, p. 8).

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organi- zação de Liv Sovik. Tradução de Adelaide La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Inês Oseki-Dépré. São Paulo: Perspectiva, 1996.

MOSER, Walter. La culture en transit: locomotion, médiamotion, artmo- tion. Gragoatá, Niterói, n. 17, p. 25-41, 2. sem. 2004.

PALMERO GONZÁLEZ, Elena. Deslocamento/desplaçamento. In: BERND, Zilá (Org.). Dicionário das mobilidades culturais. Porto Ale- gre: Literalis, 2010. p. 109-127.

PIGLIA, Ricardo. Una propuesta para el nuevo milênio. Margens/Márge- nes, Belo Horizonte, Mar del Plata, Buenos Aires, n. 2, p. 1-3, out. 2001. RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura e política. Tradu- ção de Romulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.