• Nenhum resultado encontrado

Primeira Parte: O contexto luso-brasileiro de Machado de Assis

Capítulo 2 Entre amigos portugueses

2. Portugueses no Rio de Janeiro

Antes de se acompanhar mais detidamente que escritores de origem portuguesa radicados no Rio de Janeiro conviveram com Machado e os modos como tal convivência acabaria por ser registrada na própria obra do escritor, seria interessante tratar aqui, sumariamente, da presença portuguesa no Brasil à época.

Nelson H. Vieira, em Brasil e Portugal: a imagem recíproca, obra que aborda amplamente as relações culturais entre os dois países e seus reflexos na literatura (desde o período dos descobrimentos até a contemporaneidade), registra, em largas tintas, o seguinte:

A declaração de perpétua aliança (entre Brasil e Portugal), exposta no tratado de 1825, se bem que ainda válida, entraria em breve na linguagem meramente oficial. Entretanto, outra aproximação tomava forma com a crescente emigração portuguesa. Com a abolição do comércio de escravos em 1850, todos os emigrantes eram necessários para preencherem a falta de mão-de-obra. De acordo com as estatísticas elaboradas por Oliveira Martins, a emigração portuguesa aumentou bastante entre 1850 e 1880. Em 1888, o número de emigrantes portugueses entrados no Brasil chegou a 23.000, excluindo a ativa emigração clandestina. Já perto do fim do Império, os portugueses no Brasil emergiam como uns dos mais zelosos proponentes do Luso-Brasilianismo cultural. O seu monopólio do comércio varejista em todo o Brasil facultou-lhes a promoção de atividades, as quais disseminaram a cultura portuguesa dentro do Brasil. Organizações filantrópicas, serviços médicos,

12

instituições de caridade, clubes sociais e facilidades educativas fazem parte da herança legada por estes portugueses que se estabeleceram no Brasil. (...)13

A propósito da imigração portuguesa para o país, com destaque para a fixação dos contingentes humanos na então capital brasileira, colhem-se observações interessantes e dados eloqüentes e atualizados em diversos dos ensaios que compõem o volume Os Lusíadas na

aventura do Rio Moderno, organizado por Carlos Lessa.

No texto introdutório e panorâmico com que abre o volume (um compêndio dos tópicos mais minuciosa e extensamente tratados pelos demais ensaístas), “Rio, uma cidade portuguesa?”, o mesmo Lessa fornece um bom panorama da presença portuguesa no Rio de Janeiro, de que se pode ressaltar aqui algumas informações relativas ao século XIX, período que interessa mais de perto ao presente estudo.

Segundo o estudioso, com a febre do ouro nas Minas Gerais em meados do século anterior, grandes levas de trabalhadores portugueses acorreram para aquela região, fazendo do Rio de Janeiro seu ponto de entrada no país: “O Rio consolidou-se neste processo e, tendo sido no século XVIII o portal para os lusos fascinados pelo ouro, converteu-se na Meca brasileira para a migração portuguesa nos séculos subseqüentes.”14

Já no início do século seguinte, com o deslocamento da Casa Real para o Brasil, a presença portuguesa no Rio de Janeiro iria se intensificar:

Após 1808, com a vinda de D. João VI, o Rio recebeu, em poucos anos, um bloco de 24 mil imigrantes. Neste período, a superestrutura política e social portuguesa foi transferida para a Colônia. Para o imaginário português comum, o Rei e a Corte avalizavam o Rio de Janeiro como lugar preferencial para se estar no Novo Mundo. A escolha joanina iluminou o Rio como meritório para um rei. O Rio com os Braganças, após a Independência, preservou seu sinal atraente para novas correntes emigratórias portuguesas, que se deslocavam pelo Atlântico, estimuladas pelo contraste entre a crise econômico-política metropolitana e o dinamismo do Brasil com a expansão cafeeira. Nas primeiras décadas do século XIX, o fluxo de chegada ao Brasil foi de quatro a cinco mil imigrantes lusos por ano. (...) Com a máquina a vapor, a passagem ficou mais barata, e foi

13

VIEIRA, Nelson H. Brasil e Portugal: a imagem recíproca. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1991. p.74. Sobre a imigração portuguesa durante o Segundo Reinado, conferir ainda informações e dados em: MARTINS, Oliveira. O Brasil e as colónias portuguesas. 7ª ed. aumentada. Lisboa: Guimarãess & C.ª Editores, 1978. (1ª ed. de 1880).

14

atenuado o sofrimento da viagem. A emigração cresceu em escala. Os navios da Royal Mail Steam Company traziam, em 28 dias, levas de camponeses solteiros e umas poucas famílias completas para o Rio, a partir de meados do século XIX.15

Dados da população portuguesa na capital brasileira já mais ao final do século explicitam as conseqüências de todo o processo: “Em 1890, a população do Rio era de 522.651 habitantes. Destes, 106.461 eram portugueses de nascimento, sendo 77.954 homens e 28.507 mulheres. (...) Nesta mesma data, 161.203 habitantes eram brasileiros filhos de pai ou mãe lusos.”16

Manolo Florentino e Cacilda Machado, em “Imigração Portuguesa e Miscigenação no Brasil no séculos XIX e XX”, corroboram tais dados, com destaque para a intensificação do processo imigratório ao longo do séc. XIX:

Os portugueses eram o grupo estrangeiro dominante no Rio de Janeiro. Em 1872, 2/3 dos imigrantes do então Distrito Federal eram lusitanos, e o censo de 1890 mostrou que, além de constituírem a mais antiga comunidade estrangeira na cidade, mais da metade de seus membros chegara havia apenas dez anos. Se, no início do século XIX, o Rio de Janeiro era, no dizer de Mary Karasch, uma cidade africana, em 1906 os portugueses constituíam a quinta parte da população carioca e 71% da população estrangeira da cidade. (...)17

No ensaio “A colônia portuguesa na composição empresarial da cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do XX”, Almir Pita Freitas Filho, antes de entrar propriamente no tópico específico de seu estudo, fornece dados gerais sobre a imigração portuguesa, reproduzindo quadro estatístico da entrada de portugueses no país entre 1820 e 1972. Por exemplo, no período que vai de 1820 a 1876, teriam sido ao todo 160.119; entre 1877 e 1886, 83.998; entre 1887 e 1903, 305.582.18

A maior parte dos portugueses que aqui aportavam vinham de regiões situadas mais ao norte de Portugal, como o Minho, o Douro e Trás-os-Montes, mas também das ilhas da Madeira e dos Açores. Vinham para o Brasil fugidos de uma situação bastante precária em seu país de origem, num movimento registrado assim por Lessa:

15 Op. cit., p. 27. 16 Op. cit., p. 27. 17 Op. cit., p. 101. 18 Op. cit., p. 170.

A paralisia político-econômica portuguesa baliza uma trajetória que faz de Portugal, no último quartel do século XIX, um país sem grande indústria, inteiramente subordinado à Inglaterra e submetido à instabilidade política e institucional. Tais mazelas presidem a transformação do português, de colonizador em imigrante para o Brasil independente. Do outro lado do Atlântico, a ex-Colônia se havia inserido no comércio mundial, com uma commoditie - o café - , cujo mercado mundial se expandiu de forma acelerada, a partir da extremamente dinâmica oferta brasileira. A capital do Império crescia, atraindo em massa o português migrante, que nela esperava ter mobilidade vertical.19

Apoiando-se em estatísticas já do começo do séc. XX, mas que certamente representavam realidades observáveis pelo menos desde meados do século anterior, Florentino e Machado precisam melhor a extração social dos grupos que chegavam ao Brasil e sua presença no mundo do trabalho:

(...) Quase a metade deles declararam-se trabalhadores agrícolas sem terra, pescadores, trabalhadores em indústrias rurais ou empregados domésticos. Muitos não resistiram às epidemias de febre amarela e de varíola, mas boa parte veio engrossar as fileiras do operariado urbano, tornando a força de trabalho ativa do Rio de Janeiro marcadamente portuguesa.

Eram estes imigrantes pobres - carregadores no porto, vendedores ambulantes etc. - os que iam às ruas atrás de seu ganha-pão, misturando-se aos nacionais e imigrantes de outras nacionalidades para, definitivamente, mudar a cara do Rio. Almejavam enriquecer para voltar para a terrinha, o que não raro os fazia remeter parte de suas economias para os parentes no torrão natal.20

Mas, como complementam os autores, portugueses de outros extratos também aqui chegavam:

(...) mais da metade desses imigrantes eram artesãos, trabalhadores em transporte e em comércio, funcionários públicos, profissionais liberais, e até mesmo uma minoria de proprietários rurais e capitalistas, comerciantes e industriais. No Brasil, aplicavam seu capital na compra de imóveis (no Rio, eram freqüentes os lusitanos donos de casas de aluguel), no estabelecimento de bares e restaurantes e na implantação de indústrias. A maioria, de fato, ia trabalhar como empregados no comércio, caracterizando o que o senso comum fixou como a imigração de “caixeiros”.21

19 Op. cit., p. 44. 20 Op. cit., p. 101. 21 Op. cit., pp. 101-102.

Era amplo, portanto, o espectro social ocupado pelo imigrante português. Como sublinham os mesmos autores, “os portugueses vinham impulsionados por algum laço social e, geralmente, eram amparados por migrantes mais antigos, por parentes e pela comunidade.”22

A existência de tais elos de solidariedade comunal reafirmava-se ainda através da fundação de associações de diversa natureza. Elisa Muller, no estudo “A organização sociocomunitária portuguesa no Rio de Janeiro”, registra, para o século XIX, três associações destinadas ao ensino e à cultura: o Gabinete Português de Leitura (1837), o Liceu Literário Português (1868) e o Educandário Gonçalves de Araújo (1881); 18 associações destinadas a serviços médicos e hospitalares, de auxílio mútuo e beneficência; e dois clubes sociais e desportivos: o Clube Ginástico Português (1868) e o Clube Vasco da Gama (1868).23

Centrando o foco nos “caixeiros” ligados ao comércio (atividade que atraía o grosso da imigração), Jean-Michel Massa, no item “Comércio e Poesia”, inserido no capítulo II de sua biografia, ao tratar dos primeiros anos de Machado após sua mudança para o centro da cidade e daquelas que teriam sido suas primeiras atividades profissionais, situa justamente nesse meio algumas das primeiras amizades do escritor brasileiro:

Muitos deles eram portugueses. Sustentavam, pela vigilância comum, a flama da literatura. Exerciam, durante o dia, as funções de empregado ou de caixeiro, numa casa de comércio português. Uma vez fechadas as portas da loja, desfrutavam, ao cair da tarde, de uma breve mas intensa liberdade poética. Durante as reuniões vesperais, não abriam mão da liberdade. Mas as lojas abriam às sete horas da manhã e freqüentemente fechavam às nove horas da noite...”24

Segundo Massa, as condições de vida, para muitos desses recém-chegados que vinham trabalhar como caixeiros no comércio da capital do Império brasileiro, eram das mais difíceis. A literatura, em alguns casos, tornava-se espaço propício de expressão e evasão: “A poesia representava uma das raras portas que a eles permaneciam abertas. Vários deles sabiam ler e

22

Op. cit., p. 101. Pelo menos três ensaios, em especial, do volume Os lusíadas na aventura do Rio moderno tratam da variada inserção social do imigrante português: “A colônia portuguesa na composição empresarial da cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do XX”, de Almir Pita Freitas Filho; “O imigrante português no mundo do trabalho, nos movimentos sociais e nas organizações sociais do Rio”, de Francisco Carlos Palomanes Martinho; e “Presença portuguesa: bases para a expansão das profissões liberais no Brasil”, de Vânia Maria Cury.

23

Op. cit., p. 309.

24

escrever. A nostalgia da pátria, o clima de romantismo que então reinava no Brasil, transformavam os melhores em poetas. Era a evasão através da poesia, que lhes permitia esquecer a miséria da sua condição.”25

Referindo-se também aos pequenos empregados do comércio, Wilson Martins, na sua

História da inteligência brasileira (vol. II - 1794-1855), sublinhava o papel do que vai ali

chamar de “classe caixeiral” no ambiente intelectual do Rio de Janeiro de meados do século:

A “classe caixeiral” era então composta quase exclusivamente de portugueses (...), ou, quando muito, de seus filhos nascidos no Brasil. (...) acrescente-se que saíram da “classe caixeiral” numerosos escritores importantes, além de fornecer sólidos contingentes do público literário. Na sua conhecida biografia de Casimiro de Abreu (expoente literário da “classe caixeiral”, na qual o jovem Machado de Assis tinha numerosos amigos e confrades), Nilo Bruzzi esclarece que os “caixeiros do comércio” era o pessoal de escritório, distinguindo-se dos “caixeiros de armarinhos”, que trabalhavam nas casas varejistas, e dos “caixeiros de armazém” pertencentes, como o nome indica, aos estabelecimentos de secos e molhados. (...)

Entre os numerosos portugueses que se transferiram para o Rio de Janeiro atraídos pelo ambiente acolhedor criado por seus patrícios, estavam, no campo da literatura, Faustino Xavier de Novais, futuro cunhado de Machado de Assis, e, claro, está, a própria Carolina; nas atividades musicais, o jovem pianista Artur Napoleão, que se apresentou pela primeira vez à platéia carioca em 1857, quando tinha catorze anos (...).26

Mais adiante (vol. III - 1855-1877), o mesmo historiador complementava, tocando novamente na questão do círculo de amizades do jovem Machado:

(...) Apenas para registro, noticie-se o aparecimento em Lisboa da Revista Contemporânea de

Portugal e Brasil que, durando até 1865, reconhecia implicitamente a existência, se não de uma

literatura, pelo menos de um público literário ultramarino. Isso explica, diga-se de passagem, a enorme afluência de escritores portugueses, desconhecidos ou não, que se instalaram no Rio de Janeiro a fim de fazer a vida literária e jornalística, para nada dizer da “classe caixeiral”, cuja atividade nos meios artísticos já mencionamos, e que se pode afirmar composta quase exclusivamente de lusitanos.

Foi nesse meio que Machado de Assis encontrou os seus primeiros amigos e camaradas de letras, como Ramos Paz e Ernesto Cibrão, além de Francisco Gonçalves Braga e Faustino Xavier de Novais, que seria seu cunhado. (...)27

Seja no pequeno comércio dos “caixeiros”, de onde eventualmente alguns emergiam para chegar a outros escalões da atividade comercial, seja dentro de um ambiente literário e

25

Op. cit., p. 104.

26

jornalístico que atraía o afluxo de muitos portugueses letrados, seja ainda no contato com aqueles que transitavam entre uma e outra dessas atividades profissionais, o fato é que o escritor encontrava algumas de suas primeiras e importantes amizades entre membros da colônia portuguesa do Rio de Janeiro, ativa e numerosa, como se viu, tópico que importaria mais longamente agora investigar.