• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 6 Historiografia romântica: o olhar estrangeiro

2. Almeida Garrett

Antes dos estudos de orientação propriamente historiográfica que surgirão ao longo de todo o séc. XIX, autores nascidos e/ou que viveram no Brasil aparecem arrolados no extenso catálogo bibliográfico composto pela Biblioteca Lusitana, do português Diogo Barbosa Machado, saída em 4 volumes nos anos de 1741, 1747, 1752 e 1759.

4

Op. cit., p. 27. Zilberman toma como suporte, aqui e em outras passagens do seu texto, algumas formulações de David Perkins (Is literary history possible? Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1993).

5

Op. cit., p. 27.

6

Mas as primeiras referências em compêndios de história literária, no sentido mais próprio do termo, surgem em trabalhos de autores que produzem a partir de fora do mundo luso-brasileiro, nomeadamente o alemão Friedrich Bouterwek (1765-1828) e o suíço Sismonde de Sismondi (1773-1842). Bouterwek é autor de Geschichte der Portugiesischen

Poesie und Beredsamkeit (1805), quarto tomo de uma extensa obra coletiva em 12 volumes

dedicada à história da poesia e eloqüência européias desde o final da Idade Média, a

Geschichte der Poesie und Beredsamkeit seit dem Ende des 13. Jahrhunderts. É também o

responsável pelo terceiro volume da coleção, que cobre a literatura produzida em língua espanhola. Sismondi, por sua vez, é autor de De la Littérature du Midi de l’Europe (1813), em quatro tomos, dedicado às literaturas românicas do sul da Europa. O quarto deles, reserva-o às literaturas de língua espanhola e portuguesa. São autores que escrevem ainda antes da emancipação política do Brasil, integrando, como seria de esperar, os autores aqui nascidos ao sistema literário da metrópole.7

Seria em 1826, portanto num momento já posterior à independência do país, que viriam a público, igualmente pela mão de estrangeiros, dois textos fundamentais para a história da literatura do Brasil, na medida em que indicavam pela primeira vez também os caminhos da emancipação literária: o “Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa”, de Almeida Garrett, e o Résumé de l’histoire littéraire du Brésil, de Ferdinand Denis.

O “Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa” havia sido redigido por Almeida Garrett (1799-1854) como introdução ao Parnaso lusitano (ou Poesias seletas dos

autores portugueses antigos e modernos, ilustradas com notas). Esta ampla antologia, cuja

organização definitiva é objeto de controvérsia, seria publicada por J. P. Aillaud em Paris em seis volumes, o primeiro deles, com o referido estudo do escritor português, saindo ainda aquele ano, e os demais, em 1827.8

7

Um estudo da colaboração destes e outros historiadores estrangeiros para a historiografia literária brasileira em suas origens (bem como a seleção de textos fundamentais desses mesmos autores) encontra-se no já referido

O “Bosquejo” é fundamentalmente um apanhado histórico-crítico da poesia em língua portuguesa, com a proposição de uma periodização, desde suas origens até o momento em que Garrett escrevia. No “Bosquejo”, lêem-se algumas formulações que marcarão época na historiografia de além e aquém-mar, entre elas uma avaliação dos árcades brasileiros, formulações com as quais Machado de Assis, por exemplo, estará explicitamente dialogando em seus ensaios.9

Valeria a pena retomar algumas das formulações de Almeida Garrett, sobretudo aquelas voltadas para a questão do “nacional” como juízo de valor, e as observações acerca de autores nascidos no Brasil.

Antes do texto do “Bosquejo” propriamente dito, Garrett apresenta um breve “A quem ler” introdutório, onde, além de considerações gerais sobre a antologia, sublinhava o caráter inaugural de seu estudo e o propósito deste de, inclusive, corrigir supostos erros de avaliação dos poucos autores estrangeiros que haviam se dedicado à matéria, nomeadamente Bouterwek e Sismondi.10

Adentrando o texto do “Bosquejo”, pode-se perceber que os títulos de cada um dos seus capítulos, por si só, propõem uma periodização do desenvolvimento da poesia portuguesa, bem como uma sintética apreciação dos caminhos e descaminhos desta:

- Primeira época literária; fins do séc. XIII até princípios de XVI.

- Segunda época literária; idade de ouro da poesia e da língua desde os princípios do séc. XVI até os do XVII.

- Terceira época literária; principia a corromper-se o gosto e a declinar a língua. Começo até o fim do séc. XVII.

- Quarta época: idade de ferro; aniquila-se a literatura, corrompe-se inteiramente a língua. Fins do séc. XVII, até meados do séc. XVIII.

- Quinta época: restauração das letras em Portugal. Meio do século XVIII, até o fim. - (Sexta) época; segunda decadência da língua e literatura; galicismo e traduções.

8

O “Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa”, de Almeida Garrett, encontra-se reproduzido em O

berço do cânone. Algumas informações introdutórias sobre o “Bosquejo” e Garrett podem ser lidas entre as

páginas 19 e 25, entre elas a controvérsia em relação à efetiva organização da antologia.

9

Regina Zilberman, em “Almeida Garrett e o Cânone Romântico”, dedica-se ao assunto. (In: Via Atlântica, nº 1, Publicação da Área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, USP, São Paulo, 1997.)

No primeiro capítulo, intitulado “Origem de nossa língua e poesia”, antes de abordar propriamente cada um dos períodos propostos nos capítulos subseqüentes, Garrett explicita, já no parágrafo inicial, pontos de vista fundamentais que estarão atuando como pressupostos de muitas de suas avaliações: “A língua e a poesia portuguesa (bem como as outras todas) nasceram gêmeas, e se criaram ao mesmo tempo. Erro é comum, e geral mesmo entre nacionais, pela maior parte pouco versados em nossas coisas, o pensar que a língua portuguesa é um dialeto da castelhana, ou espanhola segundo hoje inexatamente se diz.”11

Para o autor, língua e literatura estão tão entranhadamente interligadas, que a origem de uma é a origem da outra e seus desenvolvimentos coincidem. Garrett, na verdade, não irá desenvolver uma abordagem propriamente específica do desenvolvimento da língua portuguesa em si (na perspectiva de uma gramática histórica, de uma análise filológica), mas sim da língua vinculadamente ao fenômeno literário, da língua enquanto matéria-prima da própria literatura.

A questão da língua orienta, aliás, suas apreciações dos diferentes períodos. Aqueles momentos em que língua e literatura estarão sob maior influxo de línguas e literaturas estrangeiras (a castelhana, ao longo de todo o séc. XVII até meados do XVIII; ou a francesa, em fins do séc. XVIII e início do séc. XIX) são justamente avaliados como períodos de decadência (literária e lingüística). A literatura portuguesa, para Garrett, é, sem discussão, a literatura (a poesia) escrita em língua portuguesa. Portanto, é questão de honra assinalar de imediato, ainda nesse primeiro parágrafo, a total independência e autonomia da língua falada em Portugal em relação ao restante da Península Ibérica. Sublinhar a autonomia lingüística é, em suma, um modo de sublinhar também a autonomia no campo literário.

Já na consideração da “primeira época”, o adjetivo “nacional” (aqui, precisamente, na locução “espírito nacional”) aparece no texto com intuito valorativo. Ao discorrer sobre os desenvolvimentos literários que terão lugar em Portugal desde fins do séc. XIV até inícios do XVI, balizados pelos assinaláveis reinados de D. João I (1365-1433) e D. Manuel (1496-

10

GARRETT, “Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa”, p. 28.

11

1521), Garrett afirma: “Desde então até a morte del-rei D. Manuel, tudo foi crescer em Portugal; artes, ciências, comércio, riqueza, virtudes, espírito nacional.”12 Trata-se, justamente (consolidado o Estado nacional), do período inicial da expansão ultramarina, que alçará Portugal à condição de importante protagonista da história universal naquele momento. É o período que prepara o Renascimento em terras portugueses, a “idade de ouro” (segundo o mesmo Garrett) da poesia nacional.

Mas este mesmo momento áureo do “espírito nacional”, aqui e ali, será apreciado de modo nem sempre francamente positivo. Por exemplo, com respeito à boa parte da produção de poetas de fins do séc. XV em diante, Garrett ajuíza: “O Tejo, o Mondego, os montes, os sítios conhecidos de nosso país e dos que nos deu a conquista, figuram em seus poemas; porém raro se vê descrição que recorde algum desses sítios que já vimos, que nos lembre os costumes, as usanças, os preconceitos mesmos populares; que daí vem à poesia o aspecto e feições nacionais, que são sua maior beleza.”13

Trata-se, certamente, de uma expectativa alimentada pela estética romântica, que o autor projeta, anacronicamente, em direção ao passado para avaliá-lo. De qualquer modo, evidencia bem o ponto de vista de Garrett no momento em que escreve. Para ele, a “maior beleza” da poesia estaria no “aspecto e feições nacionais” desta mesma poesia, entrevistos ali na sua capacidade de traduzir em palavras a substância daquilo que é original, singular, específico de um povo, de um tempo e de um lugar.

Essa mesma perspectiva projeta-se na avaliação das transformações sofridas pela língua e literatura durante o Renascimento sob a influência das línguas e literaturas clássicas. Mesmo considerando positivas as contribuições do humanismo renascentista, Garrett não deixa, ao fim e ao cabo, de assinalar seus limites:

(...) Os modelos gregos e romanos foram então versados de todas as mãos, estudados, traduzidos, imitados. Aperfeiçoou-se a língua, enriqueceu-se, adquiriu então aquela solenidade clássica que a distingue de todas as outras vivas, seus períodos se arredondaram ao modo latino, suas vozes tomaram muito da eufonia grega (...).

12

Op. cit., p. 31.

13

(...) Com elas todas medrou e cresceu a poesia na delicadeza, na harmonia, no gosto; porém desmereceu muito, demasiado na originalidade, no caráter próprio, que perdeu quase todo, na

nacionalidade, que por mui pouco se lhe ia. Todos os deuses gregos tomaram posse do

maravilhoso poético, todas as imagens, todas as idéias; todas as alusões ao tempo de Augusto ocuparam as mais partes da poesia; e mui pouco ficou para o que era nacional, para o que já tínhamos, para o que podíamos adquirir ainda, para o que naturalmente devia nascer de nossos usos, de nossas recordações, de nossa arqueologia, do aspecto de nosso país, de nossas crenças populares, e enfim de nossa religião.14

Mais do que uma apreciação do passado literário, está-se diante aqui, na verdade, da proposição (meio pelo avesso, como que em negativo) do programa romântico, que o próprio Garrett estará se encarregando de consolidar e realizar por esse tempo no âmbito das letras portuguesas. O universalismo clássico, na sua avaliação, põe em risco justamente a “originalidade”, o “caráter próprio”, a “nacionalidade” da literatura, elementos encontráveis naqueles aspectos mais particulares de um povo e de um país.

Depois do Renascimento, tudo é decadência na poesia portuguesa. Todo o período coberto pelo que posteriormente viria a ser designado de Barroco (e que Garrett, em seu ensaio, referindo-se especificamente à poesia, chama de “gongorismo” e “marinismo”) é avaliado negativamente pelo escritor. Perdida a autonomia política para a Espanha em 1580, perde-se também a autonomia lingüística e literária - e, com ela, o “espírito nacional”.15

Mas mesmo depois da Restauração, em meados do século seguinte, à independência política não se seguiria de imediato a emancipação literária: “E todavia já nós tínhamos recobrado tão gloriosamente nossa independência, já o nome português tornara a ser honra e nobreza, e ainda essa lepra castelhana lavrava.”16

O momento de regeneração vai se dar em meados do séc. XVIII, com o surgimento do que viria a ser chamado posteriormente de Arcadismo. Garrett estende-se na consideração de seus poetas, inclusive na de alguns dos seus representantes no Brasil, tópico a ser examinado aqui com algum vagar.

14 Op. cit., pp. 34-35. 15 Op. cit., pp. 45-46. 16 Op. cit., p. 49.

A contribuição de alguns autores nascidos na antiga colônia é posta de imediato em evidência: “E agora começa a literatura portuguesa a avultar e enriquecer-se com as produções dos engenhos brasileiros.” Porém, isto posto, o escritor português faz algumas restrições: “Certo é que as majestosas e novas cenas da natureza naquela vasta região deviam ter dado a seus poetas mais originalidade, mais diferentes imagens, expressões e estilo, do que neles aparece: a educação européia apagou-lhes o espírito nacional: parece que receiam de se mostrar americanos; e daí lhes vem uma afetação e impropriedade que dá quebra em suas melhores qualidades.”17 Eis aqui o núcleo de uma crítica que estará orientando toda a apreciação dos poetas brasileiros por parte de Garrett e será glosada reiteradamente pelos historiadores posteriores.

Em relação a Cláudio Manuel da Costa, o juízo literário é inicialmente bastante positivo: “Mui distinto lugar obteve entre os poetas portugueses desta época Cláudio Manuel da Costa: o Brasil o deve contar seu primeiro poeta, e Portugal entre um dos melhores.” Garrett reconhece seus grandes dotes poéticos, mas não deixa de observar em tom de reparo: “Nota-se em muitas partes dos outros versos dele vários resquícios de gongorismo e afetação

seiscentista.”18

Ao considerar Santa Rita Durão e seu poema épico Caramuru, o escritor português observa: “O assunto não era verdadeiramente heróico, mas abundava em riquíssimos quadros, era vastíssimo campo sobretudo para a poesia descritiva.” Mas estes mesmos “riquíssimos quadros”, protagonizados pelo homem americano em meio à natureza brasileira, não teriam sido aproveitados em toda a sua plenitude e originalidade por Durão. E, repetindo os reparos feitos a Cláudio Manuel da Costa, conclui: “O estilo é ainda por vezes afetado: lá surdem aqui ali seus gongorismos; mas onde o poeta se contentou com a natureza e com a simples expressão da verdade, há oitavas belíssimas, ainda sublimes.”19

17 Op. cit., pp. 56-57. 18 Op. cit., p. 56. 19 Op. cit., p. 57.

Em relação a Tomás Antônio Gonzaga, Garrett inicialmente tece elogios, considerando as qualidades de sua poesia e sua boa acolhida junto ao público. Seguem, porém, alguns reparos: “Se houvesse por minha parte de lhe fazer alguma censura, só me queixaria, não do que fez, mas do que deixou de fazer.” É certamente uma formulação expressiva e reveladora do lugar de onde está falando Garrett, extensível a todo o “Bosquejo”. Na apreciação do passado literário, mesmo ao considerar seus pontos áureos, ele evidencia sempre a “falta”, a falta justamente do que lhe é caro: a expressão do particular, do característico, do específico, do original - a expressão do “caráter nacional”. Assim, explicitando as carências do lirismo de Gonzaga, dirá: “Explico-me: quisera eu que em vez de nos debuxar no Brasil cenas da Arcádia, quadros inteiramente europeus, pintasse os seus painéis com as cores do país onde os situou. Oh! E quanto não perdeu a poesia nesse fatal erro!”20

Com isto em vista, entende-se portanto o maior elogio que Garrett dedica a Basílio da Gama e a seu O Uraguai: “Justo elogio merece o sensível cantor da infeliz Lindóia que mais nacional foi que nenhum de seus compatriotas brasileiros. O Uraguai de José Basílio da Gama é o moderno poema que mais mérito tem na minha opinião.” E o teor deste lugar superlativo se evidencia a seguir: “Cenas naturais mui bem pintadas, de grande e bela execução descritiva; frase pura e sem afetação, versos naturais sem ser prosaicos, e quando cumpre sublimes sem ser guindados; não são qualidades comuns. Os brasileiros principalmente lhe devem a melhor coroa de sua poesia, que nele é verdadeiramente nacional, e legítima americana.” A representação adequada de uma natureza original surge aqui como elemento fundamental a distinguir a obra de Basílio. Mas Garrett, como de hábito, não deixaria de apontar alguns defeitos, mais de forma, que não embaçariam, porém, suas virtudes nacionais.21

O último período enfocado pelo escritor é o que vai do final do séc. XVIII até o momento em que escreve, entrevisto, depois da regeneração neoclássica, como o de uma segunda decadência da língua e da literatura. Aqui surgem como elementos responsáveis a “galomania” (a influência da literatura e língua francesas) e o pendor excessivo de traduzir obras estrangeiras (“a estocada de morte que nos jogaram os estrangeiros”). Garrett condena

20

Op. cit., pp. 57-58.

21

as traduções, em especial as literárias. A relação com as grandes obras estrangeiras, na sua perspectiva, deveria ser a do estudo e da imitação (aqui num sentido bastante específico do termo, vinculadamente ainda à poética clássica, de tomar uma obra como modelo a ser emulado, e não simplesmente copiado). Aos estímulos das produções vindas de fora, os portugueses deveriam responder criativamente, e não através da atividade servil da tradução.22

E o último parágrafo do “Bosquejo”, se não se mostra totalmente animador em relação ao presente, deixa aberto o território das possibilidades, como prenunciando o lugar que o ainda jovem Garrett, com outros de sua geração (entre eles Antônio Feliciano de Castilho, simpaticamente acolhido), poderia vir a ocupar a seguir.23

Almeida Garrett não encontra lugar ainda para tratar a literatura brasileira como uma manifestação independente da portuguesa, a despeito de seu texto datar já do ano de 1826. Os autores nascidos ou que terão vivido no Brasil encontram-se incorporados ao sistema literário da metrópole. Mas ao cobrar desses mesmos poetas uma representação mais fiel e original da natureza americana, do meio em que vivem, acusando neles a excessiva influência européia e o conseqüente apagamento do “espírito nacional”, Garrett está, mesmo que de modo algo oblíquo, apontando caminhos para a literatura do novo país.24