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Outros lances de uma relação consolidada

Primeira Parte: O contexto luso-brasileiro de Machado de Assis

Capítulo 4 O “clã” dos Castilho

4. Outros lances de uma relação consolidada

Outros bons documentos das excelentes relações entre Machado e os Castilho por aqueles anos são as dedicatórias encontradas em exemplares de Ovídio e Virgílio, o primeiro traduzido por Antônio e José Feliciano, o segundo apenas por Antônio Feliciano, presentes na biblioteca do escritor brasileiro. No exemplar da Arte de Amar, de Ovídio, publicado em 1862, lê-se o seguinte: “A J. M. Machado d’Assis, o poeta d’alma, e esperançoso ornamento das letras do Brasil. O. Antônio Feliciano de Castilho e José Feliciano de Castilho.” No volume das Geórgicas, de Virgílio, de 1867, lê-se: “Ao Príncipe dos Alexandrinos, ao Autor dos Deuses de Casaca, a J. M. Machado d’Assis, F. Castilho.”17

O contato com a literatura clássica por intermédio das traduções de Antônio Feliciano iria inspirar Machado a compor o quadro dramático em versos “Uma Ode de Anacreonte”, incluído em Falenas (1870), e dedicado ao português Manuel de Melo. No corpo deste seu texto, Machado transcrevia uma pequena ode do poeta grego vertida por Castilho, que fazia acompanhar da seguinte nota explicativa: “É do Sr. Antônio Feliciano de Castilho a tradução desta odezinha, que deu lugar à composição do meu quadro. Foi imediatamente à leitura da

Lírica de Anacreonte, que eu tive a idéia de pôr em ação a ode do poeta de Teos, tão

portuguesmente saída das mãos do Sr. Castilho que mais parece original que tradução. A concha não vale a pérola, mas o delicado da pérola disfarçará o grosseiro da concha.”18

De fato, a transcrição de Machado, a não ser pela pontuação e pela troca do vocábulo “plácido” para “mágico”, no quinto verso, é bastante fiel ao que se pode ler às páginas 58 e 59 do volume A lírica de Anacreonte, publicado em 1866, e que, na edição de partida, recebia ainda o título de “Metamorfoses de Cobiçar”:

Fez-se Níobe em pedra, e Filomela em pássaro.

Assim

17

MASSA, “La Bibliothèque de Machado de Assis” (Revista do Livro, nº 21-22, Rio de Janeiro, março-junho, 1961), p. 206.

18

folgaria eu também me transformasse Júpiter

a mim.

Quisera ser o espelho, em que o teu rosto plácido

sorri;

a túnica feliz, que sempre se está próxima

de ti;

o banho de cristal, que esse teu corpo cândido

contém;

o aroma de teu uso, e d’onde eflúvios mágicos

provêm;

depois esse listão, que do teu seio túrgido

faz dois;

depois... de teu pescoço o rosicler de pérolas;

depois...

Depois! Ao ver-te assim, única, e tão sem êmulas,

qual és,

até quisera ser teu calçado, e pisassem-me teus pés!19

Alguns anos depois, já em meados da década de 70, quando Machado enveredava pelo romance e aproximava-se da maturidade literária, outra dedicatória documentava a permanência de boas relações com o “clã”. Em outro exemplar da estante portuguesa do escritor, o primeiro tomo de um estudo de Júlio de Castilho, filho de Antônio Feliciano, sobre o poeta quinhentista Antônio Ferreira, lê-se ainda outra dedicatória, da parte de José Feliciano em nome do irmão e do sobrinho: “Ao talentoso poeta, leal colega, e prestimoso amigo, J. M. Machado d’Assis, oferece, no próprio nome e no dos Viscondes de Castilho, Antônio e Júlio, J. F. de Castilho Barreto e Noronha. / Rio de Janeiro, 15 de março de 1875.”20

Por ocasião da morte de Antônio Feliciano, naquele mesmo ano, o escritor brasileiro iria redigir um necrológio que fez publicar na Semana Ilustrada nº 760, de 04/07/1875. São linhas definitivas do apreço por aquele escritor português, e que vale a pena serem lidas em sua íntegra:

O Visconde de Castilho

19

CASTILHO, Antônio Feliciano de. A lírica de Anacreonte. Paris: Tip. Ad. Lainé et J. Havard, 1866. pp. 58- 59.

20

Do nosso amigo, Sr. M. de Assis recebemos as seguintes linhas:

Não, não está de luto a língua portuguesa; a poesia não chora a morte do visconde de Castilho. O golpe foi, sem dúvida, imenso; mas a dor não pôde resistir à glória; e ao ver resvalar no tumulto o poeta egrégio, o mestre da língua, o príncipe da forma, após meio século de produção variada e rica, há um como deslumbramento que faria secar todas as lágrimas.

Longa foi a vida do visconde de Castilho; a lista de seus escritos numerosíssima. O poeta dos

Ciúmes do Bardo e da Noite do Castelo, o tradutor exímio de Ovídio, Virgílio e Anacreonte, de

Shakespeare, Goethe e Molière, o contemporâneo de todos os gênios, familiar com todas as glórias, ainda assim não sucumbiu no ócio a que lhe davam jus tantas páginas de eterna beleza. Caiu na liça, às mãos com o gênio de Cervantes, seu conterrâneo da península, que ele ia sagrar português, a quem fazia falar outra língua, não menos formosa e sonora que a do Guadalquivir.

A Providência fê-lo viver bastante para opulentar o tesouro do idioma natal, o mesmo de Garrett e G. Dias, de Herculano e J.F. Lisboa, de Alencar e Rebelo da Silva. Morre glorificado, deixando a imensa obra que perfez à contemplação e exemplo das gerações vindouras. Não há lugar para pêsames, onde a felicidade é tamanha.

Pêsames, sim, e cordiais merece aquele outro talento possante, último de seus irmãos, que os viu morrer todos, no exílio ou na pátria, e cuja alma, tão estreitamente vinculada à outra, tem direito e dever de pranteá-lo.

A língua e a poesia cobrem-lhe a campa de flores e sorriem orgulhosas do lustre que ele lhes dera. É assim que desaparecem da terra os homens imortais.21

Estava-se já em meados da década que, no Brasil e em Portugal, na esteira do que acontecia nos principais países da Europa, viria chegar uma nova geração de escritores e intelectuais, influenciados pelo Realismo/Naturalismo, pelo cientificismo e pelas novas idéias sociais. Castilho era um bastião da velha guarda àquela altura, inimigo de primeira hora dos novos, alguém cujas concepções humanas e literárias se lhes afiguravam estar de todo ultrapassadas e se revelava urgente superar. Machado não se furtava a prestar sua homenagem pessoal e sentida ao velho escritor no momento de seu desaparecimento, como também não se furtará, três anos depois (abril de 1878), a se confrontar com um dos nomes mais brilhantes daquela nova geração, Eça de Queirós, num embate notável e de repercussão, e que tantas e variadas avaliações iria posteriormente gerar.

21