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Estreitando relações: o centenário de Bocage e a fundação da Arcádia Fluminense

Primeira Parte: O contexto luso-brasileiro de Machado de Assis

Capítulo 4 O “clã” dos Castilho

2. Estreitando relações: o centenário de Bocage e a fundação da Arcádia Fluminense

Alguns poucos anos depois da publicação desta crítica, outro episódio literário envolvendo Machado e os Castilho, agora mais restrito à figura de José Feliciano, iria se verificar. Trata-se da comemoração do primeiro centenário de nascimento de Bocage, realizada no Brasil, e da fundação, naquela mesma ocasião, da efêmera Arcádia Fluminense.

Quem se dedicou ao assunto com algum cuidado foi Jean-Michel Massa. Em artigo intitulado “La Célébration du Premier Centenaire de Bocage au Brésil”, o estudioso mapeava os principais lances e documentos relativos ao episódio.

Constatando que, no ano de 1865, a Questão Coimbrã havia absorvido completamente a atenção da intelectualidade portuguesa, deixando provavelmente pouco espaço para que a lembrança do nome de Bocage pudesse transformar-se num acontecimento literário de maior envergadura em Portugal por aquele tempo, o estudioso francês chamava a atenção para o fato de que, no Brasil, as comemorações do centenário de nascimento do poeta português, ao contrário, tiveram, sim, algum relevo, especialmente no seio da colônia portuguesa e nas rodas luso-brasileiras a ela ligadas.

Entre os protagonistas deste episódio literário, Massa focava sua atenção, a princípio, sobre José Feliciano de Castilho, fazendo uma breve retrospectiva de sua instalação aqui em 1847 e de sua atuação no meio intelectual do Rio de Janeiro desde então, inclusive com o respaldo da coroa brasileira. A esse respeito, seria pertinente destacar algumas formulações do estudioso francês, que dão bem uma idéia da influência deste Castilho:

José Feliciano, à sa mesure et à sa maniére, exerça au Brésil le même magistére que son frére ao Portugal. Polygraphe fécond, il collaborait à divers journaux et ne manquait jamais aucune occasion d’exprimer son avis. La direction de l’important théâtre du Gymnase dramatique, qu’il assuma pendant longtemps, accroissait encore son influence. Et l’auréole d’António Feliciano lui conférait un lustre indéniable. A plusiers reprises, on a l’impression que les deux frères organisaient, des deux côtés de l’Atlantique, une sorte de mafia discrète, mais efficace. Secondés par quelques hommes sûrs, maîtres des moyens d’information - on dirait aujourd’hui: des journaux

littéraires - ils faisent et défaisent les réputations. On subodore même parfois quelque chose qui ressemble fort à des règlements de compte personnels. 9

Projetada contra esse pano de fundo, a crítica algo restritiva de Machado aos Castilho em 1862, abordada mais atrás, adquiria um caráter peculiar. Era uma afirmação de independência de um jovem intelectual, àquela altura ainda bastante próximo do ideário liberal, em relação ao formalismo academicista dos Castilho. De qualquer forma, em 1865, por ocasião do centenário, Machado estaria bastante próximo de José Feliciano, a ponto de se integrar plenamente no grupo que vai protagonizar as comemorações.

No início de setembro de 1865, Castilho havia convocado, através da imprensa, um grupo de intelectuais para reunião no Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro a fim de organizar as comemorações em homenagem ao centenário de nascimento de Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805). O objetivo seria, a princípio, o de levantar recursos para a construção de um monumento ao poeta em Setúbal, Portugal, onde nascera. O local definitivo escolhido para as comemorações acabaria sendo o Clube Fluminense, menos exclusivo da colônia portuguesa.

Segundo Massa, no dia 5 de setembro de 1865, o Diário do Rio de Janeiro registrava o “semi-fracasso” (nas palavras do estudioso) do drama Os primeiros amores de Bocage, peça de circunstância de Mendes Leal escrita para aquele ano comemorativo, que Machado havia comentado elogiosamente em meados do mês anterior em carta aberta endereçada a José Feliciano de Castilho.

Vale a pena consultar o texto de Machado, menos para avaliar o modo como este recebia criticamente o drama do escritor português, do que para evidenciar a quantas andavam suas relações com o “clã” dos Castilho àquela altura.

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MASSA, Jean-Michel. “La Célébration du Premier Centenaire de Bocage au Brésil.” Bulletin des etudes

portugaises. Publié par L’Institut Français au Portugal avec la collaboration de L’Institut d’Études Portugaises de

la Sorbonne. Nouvelle Série - Tome XXVII. Lisboa: 1966. Esta citação e as demais informações aqui sumariadas encontram-se entre as páginas 179-188.

A carta aberta de Machado de Assis, publicada no Diário do Rio de Janeiro do dia 15 de agosto de 1865, começava da forma mais reverente:

Mestre e senhor. - Conversemos de um grande poeta e de uma excelente obra, de Bocage e dos

Primeiros amores de Bocage. Tem V. Ex.ª, mais do que nenhum outro, o direito de ver o seu nome

no alto destas linhas: foi V. Ex.ª o primeiro que, depois de acurado estudo e prodigiosa investigação, nos deu uma excelente biografia do grande poeta, que serviu de fonte para outros trabalhos, e a que não duvidou recorrer o ilustre autor dos Primeiros amores. Tecer alguns aplausos a V. Ex.ª no meio dos aplausos ao autor da comédia, honrar a um tempo o biógrafo e o poeta, o historiador e o intérprete, é um dever de justiça literária, de que eu me não podia esquecer neste momento.

(...)

É a V. Ex.ª, portanto, que eu devo dar conta das minhas reflexões acerca dos Primeiros amores

de Bocage. 10

O intróito merece consideração. José Feliciano de Castilho é chamado aqui de “mestre e senhor”, e a “excelente biografia” de Bocage que vai servir de fonte para o drama de Mendes Leal, drama este que seria, afinal, o objeto central da crítica, é fruto de “acurado estudo” e “prodigiosa investigação”. São expressões de irrestrito elogio. Não se pode ainda perder de vista que a carta não era missiva particular, pelo contrário: tratava-se de uma carta aberta, endereçada tanto ao interlocutor explicitado como ao público do periódico em geral. Machado colocava-se numa situação de subordinação em relação a J. F. de Castilho, e explicitava esta relação para o público.

Todo o resto era um grande aplauso às virtudes do drama de Mendes Leal, que Machado abordava com alguma minúcia. Na despedida, novamente o tom subserviente com que se dirigia de início a José Feliciano: “Desculpe V. Ex.ª o haver-lhe tomado tempo, e creia na sinceridade com que sou / Criado e admirador de V. Ex.ª / Machado de Assis.”

Um mês depois desta missiva, em que parecia claro que Machado estava àquela altura de alguma forma “agregado” ao “clã” dos Castilho, o escritor estará participando ativamente das comemorações do centenário de Bocage capitaneadas no Rio pelo letrado português.

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Voltando ao texto de Massa, as comemorações se deram na noite do dia 15 de setembro de 1865, e terminaram tarde. Alguns dos principais jornais do Rio, Jornal do

Comércio, Correio Mercantil e Diário do Rio de Janeiro, deram boa cobertura do evento, com

especial destaque para este último, cujo extenso relato, principal documento disponível sobre o ocorrido, o estudioso francês transcreve. Não seria ocioso lembrar novamente que se tratava justamente do periódico em que Machado mais assiduamente colaborava por aqueles tempos.

Intitulado “Monumento a Bocage”, o artigo jornalístico fazia um apanhado algo minucioso da noite. O motivo primeiro da reunião era justamente o de levantar fundos para a construção de um monumento ao poeta: “Realizou-se ontem, no salão do Club fluminense, a reunião convocada pelo Sr. conselheiro José Feliciano de Castilho para tratar da ereção de um monumento a Bocage, em Setúbal, celebrando-se por aquele o 100º aniversário do poeta.” Entre os participantes, intelectuais dos dois países: “A reunião compunha-se de portugueses e brasileiros, conforme a declaração expressa do convite.”11

Descrevendo a seguir passo a passo os episódios daquela noite, o mesmo artigo assinalava então a decisão de formar uma comissão no Brasil para a execução do monumento. Na presidência da comissão (para lembrar alguns nomes já familiares a esta altura), “o Sr. Conselheiro José Feliciano Castilho Barreto e Noronha”. Entre os secretários interinos, Reinaldo Carlos Montoro. Entre os primeiros secretários, Ernesto Cibrão. O ator e empresário português Furtado Coelho, que não pôde comparecer, enviara missiva justificando sua ausência e anunciando donativo. E a noite, depois destas deliberações pragmáticas, iria ter um desdobramento mais caracteristicamente artístico, com a leitura de poemas e recital de músicas:

Em seguida leram poesias análogas ao dia os Srs. A. E. Zaluar, Ernesto Cibrão e Machado de Assis. O Sr. F. Castiço terminou esta primeira parte literária com um brilhante improviso. Durante os intervalos os Srs. Reichert, flautista, Vagner e Lobo, pianistas, executaram excelentes peças musicais.

Na segunda parte da noite leram poesias os Srs. conselheiro José Carlos de Almeida Areias, Dr. Pedro Luís (uma sua e outra do Sr. conselheiro José Bonifácio de Andrada), Manuel de Melo,

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Costa Jobim, Machado de Assis, Ernesto Cibrão, Fernando Castiço (uma de autor anônimo), Vitorino de Barros, Cândido Bellegarde, e finalmente o Sr. conselheiro Castilho.

Assim terminou a festa literária de Bocage, e pode dizer-se, pelo entusiasmo e adesão que encontrou a idéia do Sr. conselheiro Castilho, que o monumento está feito.

Os dois poemas de Machado por ele lidos, segundo a Bibliografia de Machado de

Assis de Galante de Sousa, encontram-se infelizmente perdidos.12

Na mesma noite, José Feliciano de Castilho iria ainda propor, lembrando tratar-se dos festejos de um dos principais árcades portugueses, a idéia de fundar-se uma Arcádia Fluminense, projeto acolhido pelos demais e que seria posto em andamento. Machado de Assis figurava na lista dos membros fundadores.

Massa registra que, a despeito da efemeridade da referida Arcádia, que teria na presidência o mesmo José Feliciano de Castilho, ela iria ser honrada com a presença de D. Pedro II durante uma de suas sessões, e não seria exagero vê-la como uma espécie de embrião da Academia Brasileira de Letras, fundada mais ao final do século, e que iria ter em Machado de Assis seu centro animador.

A breve história da Arcádia Fluminense é relatada pelo mesmo pesquisador em sua biografia do escritor brasileiro. Foram ao todo três reuniões, todas elas no Clube Fluminense. A primeira, do dia 14 de outubro do mesmo ano, acolhera ainda uma exposição de escultura e pintura e teve uma grande freqüência de público (300 pessoas, segundo o Diário do Rio de

Janeiro; 430, segundo o Jornal do Comércio). Na segunda, no dia 29 de novembro de 1865,

quatrocentos cavalheiros e duzentas damas se reuniram para participar do evento, que contou também com a presença da família real. Segundo Massa, “esta reunião foi uma espécie de consagração de Machado de Assis como poeta oficial”. O público ali presente teve ocasião de ouvir os versos da sua Cantata da Arcádia, musicados apor José Amat. A terceira e última reunião ocorreria no dia 28 de dezembro. Para Machado, foi a ocasião de apresentar ao

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público, com sucesso, sua comédia Os deuses de casaca, representada por alguns dos sócios da agremiação.13

Tais episódios confirmam, mais uma vez, os fortes vínculos do escritor brasileiro com nomes importantes da colônia portuguesa no Rio de Janeiro, entre os quais avultava o de José Feliciano, e a presença desta na vida intelectual da capital do país naquele tempo. Nas severas críticas que fará ao escritor anos mais tarde (tópico já referido mais atrás), Silvio Romero iria fazer questão de lembrar a ascendência de José Feliciano (afinal um antagonista da sua geração aquém e além-mar) sobre o jovem escritor em formação.