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Sob o juízo incisivo de um jovem crítico

Primeira Parte: O contexto luso-brasileiro de Machado de Assis

Capítulo 4 O “clã” dos Castilho

1. Sob o juízo incisivo de um jovem crítico

É severa a avaliação da historiografia literária acerca da trajetória de Antônio Feliciano de Castilho nas letras portuguesas. Antônio José Saraiva e Óscar Lopes, dois historiadores dos mais respeitados, declaram sumariamente: “Nada melhor do que a obra de Antônio Feliciano de Castilho (...) representa as fraquezas do primeiro Romantismo literário em Portugal: as sobrevivências arcádicas nela contidas, o receituário a que obedecem as aparências, a superficialidade, até, das suas utopias. A sua biografia literária resume bem a evolução do gosto e das idéias em voga, a que soube sempre amoldar-se.” E, mais adiante: “Pelo seu próprio oportunismo, a obra de Castilho tem hoje sobretudo o interesse de documentário dos passados gostos literários.”1

Depois de Almeida Garrett e Alexandre Herculano, A. F. de Castilho (1800-1875) é o terceiro principal nome do primeiro Romantismo português, autor cuja ascendência literária sobre os contemporâneos, sejam eles portugueses ou brasileiros, revela-se realmente muito forte. Será somente já no último decênio de vida que ele verá seu prestígio ser minado pela entrada em cena dos jovens escritores que introduziam então a escola realista e o novo ideário social e científico em Portugal. O papel de escritor reacionário, identificado com um estado de espírito nacional que urgia superar, ficaria colado a sua pessoa durante e após os embates da chamada Questão Coimbrã, em meados da década de 1860, e da entrada triunfal dos novos na cena cultural portuguesa. Seu legado literário será avaliado pelas gerações seguintes sempre muito a partir das conseqüências desse embate.2

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SARAIVA, Antônio José e LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 12ª ed. Porto: Porto Editora, 1982. pp. 788 e 791.

2

Antônio Feliciano de Castilho (nascido em Lisboa, em 28/01/1800, e morto na mesma cidade, em 18/06/1875) é autor de obra variada, que formou-se dentro do ambiente classicizante do Arcadismo português, ainda resistente no início do séc. XIX, mas que absorveu, já em plena maturidade, os influxos do Romantismo europeu. Como

Na época em que Machado começa a dar seus primeiros passos na carreira das letras, Castilho é ainda, como vai se ver, autor bastante influente nos dois lados do Atlântico.

Os mesmos Saraiva e Lopes, por exemplo, sugerem que o magistério literário de Antônio Feliciano de Castilho estaria bastante vivo no final da década de 50, depois da primeira onda romântica nas literaturas de língua portuguesa. Em Portugal, por esses anos, muitos dos novos escritores, influenciados pelo espírito humanitário da poesia de Vítor Hugo, antecessores imediatos da geração de Eça de Queirós e Antero de Quental, estavam próximos do escritor:

O momento é favorável ao romance, ao poema romanceado, ao drama de “tese” social. Castilho consegue chamar à sua corte muitos dos jovens representantes de tais correntes, prefaciando-lhes as obras, apadrinhando-os, doutrinando-os com seus preceitos de moderação e, sobretudo, de clareza e vernaculidade. É o que acontece com Mendes Leal, vindo já da primeira camada romântica e, em certos meios, mais influente que Castilho; com o historiador Rebelo da Silva, discípulo de Herculano; com Camilo, que recebeu de Castilho a lição do estilo rico arcaizante; com o jovem crítico e dramaturgo Ernesto Biester; com o poeta de formação vítor-huguesca Tomás Ribeiro; com o futuro historiador e romancista histórico e anticlerical Pinheiro Chagas, etc.3

Encontravam-se entre estes autores contemporâneos de além-Atlântico “apadrinhados” por Castilho alguns dos escritores portugueses que o jovem crítico Machado de Assis estará acompanhando à distância desde o final da década de 50 e ao longo de toda a década seguinte,

criador, dedicou-se sobretudo à poesia. Cartas de Eco a Narciso, por exemplo, volume publicado em 1821, é tributário desse arcadismo tardio. Já com Os ciúmes do bardo e Noite do Castelo, de 1836, consagra-se como romântico, quando não mesmo ultra-romântico, dando vazão a todos os exageros melodramáticos e sombrios da escola. São, esses dois momentos, as balizas extremas em que se situa sua obra poética, de qualquer forma recorrentemente avaliada como formalista e epigonal. No campo da pedagogia, formulou alguns métodos de leitura e ensino que difundiu largamente no mundo de língua portuguesa, como o Método Castilho ou Método

Português Castilho (1853). Para divulgação deste método, veio ao Brasil em 1855, tendo sido recebido com

todas as honras pelo próprio imperador D. Pedro II. Organizou ainda um Tratado de versificação portuguesa (1851), de grande nomeada. Como tradutor, transpôs para o português autores fundamentais da literatura grega e latina, como Anacreonte, Ovídio e Virgílio. Entre os autores europeus mais próximos do seu século, verteu Cervantes, Shakespeare, Molière e Goethe, entre outros. Algumas das suas traduções, como o D. Quixote, de Cervantes, continuam a constituir versões ainda não superadas em língua portuguesa. Informações gerais sobre a vida e a obra de A. F. de Castilho podem ser colhidas em: SARAIVA e LOPES, História da literatura

portuguesa, pp. 787-792; MOISÉS, Pequeno dicionário de literatura portuguesa (São Paulo: Cultrix, 1981), pp.

72-73; MACHADO, Dicionário de literatura portuguesa (Lisboa: Presença, 1996), pp. 115-117; ou ainda CABRAL, Dicionário de Camilo Castelo Branco (Lisboa: Caminho, 1989), pp. 159-161.

3

resenhando livros e comentando dramas encenados no Rio de Janeiro, nomeadamente Mendes Leal, Ernesto Biester, Tomás Ribeiro e Camilo Castelo Branco.4

Quanto ao “reinado” de A. F. de Castilho na poesia luso-brasileira de meados do século XIX, Jean-Michel Massa dá um bom e igualmente severo panorama ao tratar dos primeiros esforços poéticos do seu biografado, ainda então muito impregnado por esse ambiente:

(...) O clã de Castilho reinava e promulgava a lei poética. No fundo, esse “ultra-romantismo” era o retorno a um neo-classicismo caduco. Apenas alguns temas mais crepusculares distinguiam os dois. (...)

Em Lisboa, como no Rio, sob a autoridade dos Castilho, a forma da poesia em nada evoluiu. Antônio Feliciano “nomeou” seu irmão para fazer reinar ordem e medida no Rio. Em 1851, o português Castilho reuniu, num tratado de versificação, as regras do uso poético correto. Neste livro, o vocabulário, as imagens, o estilo, a própria forma, permaneciam ainda profundamente clássicos. Eis porque a época em que Machado de Assis começou a escrever não correspondia absolutamente, no terreno da poesia, a um período de criação, nem de renovação. Ao contrário, no mundo luso-brasileiro a poesia estava em apuros. Garrett acabava de morrer. A República dos poetas vestiu luto e o chorou ruidosamente. Sua obra fora largamente explorada, pilhada. Castilho continuava a ser o príncipe dos poetas, sobrevivendo a todos os outros escritores.5

4

De José da Silva Mendes Leal Júnior (1818-1896), Machado comenta o drama Pedro, e sua encenação no Rio pela companhia do português Furtado Coelho, na coluna Revista dos Teatros, publicada em O Espelho nº 18, de 01/01/1860. Como já se indicou anteriormente, Machado faz referências ao romance Calabar, do mesmo autor, em crônica publicada em O Futuro nº 15, de 15/04/1863. Um pouco mais adiante, o crítico brasileiro tecerá diversas linhas de elogio a Mendes Leal, ao comentar o texto e a encenação do drama Os primeiros amores de

Bocage, em carta aberta endereçada a José Feliciano de Castilho (carta que se verá com mais cuidado logo

adiante), publicada no Diário do Rio de Janeiro de 15/08/1865. De Ernesto Biester (1829-1880), Machado faz a crítica de diversos dramas encenados no Rio de Janeiro. Rafael é abordado na Revista dos Teatros, publicada em

O Espelho nº 9, de 30/10/1859. Os homens sérios, em crônica publicada no Diário do Rio de Janeiro de

24/12/1861. O drama As pupilas do Sr. Reitor, adaptação para teatro do romance homônimo de Júlio Dinis, feita pelo mesmo Biester, é apreciado por Machado em crítica saída na Semana Ilustrada nº 548, de 11/06/1871. Logo em seguida, o drama Pecadora e mãe será comentado no nº 551 desse mesmo periódico, em 02/07/1871. Tomás Ribeiro (1831-1901) terá seu poema D. Jaime como objeto de breve crítica de Machado em crônica inserida no primeiro número de O Futuro, saído em 15/09/1862. Vale lembrar que a “Conversação Preambular”, de Castilho, texto que acompanha a edição deste poema, estará no centro de uma série de polêmicas que prenunciam já as pelejas mais acirradas que irão desencadear a Questão Coimbrã. Mais atrás transcreveu-se já carta de Miguel de Novais datada de 10 de setembro de 1862, do Porto, transcrita em O Futuro nº 3, em que este noticiava os embates provocados pela publicação de D. Jaime e do texto que o acompanha. De Camilo Castelo Branco (1825- 1890), Machado fará uma apreciação crítica do drama Espinhos e flores, na coluna Revista Dramática, publicada no Diário do Rio de Janeiro de 13/04/1860. Ainda em O Futuro, como já se viu mais atrás, em crônica inserida no nº 9, de 15 de janeiro de 1863, Machado anunciava a publicação para breve, em capítulos, neste mesmo periódico, do romance Agulha em palheiro, de Camilo.

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Como sugere o estudioso, Antônio Feliciano de Castilho estendia sua influência ao Brasil por intermédio de um de seus irmãos, José Feliciano (1810-1879), igualmente homem de letras, que para cá havia se mudado em 1847 e aqui viria a falecer. José Feliciano de Castilho era um dos centros intelectuais da colônia portuguesa no Rio de Janeiro, ao redor do qual orbitavam muitos dos escritores portugueses aqui radicados. Machado de Assis, que freqüentava muitos deles, conviveu de perto com este outro Castilho, deixando aqui e ali alguns documentos dessa interlocução.6

Um primeiro registro das relações de Machado com o “clã” dos Castilho (aproveitando aqui a expressão de Massa) é a crítica que o escritor brasileiro faz ao volume À memória de

Pedro V , de Antônio e José Feliciano, seguida de um breve comentário à Memória acerca da 2ª égloga de Virgílio, da lavra exclusiva do segundo. O texto, originalmente publicado no Diário do Rio de Janeiro de 22 de fevereiro de 1862, para além dos elogios de praxe a

escritores mais do que consagrados, fazia alguns reparos bastante agudos que evidenciavam, de fato, na ocasião, a relativa independência do crítico.

O volume D. Pedro V, oportunamente dedicado a D. Pedro II, o Imperador do Brasil,

compõe-se de três poemas encomiásticos de Antônio Feliciano àquele e a alguns outros reis portugueses, poemas intitulados, a propósito, “No trânsito do senhor Rei D. Pedro V”, “A sua Majestade El-Rei O Senhor D. Fernando II” e “A sua Majestade El-Rei O Senhor D. Luís”, seguidos por “O Senhor D. Pedro V”, biografia em prosa em 13 capítulos, de autoria de José Feliciano.

Para se ter uma idéia do tom geral do volume, transcrevem-se a seguir alguns excertos do primeiro poema, precisamente do segmento inicial intitulado “Ad Sidera Palmas”:

6

Colho algumas informações gerais sobre este autor no verbete a ele dedicado (NORONHA, José Feliciano de Castilho Barreto e) no Dicionário de Camilo Castelo Branco, organizado por Alexandre Cabral (Lisboa: Caminho, 1989), pp. 449-451. Jean-Michel Massa, em A juventude de Machado de Assis e noutro texto que adiante se abordará com cuidado (a propósito das comemorações do centenário de Bocage no Brasil), faz algumas interessantes considerações sobre a atuação de José Feliciano no Rio de Janeiro.

No monumento público lidaste o dia inteiro, desd’alva até o véspero, Jovem, Real obreiro. Limpa o suor da púrpura ao fúnebre lençol; vai receber a féria; descansa; é posto o sol! Aos do porvir artífices deste não visto exemplo: juntaste um lanço amplíssimo da humanidade ao templo. Foi-te a semana aspérrima; prostrou-te; mas, valor! Chegaste ao dia sétimo, ao dia do Senhor.

Sobe aos eternos júbilos, ao trono verdadeiro; no rosto melancólico abre o sorrir primeiro. Olha do Empíreo os pórticos áureos com mil troféus!

Ouve!... “Bem vindo, ó Príncipe, “bem vindo aos pátrios céus!”7

Machado começava sua apreciação crítica tratando justamente desta primeira composição poética de Castilho. Registrava o relativo sucesso de opinião obtido pelo poema, para, em seguida, colocar-se na contramão das impressões gerais: “Abre esta brochura por uma peça poética do Sr. Castilho Antônio. Não há ninguém que não conheça essa composição que excitou pomposos e entusiásticos elogios. Antes de conhecer esses versos ouvi eu que nestes últimos tempos era a melhor composição do autor da Noite do Castelo. A leitura da poesia pôs-me em divergência com esta opinião.”8

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CASTILHOS, Antônio e José. Tributo à memória de Sua Majestade Fidelíssima, o Sr. Pedro V, o Muito

O crítico, antes de acusar os limites da composição, fazia alguns elogios, observações habituais quando estava em questão o artesanato formal do poeta português. Mas, feitos tais comentários genéricos, Machado passava a tecer algumas restrições ao poema, e realmente sérias, sobretudo quando se percebe que o que surgia realçado como positivo era exclusivamente a habilidade do versificador, já que sensibilidade poética e pensamento original pareciam de todo faltar: “Não há na parte da metrificação muito que dizer, mas falta à poesia do Sr. Castilho Antônio o alento poético, a espontaneidade, a alma, a poesia, enfim. O pensamento em geral é pobre e procurado, e na primeira parte da poesia, a das quadras esdrúxulas, a custo encontramos uma ou outra idéia realmente bela (...)”.

Mais adiante, depois de sopesar vícios e virtudes ao tratar de outras composições do volume, tarefa que ilustrava com alguns exemplos, o crítico, já à guisa de conclusão, registrava, bastante sentencioso e ampliando o endereço de seus reparos: “Se me estendi na menção daquilo que chamo defeitos da poesia do Sr. Castilho Antônio, mestre na literatura portuguesa, é porque pode induzir em erro os que forem buscar lições nas suas obras; é comum aos discípulos tirarem aos mestres o mau de envolta com o bom, como ouro que se extrai de envolta com terra.”

Ao tratar da biografia de Pedro V escrita por José Feliciano, o crítico novamente temperava o elogio com a restrição: “Louvando o ponto de vista patriótico e a firmeza do juízo do biógrafo, quisera eu que, em estilo mais simples, menos amaneirado, nos fosse contada a vida do rei. Estou certo de que seria mais apreciada. Entretanto deu-nos o Sr. Castilho José mais uma ocasião de apreciar os conhecimentos profundos da língua que possui.”

Com bastante tato e independência de juízo, o jovem crítico não se furtava, neste seu primeiro texto endereçado aos Castilho, a fazer incisivos reparos à obra de dois autores de prestígio àquela quadra. A maior distância crítica entrevista aqui, contudo, iria desvanecer-se na medida em que o escritor brasileiro se integrava mais e mais ao círculo literário por eles capitaneado.

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Esta e as citações imediatamente a seguir foram retiradas de: ASSIS, Obra completa, Jackson, vol. 29, pp. 21- 29.